David Hume – Ensaios Morais, Políticos e Literários. O EPICURISTA “Ou o homem de elegância e prazer. A intenção deste ensaio, assim como dos três que se lhe seguem, é menos a de explicar de maneira precisa as opiniões das antigas seitas filosóficas, do que a de expor as opiniões das seitas que, de uma maneira natural, se constituem no mundo, cada uma delas defendendo ideias opostas, no que diz respeito à vida e à felicidade humana. A cada uma delas atribuí o nome da seita filosófica com a qual apresenta maior afinidade. (Nota do Autor)” Constitui imensa mortificação para a vaidade dos homens o fato de, mesmo empregando o máximo de arte e de esforço, jamais serem capazes de igualar as mais Ínfimas produções da natureza, tanto em beleza quanto em valor. A arte desempenha apenas o papel do aprendiz de artífice, limitando-se a embelezar com alguns retoques as peças que lhe chegam das mãos do mestre. Pode ser que uma parte do desenho do tecido seja de sua autoria, mas não está autorizada a alterar a figura principal. A arte é capaz de fazer um vestuário completo, mas só a natureza é capaz de produzir um homem. Mesmo nessas produções comumente chamadas obras de arte vemos que os exemplos mais ilustres devem sua beleza, principalmente, à força e à feliz influência da natureza. É ao entusiasmo natural dos poetas que devemos tudo quanto é admirável em suas produções. Mesmo o maior dos gênios, quando em qualquer momento a natureza lhe falha (pois ela não é sempre igual), põe de lado sua lira, renunciando a esperar que as regras da arte lhe permitam atingir aquela divina harmonia que só pode derivar da inspiração da natureza. Como são pobres esses cantos, quando os materiais que a arte vai refinar e embelezar não foram fornecidos por uma afortunada onda de fantasia! Mas, de todas as mais infrutíferas tentativas de fazer arte, nenhuma é tão ridícula como aquela empreendida pelos severos filósofos, de produzir uma felicidade artificial, procurando dar-nos satisfação através de regras da razão e da reflexão. Por que nenhum deles reclamou a recompensa prometida por Xerxes a quem inventasse um novo prazer? A não ser, talvez, que tenham inventado tantos prazeres para seu próprio uso que passaram a desprezar a riqueza, não precisando de nenhuma das formas de satisfação que a recompensa daquele monarca poderia oferecer-lhes. A verdade é que me inclino a pensar que eles não tiveram vontade de oferecer à corte persa um novo prazer, apresentando-lhe tão novo e original objeto de ridículo. Quando limitada à teoria, e gravemente ensinada nas escolas da Grécia, sua especulação seria capaz de provocar a admiração de seus ignorantes alunos. Mas qualquer tentativa de aplicar à prática tais princípios depressa teria denunciado seu absurdo. Pretendeis poder fazer-me feliz pela razão e pelas regras da arte. Precisais, portanto, criar-me de novo por meio das regras da arte. Pois minha felicidade depende de minha constituição e estrutura original. Mas falta-vos poder para consegui-lo, e receio que habilidade também: e não seria lícito ter a sabedoria da natureza em menor conta do que a vossa. Que seja ela a conduzir a máquina que tão sabiamente construiu. Creio que mexer nela só poderia estragá-la. Com que finalidade pretenderia eu regular, aperfeiçoar ou revigorar qualquer daquelas molas ou princípios que a natureza implantou em mim? Será este o caminho pelo qual posso alcançar a felicidade? É que a felicidade implica tranquilidade, contentamento, repouso e prazer - e não preocupações, cuidados e fadigas. A saúde do meu corpo consiste na facilidade com que nele se dão todas as suas operações. O estômago digere os alimentos, o coração faz circular o sangue, o cérebro separa e apura os espíritos, e tudo isto sem que eu tenha que me preocupar com o assunto. No dia em que eu for capaz, pela simples ação de minha vontade, de fazer parar o sangue que corre impetuosamente por seus canais, então poderei começar a ter esperança de modificar o curso de meus sentimentos e paixões. Seria em vão que tentaria ampliar minhas faculdades, esforçando-me por receber prazer de um objeto que a natureza não fez próprio para encher de deleite meus sentidos. Poderei infligir dor a mim mesmo com esses infrutíferos esforços, mas jamais conseguirei obter algum prazer. Fora, pois, com todas essas vãs pretensões de nos tomar felizes dentro de nós mesmos, de fazer festins com nossos próprios pensamentos, de satisfazer-nos com a consciência do bem fazer, de desprezar toda ajuda e assistência dos objetos exteriores! Essa é a voz do Orgulho, não a da Natureza. E bom seria se ao menos esse orgulho tivesse a possibilidade de sustentar-se a si mesmo, produzindo um verdadeiro prazer interior, embora melancólico e severo. Mas este impotente orgulho não é capaz de fazer mais do que regular o exterior, para, com infinito sofrimento e atenção compor a linguagem e as atitudes de maneira a dar a aparência de dignidade filosófica, a fim de iludir o vulgo ignorante. Entretanto, o coração fica vazio de todo o prazer, e o espírito, sem o apoio dos objetos que lhe são adequados, mergulha na mais profunda tristeza e depressão. Miserável e vão mortal! Teu espírito, ser feliz dentro de si mesmo! De que recursos dispõe ele para poder preencher um vazio tão imenso, para conseguir ocupar o lugar de todos os sentidos e faculdades do corpo? Pode tua cabeça subsistir sem teus outros membros? Numa tal situação, Que triste figura irei fazer? Não fazer mais que dormir e sofrer. Numa tal letargia, e numa tal melancolia, deve inevitavelmente teu espírito ficar mergulhado, quando privado das ocupações e prazeres que lhe vêm de fora. Não me imponhais, portanto, por mais tempo esta violenta limitação. Não me obrigueis a ficar dentro de mim mesmo. e em vez disso indicai-me aqueles objetos e prazeres que mais satisfação podem oferecer. Mas por que recorrer a vós, orgulhosos e ignorantes sábios, para apontar-me o caminho da felicidade? É preferível consultar minhas próprias paixões e inclinações. É nelas que devo ler os ditames da natureza, não em vossos frívolos discursos. Mas eis que, propício a meus desejos, o divino, o admirável prazer, o supremo amor dos deuses e dos homens, caminha em minha direção. Perante sua aproximação, meu coração bate com intenso ardor, e todos os meus sentidos e faculdades se dissolvem em alegria, ao mesmo tempo que ele espalha em meu redor todas as belezas da primavera e todos os tesouros do outono. A melodia de sua voz encanta meus ouvidos com a mais suave música, convidando-me a partilhar dos deliciosos frutos que me apresenta, com um sorriso que enche de glória o céu e a terra. Os brincalhões Cupidos que o acompanham refrescam-me, abanando suas odoríferas asas, ou fazem jorrar sobre minha cabeça os mais fragrantes óleos, ou oferecem-me em taças de ouro seu resplandecente néctar. Oh! Deixai-me para sempre distender meus membros neste leito de rosas, e assim sentir passar os deliciosos momentos, em passos macios e suaves. Mas, sorte cruel! Por que voais tão depressa? Por que razão meus ardentes desejos, e a carga de prazeres com que trabalhais, mais apressam do que abrandam vosso passo implacável? Deixai-me gozar este suave repouso, depois de todas as minhas fadigas em busca da felicidade. Deixai-me saciar com estas delícias, depois dos sofrimentos de uma tão longa e tão tola abstinência! Mas é inútil. As rosas perderam suas cores, e os frutos seu sabor. E aquele delicioso vinho cujas exalações, tão tarde, intoxicaram todos os meus sentidos com tamanho deleite em vão solicita agora meu saciado paladar. O Prazer sorri de meu langor. Acena a sua irmã, a Virtude, para que venha em seu auxílio. A alegre, a esfuziante virtude obedece ao chamamento, e traz junto consigo todo o grupo de meus joviais amigos. Bem-vindos, três vezes bem-vindos, meus eternamente queridos companheiros, a este sombreado caramanchão e a este suntuoso repasto. Vossa presença restituiu à rosa suas cores, e ao fruto seu sabor. Os vapores deste capitoso néctar de novo palpitam agora em tomo de meu coração, enquanto vós partilhais minhas delícias, e revelais, em vosso aspecto animado, o prazer que recebeis de minha felicidade e satisfação. E o mesmo recebo eu da vossa felicidade; e, encorajado por vossa jovial presença, novamente retomarei o festim com o qual, devido ao excesso de gozo, meus sentidos estavam praticamente saciados, pois o espírito não acompanhava o passo do corpo, nem dava ajuda a seu sobrecarregado companheiro. É em nossas conversas mais animadas, e não nos raciocínios formais das escolas, que pode ser encontrada a verdadeira sabedoria. É nas relações entre amigos, e não nos debates vazios de estadistas e pretensos patriotas, que se revela a verdadeira virtude. Esquecidos do passado, seguros do futuro, gozemos aqui mesmo o presente. Enquanto ainda possuirmos um ser, procuremos conseguir algum bem permanente, que não esteja sujeito ao azar e à fortuna. O amanhã trará consigo seus próprios prazeres - e, se desapontar nossos caros anseios, poderemos ao menos gozar o prazer de recordar os prazeres de hoje. Não temais, amigos meus, que a bárbara dissonância de Saco e de seus foliões venha interromper nossa diversão, confundindo-nos com seus turbulentos e clamorosos prazeres. As esfuziantes musas esperam à nossa volta e, com sua encantadora sinfonia, que bastaria para derreter o coração dos lobos e tigres do selvagem deserto, inspiram a cada coração uma suave alegria. A paz, a harmonia e a concórdia reinam neste refúgio, e o silêncio só é perturbado pela música de nossas canções, ou pelas joviais inflexões de nossas vozes amigas. Mas escutai! O favorito das musas, o gentil Damon, toca sua lira, e, acompanhando as harmoniosas notas com sua mais harmoniosa canção, inspira-nos o mesmo feliz desvario da fantasia pelo qual ele próprio se deixa transportar. "Vós, felizes jovens", canta ele, "vós, favorecidos pelo céu, enquanto a luxuriante primavera espalha sobre vós todas as suas floridas homenagens, não deixeis que a Glória vos seduza com seu brilho ilusório, levando-vos a passar entre riscos e perigos desta deliciosa estação, este apogeu da vida. A sabedoria vos aponta a estrada do prazer, e também a natureza vos convida a segui-Ia por esse macio e florido caminho. Fechareis vossos ouvidos a sua voz imperiosa? Endurecereis vosso coração perante suas suaves tentações? Oh, iludidos mortais! perder assim vossa juventude, assim jogar fora presente tão valioso, desperdiçar assim bênção tão perecível! Contemplai bem vossa recompensa. Pesai bem essa glória que tanto alicia vossos orgulhosos corações, e vos seduz com vossos próprios louvores. É um eco, um sonho, melhor, a sombra de um sonho, dissipada pelo primeiro vento que vier, perdida por cada sopro contrário da ignorante e maledicente multidão. Não receais que seja a própria morte a arrebatar-vo-la. Mas vede! Enquanto ainda estais vivos, a calúnia dela vos priva, a ignorância a despreza, a natureza não a aprecia; só a fantasia, renunciando a todos os prazeres, aceita esta fútil recompensa, tão vazia e instável como ela própria." E assim as horas foram insensivelmente passando, levando em seu pomposo cortejo todos os prazeres dos sentidos e todas as alegrias da harmonia e da amizade. A sorridente Inocência vai fechando a procissão, e apresentando-se a nossos olhos fascinados embeleza toda a cena, tornando a visão daqueles prazeres tão arrebatadora, depois de já passados, como quando, em risonha atitude, ainda estavam de nós se aproximando. Mas o sol já mergulhou por trás do horizonte, e a escuridão, silenciosamente nos envolvendo, já enterrou a natureza inteira numa sombra universal. "Regozijai-vos, meus amigos, continuai vosso repasto, ou trocai-o por um suave repouso. Embora ausente, vossa alegria ou vossa tranquilidade ainda continuarão sendo minhas." Mas para onde vais? E que novos prazeres te subtraem a nossa companhia? Pode alguma coisa ser agradável sem teus amigos? Pode alguma coisa dar prazer, quando não a partilhamos? "Sim, meus amigos, a alegria que agora procuro não permite vossa participação. Só aqui desejo vossa ausência, e só aqui posso encontrar compensação suficiente para a perda de vossa companhia." Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que em minha volta espalham uma dupla noite, quando quase logo, creio, avisto através da penumbra a deslumbrante Célia, a amada de meus desejos, que vagueia com impaciência pelo bosque e, adiantando-se à hora prevista, silenciosamente censura meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando todo pensamento ansioso ou zangado, não deixa lugar para nada senão mútua alegria e arrebatamento. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem meu peito inflamado? As palavras são fracas demais para descrever meu amor, e se, por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei por transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos basta para tirar-me esta dúvida, e ao mesmo tempo que exprimem tua paixão servem também para incendiar a minha. Como é amável esta solidão, este silêncio, esta escuridão! Nenhum objeto vem importunar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente cheio de nossa mútua felicidade, que se apodera inteiramente do espírito e produz uma satisfação que iludidos mortais em vão procuram nos outros prazeres. Mas por que teu peito estremece com esses suspiros, e tuas luminosas faces de lágrimas são banhadas? Por que distrair teu coração com tão vã ansiedade? Por que tantas vezes me perguntas quanto tempo meu amor vai durar? Desgraçadamente, minha Célia, não sei responder a essa pergunta. Acaso sei quanto tempo minha vida ainda vai durar? Mas também isto perturba teu temo coração? Acaso a imagem de nossa frágil mortalidade te está constantemente presente, para desanimar nossas horas mais felizes e envenenar mesmo as alegrias que o amor inspira? Pensa que, se a vida é frágil e a mocidade é transitória, mais motivo ainda para bem usar o presente momento, sem nada perder de tão perecível existência. Apenas mais um momento, e esta não será mais. Seremos como se jamais houvéssemos sido, nem uma só recordação de nós restará à face da terra, e nem as fabulosas sombras do além nos darão guarida. Nossa estéril ansiedade nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas atuais dúvidas, sobre a causa original de todas as coisas, jamais, infelizmente, serão dissipadas. De uma só coisa podemos estar certos - é que, se há um espírito supremo que preside a nossos destinos, deve agradar-lhe ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para que fomos criados. Que esta reflexão dê repouso a teus ansiosos pensamentos, mas sem tomar tuas alegrias demasiado sérias, levando-te a nelas te fixares para sempre. Basta uma vez ter conhecido esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma vã superstição. Mas, ao mesmo tempo que a juventude e a paixão, minha bela, satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar a nossas amorosas carícias. O ESTÓICO Há uma evidente e fundamental diferença na conduta da natureza para com o homem e para com os outros animais, no fato de ter dotado o primeiro com um sublime espírito celeste, conferindo-lhe certa afinidade com os seres superiores, e ao mesmo tempo não permitir que essas nobres faculdades fiquem ociosas ou letárgicas - pelo contrário, ela o obriga, pela necessidade, a empregar constantemente o máximo de arte e de trabalho. Muitas das necessidades dos animais são satisfeitas pela natureza, pois esta beneficente mãe de todas as coisas deu-lhes roupa e deu-lhes armas. E, mesmo nos casos em que seu trabalho é necessário, a natureza, implantando instintos, continua a oferecer-lhes a arte, orientando-os para seu próprio bem com seus infalíveis preceitos. Mas o homem, nu e inerme, exposto aos rudes elementos, vai lentamente saindo dessa situação indefesa, graças ao cuidado e à vigilância de seus pais. E, mesmo depois de chegar ao máximo de crescimento e perfeição, possui apenas a capacidade de subsistir graças a. seu próprio cuidado e vigilância. Tudo é conquistado com esforço e habilidade e, mesmo quando a natureza fornece os materiais, ainda assim estes são rudes e inacabados, até o momento em que o trabalho, sempre ativo e inteligente, os tira do estado bruto em que se encontram e os adapta para uso e conveniência dos homens. Reconhece pois, homem, a beneficência da natureza, pois foi ela que te deu essa inteligência que satisfaz todas as tuas necessidades. Mas não deixes que a indolência, sob a falsa aparência da gratidão, te persuada a te contentares com suas dádivas. Queres voltar à erva crua como alimento, ao céu aberto como abrigo, e aos paus e pedras como defesa contra as rapaces feras do deserto? Então volta também a teus costumes selvagens, a tua timorata superstição, a tua brutal ignorância, e deixa-te cair mais baixo ainda que esses animais cuja condição admiras, e tanto gostarias de imitar. Além de oferecer-te a arte e a inteligência, tua terna mãe natureza encheu todo o planeta de materiais com que podes usar teus talentos. Dá ouvidos a sua voz, que tão claramente diz que tu próprio te deves tornar também objeto de teu trabalho, e que só mediante a arte e a atenção podes adquirir aquela habilidade que te elevará até o lugar que te compete no universo. Olha para esse artífice que transforma uma pedra rude e informe num nobre metal e, moldando esse metal com suas mãos habilidosas, cria, como num passe de mágica, todas as armas que precisa para sua defesa e todos os utensílios que servem a suas conveniências. Não foi a natureza que lhe deu essa habilidade - foram o uso e a prática que o ensinaram, e se queres rivalizar com seu sucesso tens que seguir seus passos laboriosos. Mas, ao mesmo tempo que ambiciosamente aspiras ao aperfeiçoamento de tuas faculdades e poderes corpóreos, serias capaz de mesquinhamente desprezar teu espírito, e com despropositada preguiça deixá-lo no mesmo estado rude e inculto com que veio das mãos da natureza? Pouco própria de um ser racional seria tal negligência e loucura. Se a natureza foi frugal em suas dádivas e presentes, mais uma razão para que se torne necessário que a arte supra suas deficiências. Se ela foi generosa e liberal, não esqueças que mesmo assim ela espera trabalho e aplicação da tua parte, e é capaz de vingar-se proporcionalmente a tua negligente ingratidão. O gênio mais fértil, do mesmo modo que o solo mais rico, quando não é cultivado, fica cheio das ervas mais daninhas e, em vez de vinhas e oliveiras para prazer e uso do homem, só dá a seu preguiçoso dono a mais abundante colheita de venenos. O objetivo fundamental de todo esforço humano é alcançar a felicidade. Foi para isso que se inventaram as artes, que as ciências foram cultivadas, que as leis foram decretadas e a sociedade foi organizada, pela mais profunda sabedoria dos patriotas e legisladores. Mesmo o selvagem mais solitário, exposto à inclemência dos elementos e à fúria dos animais selvagens, nem por um momento esquece essa grande finalidade de seu ser. Mesmo em sua ignorância de todas as artes da vida, continua tendo em vista o fim de todas essas artes, e procura sofregamente a felicidade no meio da escuridão que o envolve. E, na mesma medida em que o selvagem mais primitivo é inferior ao cidadão civilizado, que goza sob a proteção das leis todas as vantagens inventadas pelo trabalho, assim também este mesmo cidadão é inferior ao homem virtuoso e ao verdadeiro filósofo, que comanda seus apetites, subjuga suas paixões, e a quem a razão ensinou a atribuir um justo valor a todo objeto de desejo. Pois não há, para todos os outros objetivos, necessidade de uma arte e de um aprendizado? E não haverá arte alguma, nem regra, nem preceitos, capazes de dirigir-nos quanto a este aspecto tão fundamental? Será possível que algum prazer determinado seja conseguido sem habilidade, e será possível que o todo seja regulado, sem reflexão ou inteligência, só com a orientação cega do apetite e do instinto? Nesse caso, sem dúvida nunca se cometeriam erros neste terreno, e todo homem, mesmo o mais dissoluto e negligente, procederia à busca da felicidade descrevendo um movimento tão regular como o dos corpos celestes, quando, guiados pela mão do Todo-Poderoso, rolam pelas etéreas planícies. Mas se frequentemente, se inevitavelmente se cometem erros, passemos a registrar esses erros, a examinar suas causas, a ponderar sua importância, a procurar sua solução. A partir dai, quando tivermos estabelecido todas as regras de conduta, seremos filósofos. Quando tivermos aplicado essas regras à prática, seremos sábios. Comparáveis a grande número de artistas subordinados, usados para formar as diversas rodas e molas de uma máquina, são todos aqueles que se distinguem em qualquer das várias artes da vida. Ele é o mestre-artesão que junta todas essas partes, as movimenta segundo uma justa harmonia e proporção, e consegue a verdadeira felicidade como resultado de sua ordenada conjugação. Se tens em vista esse objeto tão tentador, poderão alguma vez o esforço e a atenção necessários para atingir esse fim parecer-te excessivos e intoleráveis? Não esqueças que esse mesmo esforço é o principal ingrediente da felicidade a que aspiras, e que todo prazer depressa se toma insípido e desagradável quando não foi adquirido com trabalho e fadiga. Olha os robustos caçadores que se erguem de seus macios leitos, sacodem o sono que ainda pesa em suas pálpebras pesadas e, quando a Aurora ainda mal cobriu os céus com seu manto flamejante, já se apressam em direção à floresta. Deixam atrás de si, em suas próprias casas e nas planícies circundantes, animais de toda a espécie, cuja carne fornece o mais delicioso alimento, e que se oferecem facilmente ao golpe fatal. O homem laborioso despreza tão fácil tarefa. O que ele procura é uma presa que se oculta a sua busca ou que foge de sua perseguição, ou que se defende com violência. Depois de exercitar na caça todas as paixões de seu espírito e todos os membros de seu corpo, encontra enfim as delícias do repouso, e compara alegremente estes prazeres com os de sua árdua tarefa. E não é verdade que o esforço vigoroso pode dar prazer, mesmo quando empenhado na perseguição da mais mesquinha presa, que muitas vezes escapa a nossa perseguição? E que o mesmo esforço pode tomar o cultivo de nosso espírito, a moderação de nossas paixões e o esclarecimento da razão uma ocupação agradável, quando a cada dia tomamos consciência de nosso progresso e vemos nossos traços e atitudes interiores cada vez brilhando mais com novos encantos? Começa por te curares dessa letárgica indolência. A tarefa não é difícil: basta que experimentes as delícias do trabalho honesto. Esforça-te por conhecer o justo valor de cada empreendimento. Não é preciso muito estudo: compara, nem que seja uma só vez, o espírito e o corpo, a virtude e a fortuna, a glória e o prazer. Passarás então a compreender as vantagens do trabalho. Terás então consciência de quais são os objetos que merecem teu esforço. É em vão que procuras repouso em leitos de rosas, é em vão que esperas encontrar satisfação nos mais deliciosos vinhos e frutos. Tua própria indolência se torna um cansaço, teu próprio prazer gera a indiferença. O espírito, por falta de exercício, passa a achar insípida e detestável toda delícia, e já também o corpo, cheio de humores nocivos, sente os tormentos de suas múltiplas doenças, tua parte mais nobre tem consciência do veneno que a invade e em vão procura aliviar sua ansiedade com novos prazeres, o que agrava ainda mais a fatal enfermidade. Não preciso dizer-te que, com essa sôfrega busca de prazer, te expões cada vez mais ao azar e aos acidentes, pois ligas tuas afeições a objetos externos, que a sorte pode num só instante arrebatar-te. Suponhamos que apesar de tudo tuas estrelas indulgentes te favorecem com as delícias da riqueza e das posses. Posso provar-te que mesmo no meio de teus luxuosos prazeres ainda és infeliz, e que devido a um excesso de indulgência te tornaste incapaz de gozar o que a próspera fortuna ainda te permite possuir. Mas é inegável que a instabilidade da fortuna é um aspecto que não pode ser esquecido ou deixado de lado. A felicidade é impossível quando não há segurança, e não pode haver segurança onde não há fortuna. Mesmo que esta instável divindade não voltasse sua fúria contra ti, mesmo assim o receio dela ainda te atormentaria, perturbaria teu sono, povoaria teus sonhos, e iria estragar a alegria de teus mais deliciosos banquetes. O templo da sabedoria está assente num rochedo, acima da fúria dos elementos desencadeados, e inacessível a toda a maldade do homem. Embaixo, estoura o trovão, retumbante, e os instrumentos, mais terríveis ainda, da fúria humana não conseguem alcançar alturas tão sublimes. O sábio, respirando esse ar sereno, olha para baixo, com um prazer misturado de compaixão, para os erros dos mortais iludidos, que cegamente procuram o verdadeiro caminho da vida, e buscam a riqueza, a nobreza, a honra e o poder, em vez da verdadeira felicidade. Vê que a maioria é desapontada em suas mais caras aspirações. Alguns lamentam que, tendo uma vez possuído o objeto de seus desejos, ele lhes tenha sido arrebatado pela fortuna invejosa. E todos se queixam que mesmo a satisfação de suas próprias aspirações seria incapaz de dar-lhes a felicidade, ou de aliviar a ansiedade de seus espíritos confundidos. Mas será o sábio capaz de se proteger sempre com esta indiferença filosófica, e de contentar-se com o lamentar das misérias da humanidade, sem jamais se esforçar por aliviá-las? Cederá ele constantemente a esta severa sabedoria que, pretendendo elevá-lo acima dos acidentes humanos, vai na realidade endurecer seu coração, tornando-o indiferente aos interesses da humanidade e da sociedade? Não: ele sabe que nessa sombria Apatia não pode encontrar-se nem a verdadeira sabedoria nem a verdadeira felicidade. Ele sente com demasiada intensidade o encanto das afecções sociais para contrariar uma inclinação tão doce, tão natural e tão virtuosa. Mesmo quando, banhado em lágrimas, lamenta as misérias da raça humana, de seu país, de seus amigos, e, incapaz de socorrê-los, só pela compaixão pode aliviá-los, mesmo então ele se regozija com sua generosa disposição, sentindo uma satisfação superior à do desejo mais saciado. Os sentimentos humanitários são fortes a tal ponto que chegam a iluminar a própria face da tristeza, e operam do mesmo modo que o sol, quando este, cobrindo com sua luz uma nuvem escura ou a chuva caindo, nelas pinta as cores mais gloriosas que é possível encontrar em todo o ciclo da natureza. Mas não é apenas aqui que as virtudes sociais manifestam sua energia. Sejam quais forem os ingredientes com que sejam misturadas, são sempre elas que predominam. Um desgosto é incapaz de obliterá-las, portanto tampouco o prazer sensual pode obscurecê-las. As alegrias do amor, mesmo as mais tumultuosas, não conseguem banir os ternos sentimentos da simpatia e da afeição. A principal influência dessas alegrias é, até, derivada dessa generosa paixão, pois, quando se apresentam sozinhas, nada oferecem ao espírito infeliz senão lassitude e indiferença. Olha esse jovial debochado, que professa o maior desprezo por todos os prazeres, fora os do vinho e da folia. Separado de seus companheiros, como uma centelha de uma fogueira, enquanto antes contribuía para a chama geral, agora bruscamente sua alacridade se extingue. E, embora rodeado de toda espécie de prazeroso objeto, passa a abominar o suntuoso banquete, e prefere até o mais abstrato estudo e especulação, como mais agradáveis e distrativos. Mas nunca as paixões sociais proporcionam prazeres tão exaltantes, nem fazem aparição tão gloriosa perante os olhos de Deus e do homem, do que quando, sacudindo toda mistura terrena, se associam aos sentimentos de virtude, impelindo-nos para a prática de louváveis e meritórias ações. Tal como as cores harmoniosas dão e recebem lustro de sua amigável união, assim também ocorre com esses nobres sentimentos do espírito humano. Veja-se o triunfo da natureza na afeição paterna! Qual a paixão egoísta, ou a delícia sensual que se lhe pode comparar, quando um homem exulta com a prosperidade e a virtude de seus filhos, ou acorre em seu auxílio, passando pelos mais ameaçadores e tremendos perigos? Purificai mais ainda esta generosa paixão, e admirareis mais ainda suas refulgentes glórias. Que encantos encontramos na harmonia dos espíritos, e numa amizade baseada na mútua estima e gratidão! Que satisfação em socorrer os aflitos, em reconfortar os infelizes, em levantar os caídos, e em deter a carreira da cruel fortuna, ou do homem ainda mais cruel, em seus insultos aos bons e virtuosos! Mas que alegria mais sublime é possível, nas vitórias sobre o vício e sobre a miséria, do que quando pelo virtuoso exemplo ou a sábia exortação nossos semelhantes são ensinados a dominar suas paixões, a renunciar a seus vícios, a subjugar seus piores inimigos, que habitam dentro de seu próprio peito? Mas estes objetos são ainda demasiado limitados para o espírito humano, que é de origem celeste e se expande com as mais divinas e mais amplas afecções, e, dedicando sua atenção para além de parentes e conhecidos, estende seus benevolentes desejos à mais distante posteridade. Encara a liberdade e as leis como fontes da felicidade humana, e dedica-se com o maior entusiasmo a sua guarda e proteção. Sacrifícios, perigos, a própria morte têm seus encantos, quando enfrentados em prol do bem público, enobrecendo aquele ser que generosamente sacrificamos aos interesses de nosso país. Feliz o homem a quem a indulgente fortuna permite pagar à virtude o que deve à natureza, fazendo a generosa oferta do que de qualquer forma deve ser-lhe arrebatado pela cruel necessidade! No verdadeiro sábio e patriota se reúne tudo o que pode enobrecer a natureza humana, elevando o homem mortal a certa semelhança com a divindade. A mais suave benevolência, a mais indômita resolução, os mais temos sentimentos, o mais sublime amor da virtude, tudo isto vai sucessivamente animando seu arrebatado coração. Que satisfação, quando ele olha para dentro de si mesmo e vê as mais turbulentas paixões harmonizadas numa justa concórdia, banindo todo som discordante dessa música encantadora! Se a contemplação da beleza, mesmo inanimada, é tão deliciosa, se ela entusiasma os sentidos, mesmo quando a bela forma nos é estranha, quais não devem ser os efeitos da beleza moral? E que influência não deve ela ter quando embeleza nosso próprio espírito, como resultado de nossa própria reflexão e de nosso próprio esforço? Mas qual é a recompensa da virtude? E que recompensa foi prevista pela natureza para sacrifícios tão importantes como o da vida e o da fortuna, que frequentemente temos que fazer-lhe? Oh, filhos da terra! - ignorais o valor dessa celestial amante? Sois capazes de questionar mesquinhamente o que lhe cabe, ao mesmo tempo que observais seus genuínos encantos? Não esqueçais que a natureza foi indulgente para com a fraqueza humana, e não deixou nu e indefeso seu filho favorito. Ela ofereceu à virtude o mais rico dos dotes - mas cuidou de evitar que os atrativos do interesse cativassem pretendentes insensíveis ao valor natural de tão divina beleza, sabiamente fazendo que esse dote só tivesse encantos aos olhos dos que estão já transportados pelo amor da virtude. A glória é o troféu da virtude, a doce recompensa de honrosos esforços, a triunfante coroa que vai cobrir a cabeça pensativa do patriota desinteressado ou a fronte empoeirada do guerreiro vitorioso. Enaltecido por prêmio tão sublime, o homem virtuoso contempla com desprezo todas as ilusões do prazer e todas as ameaças do perigo. A própria morte perde seus terrores, quando ele pensa que seu domínio atinge apenas uma parte de si mesmo, e que, apesar da morte e do tempo, da fúria dos elementos e da eterna vicissitude das coisas humanas, já lhe está garantida uma fama imorredoura entre os filhos dos homens. É indubitável a existência de um Ser que preside a todo o universo, e que com infinita sabedoria e poder impõe aos elementos discordantes uma justa ordem e proporção. Que os pensadores especulativos discutam até que ponto vai a proteção desse ser beneficente, e se prolonga ou não nossa existência para além do túmulo, a fim de atribuir à virtude sua justa recompensa e garantir seu completo triunfo. O homem de moral, sem nada decidir sobre assunto tão duvidoso, satisfaz-se com a sorte que lhe foi reservada pelo Supremo Ordenador de todas as coisas. Aceita com gratidão essa recompensa suplementar que lhe é oferecida, mas, se se vir desapontado, não considerará a virtude uma palavra vazia. Pelo contrário, justamente considerando-a sua própria recompensa, reconhece grata mente a generosidade de seu Criador, que ao chamá-la à existência lhe deu oportunidade de vir a adquirir tão inestimável riqueza. O PLATÔNICO “Ou o homem de contemplação e devoção filosófica. (Nota do Autor)” Para alguns filósofos parece constituir motivo de surpresa que, sendo todos os homens dotados da mesma natureza e possuidores das mesmas faculdades, apesar disso sejam tão imensamente diferentes em suas ações e tendências, e que uns condenem intransigentemente o que outros prazerosamente procuram. Para alguns constitui motivo de surpresa ainda maior que a mesma pessoa difira de si própria tão imensamente, em ocasiões diferentes, chegando a rejeitar com desdém, depois da posse, o que antes era objeto de todos os seus anseios e desejos. Quanto a mim, esta febril incerteza e irresolução da conduta humana parece completamente inevitável; é impossível que uma alma racional, feita para a contemplação do Ser Supremo e de suas obras, jamais consiga chegar à tranquilidade e à satisfação, quando é detida pela ignóbil procura do prazer sensual ou dos aplausos populares. A divindade é um ilimitado oceano de glória e bem-aventurança, e os espíritos humanos são regatos menores, que tiveram origem nesse oceano, e continuam procurando, em meio a suas errâncias, voltar a esse oceano e perder-se nessa imensidade de perfeição. Quando desviados deste curso natural pelo vício ou pela insensatez, tornam-se furiosos e enraivecidos e, transformando-se em impetuosa torrente, passam a espalhar o horror e a devastação pelas planícies circundantes. É em vão que cada um, por meio de pomposas frases e apaixonadas expressões, recomenda a todos os outros seu próprio caminho, convidando os ouvintes crédulos a imitar sua vida e seus costumes. O coração vem trair esta atitude, e sente com a maior intensidade, mesmo em meio ao mais fragoroso sucesso, o caráter insatisfatório de todos aqueles prazeres que o afastam de seu verdadeiro objeto. Examinemos o homem voluptuoso antes de gozar seus prazeres, medindo a veemência de seu desejo e a importância de seu objeto: veremos que toda a sua felicidade deriva unicamente daquela impaciência do pensamento que o arranca a si mesmo, desviando-lhe o olhar de sua culpa e de sua miséria. Contemplemo-lo um momento depois, quando já gozou o prazer que tão ansiosamente buscava. A consciência de sua culpa e de sua miséria cai sobre ele com uma dupla angústia: o espírito atormentado pelo medo e pelo remorso, e o corpo deprimido pela repulsa e pela saciedade. Mas eis que personagem mais augusto, ou pelo menos mais altivo, ousadamente se submete a nossa censura. E, reivindicando a dignidade de filósofo e moralista, propõe sujeitar-se ao mais rigoroso exame. Com oculta mas visível impaciência, exige nossa aprovação e nosso aplauso, e parece ofendido que mesmo por um só momento hesitemos, antes de nos desfazermos em admiração por sua virtude. Perante esta impaciência, hesito mais ainda, e começo a escrutinar os motivos de sua aparente virtude. Mas contemplai! Antes que possa iniciar esta investigação, eis que de mim se afasta para, dirigindo seu discurso àquela multidão de ouvintes desatentos, prazerosamente fustigá-los com suas mirabolantes pretensões. O filósofo!, é vã tua sabedoria, e inútil tua virtude. Procuras os ignorantes aplausos dos homens, não as sólidas reflexões de tua própria consciência, ou a mais sólida ainda aprovação daquele Ser que, com um só olhar de seu olho que tudo vê, penetra o universo inteiro. Sem dúvida tens consciência do vazio de tua pretensa probidade, pois, ao mesmo tempo que te consideras um cidadão, um filho, um amigo, esqueces teu mais sublime soberano, teu verdadeiro pai, teu maior benfeitor. Onde está a adoração devida à infinita perfeição, donde deriva tudo o que é bom e valioso? Onde a gratidão devida a teu Criador, que te tirou do nada, te colocou no meio de todas estas relações com as outras criaturas e, ao mesmo tempo que te exige o cumprimento do dever de cada relação, te proíbe negligenciar o que deves a ele próprio, o mais perfeito dos seres, ao qual te encontras ligado pelo mais apertado dos laços? Mas, para ti, teu ídolo és tu mesmo. Veneras tuas perfeições imaginárias - ou melhor, consciente de tuas imperfeições reais, tentas apenas iludir o mundo e satisfazer teu capricho com a multiplicação de teus ignorantes admiradores. E assim, não te bastando desprezar o que de mais excelente há no universo, desejas pôr em seu lugar o que há de mais vil e desprezível. Olha para todo o trabalho produzido pela mão do homem, para todas as invenções do gênio humano, sobre as quais pretendes possuir tão sutil discernimento: verás que a mais perfeita produção é ainda a que provém do mais perfeito pensamento, e que é unicamente o Espírito que admiramos, quando aplaudimos as graças de uma estátua bem proporcionada ou a simetria de um nobre pilar. Neles, o estatuário e o arquiteto continuam visíveis, levando-nos a refletir sobre a beleza de sua arte e de sua inventividade, capazes de extrair tais expressões e proporções de uma massa de matéria informe. Tu mesmo reconheceste esta superior beleza do pensamento e da inteligência, quando nos convidaste a contemplar, em tua conduta, a harmonia das afecções, a dignidade dos sentimentos, e todas aquelas graças do espírito que mais merecem nossa atenção. Mas por que paraste tão depressa? Não há nada mais que te pareça valioso? Em meio a teus inflamados aplausos à beleza e à ordem, continuas a ignorar onde pode ser encontrada a mais consumada beleza, a mais perfeita ordem T Compara as obras de arte com as da natureza. Umas não são mais do que imitações das outras. Quanto mais a arte se aproxima da natureza, mais perfeita é considerada. Mas, ainda assim, como ficam longe as melhores aproximações, e como é imenso o abismo que podemos observar entre elas! A arte copia apenas o exterior da natureza, esquecendo as molas e princípios interiores, os mais admiráveis, por superarem seu poder de imitação, por ficarem muito além dê sua compreensão. A arte copia apenas as mais diminutas produções da natureza, desesperando de atingir aquela grandeza e magnificência que tanto nos enchem de admiração nas obras magistrais de seu original. Será então possível sermos cegos a ponto de não descortinar uma inteligência e um desígnio no prodigioso e sublime mecanismo do universo? Sermos estúpidos a ponto de não sentirmos os mais ardentes arroubos de adoração e veneração, perante a contemplação desse ser inteligente, tão infinitamente bom e sábio? A mais perfeita felicidade deve indubitavelmente derivar da contemplação do mais perfeito objeto. Mas qual o objeto mais perfeito que a beleza e a virtude? E onde se pode encontrar beleza igual à do universo? Ou virtude que possa comparar-se à benevolência e justiça da Divindade? Se alguma coisa é capaz de diminuir o prazer desta contemplação, só pode ser as limitações de nossas faculdades, que ocultam de nós a parte mais importante dessas belezas e perfeições, ou então a brevidade de nossa vida, que não dá tempo suficiente para delas nos instruirmos. Mas serve-nos de conforto que, se soubermos usar com merecimento as faculdades que aqui nos foram atribuídas, elas serão ampliadas num outro estado de existência, a fim de fazer de nós mais adequados adoradores de nosso Criador. E que aquela tarefa que no tempo jamais poderá ser concluída será levada a cabo numa eternidade. O CÉTICO Alimentei durante muito tempo certa desconfiança em relação às decisões dos filósofos sobre todos os assuntos, e encontrei em mim próprio mais tendência para contestar suas conclusões do que para conceder-lhes meu assentimento. Há um erro a que todos eles, quase sem exceção, parecem sujeitos: limitam excessivamente seus princípios, tornando-se incapazes de dar conta da imensa variedade que a natureza sempre manifesta em suas operações. Quando o filósofo consegue estabelecer um princípio fundamental, talvez capaz de explicar um grande número de efeitos naturais, passa a aplicar o mesmo princípio ao universo inteiro, atribuindo a esse princípio todos os fenômenos, mesmo que seja à custa do mais violentamente absurdo raciocínio. Dada a estreiteza e limitação de nosso próprio espírito, somos incapazes de abarcar com nosso entendimento toda a ampla variedade da natureza - e imaginamos que ela é tão limitada em suas operações como nós mesmos somos em nossa especulação. Mas, se há um aspecto em que se deve suspeitar constantemente desta enfermidade dos filósofos, é em sua reflexão sobre a vida humana, e os métodos para conquistar a felicidade. Neste caso não é apenas pela estreiteza de seu entendimento que são arrastados, é também pela estreiteza de suas paixões. Quase todos eles têm uma tendência predominante, à qual se submetem seus outros desejos e paixões, e que os dirige durante todo o caminho de suas vidas, embora talvez com alguns intervalos. É-lhes difícil admitir que as coisas que lhes parecem completamente indiferentes possam jamais constituir uma fonte de prazer para as outras pessoas, ou sejam capazes de possuir atrativos que escapam inteiramente a sua observação. Seus próprios empreendimentos são sempre, em sua opinião, os mais apaixonantes; os objetos de suas paixões, os mais valiosos; e o caminho que percorrem é o único capaz de conduzir à felicidade. Mas, se estes preconceituosos pensadores refletissem por um só momento, veriam que há exemplos e argumentos em número suficiente para desenganá-los, e levá-los a dar maior amplitude a suas máximas e princípios. Pois não veem a imensa variedade de tendências e orientações existente na espécie humana, onde cada homem parece plenamente satisfeito com a direção tomada por sua própria vida, e consideraria a maior das infelicidades ver-se obrigado a levar a vida de seu vizinho? Pois não sentem em si mesmos que o que agrada num momento pode desagradar em outro momento, devido a uma modificação das preferências, e que está fora de suas possibilidades, mesmo através do maior esforço, recuperar aquele gosto ou apetite que antes dava encanto ao que agora parece indiferente ou desagradável? Que sentido têm então essas preferências de ordem geral pela vida da cidade ou pela vida do campo, por uma vida de ação ou uma vida de prazer, por uma vida reclusa ou pela vida em sociedade - quando, além das diferenças de inclinação em pessoas diferentes, a experiência de cada um é de molde a convencer-nos de que cada uma dessas maneiras de viver pode ser agradável por sua vez, e que sua própria variedade, ou sua judiciosa mistura, se contam entre os fatores que mais contribuem para tornar todas elas agradáveis? Mas será possível admitir que esta questão seja resolvida de maneira inteiramente aventurosa? Deve cada um ouvir apenas suas próprias tendências e temperamento, a fim de escolher o caminho de sua vida, sem usar a razão para informá-lo de qual a orientação mais desejável, capaz de conduzir à felicidade da maneira mais segura? Não haverá diferença alguma, nesse caso, entre a conduta de um homem e a de outro? Minha resposta é que há uma grande diferença. Um homem que segue suas inclinações na escolha do caminho de sua vida pode empregar meios muito mais seguros para atingir o sucesso do que outro, que seja levado pelas mesmas inclinações a seguir o mesmo caminho e a perseguir o mesmo objetivo. A riqueza é o principal objeto de vossos desejos? Adquiri competência em vossa profissão, sede diligentes no exercício dessa profissão, ampliai o círculo de vossos amigos e conhecidos; evitai os prazeres e as despesas, e nunca sejais generosos a não ser tendo em vista ganhar mais do que poderíeis economizar através da frugalidade. Ambicionais conquistar a admiração do público? Evitai igualmente os extremos da arrogância e do servilismo. Fazei notar que atribuís valor a vós mesmos, mas sem mostrar desprezo pelos outros. Se cairdes em algum destes extremos, ou ireis provocar o orgulho dos outros com vossa insolência, ou ireis ensiná-los a desprezar-vos com vossa timorata humildade, e com a baixa opinião que aparentais ter de vós mesmos. Direis que estas são as máximas da mais vulgar prudência e discrição, as que todo pai inculca em seu filho, e que todo indivíduo sensato segue na maneira de viver que escolheu. - Nesse caso, que mais desejais? Vindes procurar um filósofo como se procura um charlatão, a fim de aprender alguma coisa pela magia ou pela feitiçaria, para além do que pode ser ensinado pela mais vulgar prudência e discrição? - Sim: viemos procurar um filósofo para aprender como devemos escolher nossos objetivos, mais do que os meios para atingir esses objetivos. Queremos saber qual o desejo que devemos satisfazer, qual a paixão a que devemos entregar-nos, qual o apetite a que devemos ceder. Quanto ao resto, confiamos nossa instrução ao senso comum e às principais máximas que vigoram no mundo. Nesse caso lamento ter pretendido ser um filósofo: pois vossas perguntas me deixam extremamente perplexo. E em perigo de passar por pedante ou escolástico, se minha resposta for demasiado rígida e severa, ou de ser tomado por um apologista do vício e da imoralidade, se ela for demasiado livre e ligeira. Todavia, para satisfazer-vos, darei minha opinião sobre o assunto, desejando apenas que a considereis de tão pouca consequência como eu mesmo a considero. Não a achareis, assim, digna de troça nem de zanga. Se há algum princípio, de entre os que a filosofia nos ensina, em que possamos ter inteira confiança, este me parece poder ser considerado certo e indubitável: que nada é, em si mesmo, valioso Ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme, pois estes atributos derivam da estrutura e constituição peculiares das afecções e sentimentos humanos. O que a um animal parece o mais delicioso alimento é por outro considerado detestável. O que enche de deleite a sensibilidade de um é capaz de produzir desagrado em outro. É reconhecidamente este o caso em tudo o que diz respeito aos sentidos corpóreos. E um exame mais rigoroso do assunto mostrará que essa observação continua a ser válida quando o espírito colabora com o corpo, misturando seus sentimentos aos apetites exteriores. Se acaso um amante apaixonado desejar apresentar-vos o retrato de sua amada, dir-vos-á encontrar-se à míngua de palavras capazes de descrever seus encantos, e perguntar-vos-à com a maior seriedade se alguma vez encontrastes uma deusa ou um anjo. Se responderdes que tal nunca aconteceu, dir-vos-á ele que vos é impossível conceber beleza tão divina como a de sua amante, ou formas tão completas, traços tão bem proporcionados, ou um ar tão atraente, tal doçura de caráter, ou tão alegre temperamento. Não obstante, nada podereis inferir de todo este discurso, a não ser que o pobre homem está apaixonado, e que o apetite geral entre os sexos, que a natureza instilou em todos os animais, em seu caso se concentrou num determinado objeto devido a certas qualidades que lhe dão prazer. Aquela mesma divina criatura parecerá, não apenas a um animal diferente, mas também a um homem diferente, um simples ser mortal, e será olhada com a mais completa indiferença. A natureza deu a todos os animais um mesmo preconceito em favor de suas crias. Mal a indefesa criança vem à luz, logo seus pais lhe dedicam, embora a quaisquer outros olhos ela apareça como uma mísera e mesquinha criatura, a maior afeição possível, dando-lhe preferência sobre todo outro objeto, por mais perfeito e consumado que seja. É apenas a paixão, derivada da formação e estrutura originais da natureza humana, que atribui valor ao mais insignificante dos objetos. Podemos levar mais longe a mesma observação, concluindo que, mesmo quando o espírito trabalha sozinho, como ao experimentar o sentimento de censura ou aprovação, declarando disforme e odioso um dado objeto, e declarando belo e apreciável outro; sustento que, mesmo neste caso, essas qualidades não se encontram realmente nos objetos, pertencendo inteiramente aos sentimentos do espírito que censura ou que aprova. Reconheço que será mais difícil fazer esta proposição aparecer como evidente e, por assim dizer, palpável, aos olhos de pensadores negligentes. Porque a natureza é mais uniforme nos sentimentos do espírito do que na maior parte das sensações do corpo, dando origem a uma semelhança mais exata no lado interno do que no lado externo do gênero humano. No gosto espiritual há algo que se aproxima da ordem dos princípios, e os críticos têm a possibilidade de argumentar e divergir de maneira mais plausível do que os cozinheiros ou os perfumistas. Pode contudo observar-se que esta uniformidade do gênero humano não impede que haja uma considerável diferença nas opiniões relativas à beleza e ao valor, nem que a educação, o hábito, os preconceitos, ou o capricho e a disposição do momento façam frequentemente variar os gostos dessa espécie. Jamais será possível convencer alguém, que não esteja habituado à música italiana, e não tenha um ouvido capaz de seguir suas complexidades, de que uma melodia escocesa não lhe é muito superior. Além de nosso próprio gosto, não há um único argumento que possamos empregar em nosso favor, e para nosso antagonista seu próprio gosto sempre constituirá um argumento mais convincente em sentido contrário. Se os dois forem sensatos, ambos admitirão que o outro pode ter razão e, conhecendo numerosos outros exemplos desta diversidade de gostos, ambos reconhecerão que a beleza e o valor são de natureza meramente relativa, e consistem num sentimento agradável, produzido por um objeto num determinado espírito, conforme a estrutura e a constituição peculiares desse espírito. Mediante esta diversidade que se verifica nos sentimentos humanos, talvez a natureza haja pretendido dar-nos consciência de sua autoridade; fazendo-nos ver as surpreendentes mudanças que é capaz de provocar nas paixões e desejos do gênero humano, simplesmente através da alteração de sua estrutura interna; sem qualquer modificação dos objetos. O vulgo poderá até deixar-se convencer por este argumento - mas os homens habituados a pensar poderão extrair um argumento mais convincente, ou pelo menos mais geral, da própria natureza do problema. Nas operações do raciocínio, o espírito não faz mais do que percorrer seus objetos, tais como se supõe eles sejam na realidade, sem nada lhes acrescentar ou deles diminuir. Se eu for examinar o sistema de Ptolomeu ou o de Copérnico, procurarei apenas, em minha investigação, conhecer a situação real dos planetas. Ou seja, e por outras palavras, procurarei dar-lhes, em minha concepção, as mesmas relações que entre eles se estabelecem nos céus. Para estas operações do espírito, portanto, parece haver sempre um padrão real, embora muitas vezes desconhecido, na própria natureza das coisas. E a verdade e a falsidade não variam em função das diversas conclusões dos homens. Mesmo que toda a raça humana para sempre se convença de que o Sol anda e a Terra fica parada, todos esses raciocínios não farão que o Sol se mexa nem uma só polegada, e essa convicção é eternamente falsa e errônea. Mas o caso das qualidades como o belo e o disforme, o desejável e o odioso não é o mesmo que o da verdade e da falsidade. No primeiro caso, o espírito não se limita simplesmente a observar os objetos tais como são em si mesmos, experimenta também um sentimento de deleite ou de desagrado, de aprovação ou de censura, em consequência dessa observação, sentimento esse que o leva a usar os epítetos belo ou disforme, desejável ou odioso. Ora, é evidente que este sentimento tem que depender da textura ou estrutura peculiar do espírito, que leva determinadas formas a operar de determinada maneira, dando origem a uma simpatia ou conformidade entre o espírito e seus objetos. Se for diferente a estrutura do espírito ou dos órgãos internos, o sentimento deixa de ser produzido, embora a forma continue sendo a mesma. Como o sentimento é diferente do objeto, e deriva da influência deste sobre os órgãos do espírito, as alterações deste último forçosamente farão variar o efeito, e o mesmo objeto, apresentado a um espírito completamente diferente, é incapaz de produzir o mesmo sentimento. Conclusão esta que cada um é capaz de tirar sozinho, sem muita filosofia, quando o sentimento se distingue de maneira evidente do objeto. Quem não tem consciência de que o poder, ou a glória, ou a vingança, não são desejáveis em si mesmos, e derivam todo o seu valor da estrutura das paixões humanas, que provoca um desejo no sentido desses objetivos? Mas em relação à beleza, tanto natural quanto moral, geralmente se supõe que o caso é diferente. Pensa-se que a qualidade agradável reside no objeto, não no sentimento, e isso simplesmente porque o sentimento não é suficientemente turbulento e violento para se distinguir, de maneira evidente, da percepção do objeto. Mas é suficiente um pouco de reflexão para distingui-los. Uma pessoa pode conhecer da maneira mais exata todos os círculos e elipses do sistema coperniciano, e todas as espirais irregulares do sistema ptolomaico, sem perceber que o primeiro é mais belo do que o segundo. Euclides explicou plenamente todas as qualidades do círculo, mas em nenhuma proposição encontramos uma só palavra sobre sua beleza. A razão disto é evidente: a beleza não é uma qualidade do círculo. Ela não reside em qualquer das partes daquela linha cujas partes se encontram a igual distância de um centro comum. É apenas o efeito que essa figura produz num espírito cuja textura ou estrutura peculiares tornam suscetíveis de tais sentimentos. Seria vão tentar encontrar a beleza no círculo, ou procurá-la, seja através dos sentidos seja mediante raciocínios matemáticos, em todas as propriedades dessa figura. Um matemático que não encontrasse na leitura de Virgílio outro prazer senão estudar a viagem de Enéias por um mapa seria perfeitamente capaz de compreender o sentido de todas as palavras latinas empregadas por aquele divino autor, e poderia, consequentemente, ter uma ideia distinta de toda a narração. Ideia que seria até mais distinta do que a dos que não estudaram tão rigorosamente a geografia do poema. Portanto, ele conheceria tudo do poema, mas ignoraria sua beleza, porque a beleza, em sentido próprio, não reside no poema, mas no sentimento ou gosto do leitor. E, quando um homem não possui a delicadeza de espírito capaz de o fazer experimentar este sentimento, ele só pode ignorar a beleza, mesmo que seja possuidor da ciência e do entendimento de um anjo. “Se acaso não receasse parecer demasiado filosófico, lembraria a meu leitor aquela célebre doutrina, considerada nos tempos modernos como inteiramente comprovada: "Que os sabores e as cores, assim como todas as outras qualidades sensíveis, não residem no corpo, mas simplesmente nos sentidos". O mesmo se passa com a beleza e a deformidade, a virtude e o vício. Todavia, é necessário salientar que esta doutrina não diminui mais a realidade destas últimas qualidades do que a das primeiras, e não há motivo para provocar o ressentimento dos críticos ou dos moralistas. Reconhecer que as cores residem apenas no olho equivale acaso a ter menos estima e consideração pelos iluminadores ou pelos pintores? Nos sentidos e nos sentimentos dos homens há uma uniformidade suficiente para tornar todas estas qualidades objetos da arte e do raciocínio, dotados de uma enorme influência sobre a vida e os costumes. E é evidente que a acima referida descoberta em filosofia natural não leva a qualquer mudança da ação e da conduta. Por que uma idêntica descoberta em filosofia moral provocaria qualquer mudança? (Nota do Autor)” A conclusão geral é que não é a partir do valor do objeto visado por uma pessoa que podemos explicar o prazer desta última, mas apenas a partir da paixão com que o objeto é visado, e do sucesso na tentativa de alcançá-lo. Os objetos não possuem absolutamente nenhum valor em si mesmos, seu valor deriva exclusivamente da paixão. Se esta for forte e firme, e obtiver sucesso, a pessoa fica feliz. Não parece haver razões para duvidar que uma jovem mocinha, ao envergar um vestido novo para um baile na escola, experimenta uma satisfação tão completa como o maior orador, no momento em que triunfa no esplendor de sua eloquência, dirigindo as paixões e decisões de uma numerosa assembleia. Portanto, toda a diferença entre um homem e outro com respeito à vida consiste ou na paixão ou na fruição - e estas diferenças são suficientes para produzir os mais distantes extremos de felicidade e de miséria. Para ser feliz, a paixão não deve ser nem demasiado violenta nem demasiado negligente. No primeiro caso, o espírito fica em incessante pressa e tumulto, e no segundo caso vai mergulhar numa desagradável indolência e letargia. Para ser feliz, a paixão deve ser benigna e social, não exigente e feroz. As afecções desta última espécie são incomparavelmente menos agradáveis para o espírito do que as da primeira espécie. Quem será capaz de comparar o rancor e a animosidade, a inveja e a vingança, com a amizade, a benignidade, a clemência e a gratidão? Para ser feliz, a paixão deve ser alegre e jovial, não melancólica e deprimente. A tendência para a esperança e a alegria é uma verdadeira riqueza, e a tendência para o medo e a tristeza é uma verdadeira pobreza. Algumas paixões e inclinações, na fruição de seu objeto, são menos firmes e constantes do que outras, não permitindo um prazer e uma satisfação tão duradouros. A devoção filosófica, por exemplo, tal como o entusiasmo do poeta, é o efeito transitório de uma intensa animação, uma grande possibilidade de lazer, um elevado gênio e o hábito do estudo e da contemplação. Mas, apesar de todas estas circunstâncias, um objeto abstrato e invisível, como só a religião natural pode apresentar-nos, é incapaz de influenciar duradouramente o espírito ou de adquirir alguma importância para a vida. Para dar conteúdo à paixão é preciso encontrar algum método capaz de afetar os sentidos e a imaginação, isto é, adotar uma concepção tanto histórica como filosófica da Divindade. As superstições e práticas populares podem até ser úteis neste particular. Embora os homens variem muito em personalidade, mesmo assim pode com segurança afirmar-se em geral que uma vida de prazer é incapaz de sustentar-se por tanto tempo como uma vida de trabalho, pois se encontra muito mais sujeita à saciedade e à indiferença. Todos os divertimentos mais duradouros levam uma mistura de atenção e aplicação, como por exemplo a caça. E de uma maneira geral é o trabalho e a ação que preenchem a maior parte da vida humana. Mas muitas vezes, quando a pessoa está mais disposta para a fruição, o objeto não está presente. E quanto a este aspecto as paixões que visam a objetos exteriores não contribuem tanto para nossa felicidade como as que dependem de nós mesmos, pois no primeiro caso não estamos tão certos de conseguir os objetos nem tão seguros da permanência de sua posse. No que diz respeito à felicidade, é preferível a paixão pelo saber à paixão pela riqueza. Alguns homens são possuidores de grande força moral e, mesmo quando procuram obter objetos exteriores, não se deixam afetar muito pela decepção, e renovam sua aplicação e seu esforço com a maior alegria. Nada contribui mais para a felicidade do que este tipo de personalidade. Por causa da brevidade e imperfeição da vida humana, a mais feliz disposição de espírito é a virtuosa ou, por outras palavras, a tendência para a ação e para o trabalho, que nos torna sensíveis às paixões sociais, encouraça o coração contra os golpes da fortuna, reduz as afecções a uma justa moderação, faz de nossos pensamentos um entretenimento para nós próprios, e nos leva mais para os prazeres da sociedade e da conversação do que para os dos sentidos. Entretanto, mesmo para o pensador mais descuidado deve ser evidente que nem todas as disposições de espírito são igualmente favoráveis à felicidade, e que uma paixão ou um estado de espírito pode ser altamente desejável, ao mesmo tempo em que outra é igualmente desagradável. E não há dúvida que todas as diferenças entre as condições da vida dependem do espírito, e que nenhuma situação pessoal é em si mesma preferível a outra. O bem e o mal, tanto naturais quanto morais, são inteiramente relativos aos sentimentos e afecções humanas. Nenhum homem jamais seria infeliz se pudesse modificar seus sentimentos. Como um novo Proteu, seria capaz de esquivar-se a todos os ataques, mediante constantes alterações de sua forma. Mas a natureza privou-nos, em grande medida, de tal recurso. A estrutura e constituição de nosso espírito depende tão pouco de nossa escolha como a de nosso corpo. E a maioria das pessoas não chega sequer a ter a menor noção de que uma modificação quanto a este aspecto poderia ser desejável. Tal como um rio necessariamente segue as várias inclinações do terreno por onde corre, do mesmo modo a parte ignorante e irrefletida da humanidade é governada por suas tendências naturais. Essa parte fica irremediavelmente excluída de toda e qualquer pretensão à filosofia, ou mesmo à tão louvada medicina do espírito. Mas mesmo os mais sábios e cultos sofrem uma prodigiosa influência da natureza, e nem sempre está ao alcance de cada um, por mais engenho e esforço que empregue, corrigir sua personalidade e adquirir o caráter virtuoso a que aspira. A filosofia exerce seu domínio sobre muito poucos, e mesmo em relação a estes sua autoridade é extremamente fraca e limitada. Os homens podem ter consciência do valor da virtude, e podem desejar alcançá-la, mas nem sempre é certo que eles consigam realizar seus desejos. Quem examinar sem preconceitos o curso das ações humanas verificará que os homens são quase inteiramente governados por sua constituição e sua personalidade, e que os princípios de ordem geral só têm influência na medida em que afetam nossos gostos e sentimentos. Se uma pessoa tiver um vivo sentido da honra e da virtude, e for dotada de paixões moderadas, sua conduta será sempre conforme às regras da moral, ou então, se delas se afastar, facilmente a elas voltará. Por outro lado, alguém que nasça com espírito tão perverso ou com tendências tão duras e insensíveis que seja incapaz de adquirir qualquer gosto pela virtude ou pela bondade, qualquer simpatia pelos seus semelhantes, qualquer desejo de estima e aplauso, deve ser considerado completamente incurável, sem poder encontrar remédio na filosofia. Só em objetos inferiores e sensuais, ou dando livre curso a paixões malignas, ele encontra satisfação. Nenhum remorso o leva a controlar suas viciosas inclinações, e nem sequer possui aquele sentido ou gosto que é necessário para o fazer desejar um caráter superior. Quanto a mim, não sei como deveria dirigir-me a tal pessoa, nem por meio de que argumentos deveria procurar reformá-la. Se lhe falasse da satisfação interior que resulta da prática de ações louváveis e humanitárias, dos delicados prazeres do amor e da amizade desinteressada, da duradoura fruição de um bom nome e de um caráter firme, ela poderia ainda responder que esses prazeres talvez o sejam para os que deles são suscetíveis, mas que, quanto a ela, se sente com tendências e disposição inteiramente diversas. Devo repetir: minha filosofia não pode fornecer solução para esse caso, e não posso fazer mais do que lamentar a infeliz condição dessa pessoa. Mas passo agora a perguntar se alguma outra filosofia é capaz de fornecer essa solução, ou se é possível, mediante qualquer sistema, tornar virtuosa a humanidade inteira, apesar de toda a perversão natural de seu espírito. A experiência depressa nos convencerá do contrário, e ouso afirmar que talvez o principal beneficio que deriva da filosofia surja de maneira indireta, e derive mais de sua secreta e insensível influência do que de sua aplicação imediata. É certo que a dedicação assídua às ciências e às artes liberais suaviza e humaniza o caráter, e alimenta aquelas emoções mais delicadas em que consistem a verdadeira honra e virtude. Raramente, mas muito raramente acontece que um homem de gosto e de saber não seja, pelo menos, um homem honesto, sejam quais forem suas fraquezas. A inclinação de seu espírito para os estudos especulativos deve nele mortificar as paixões do interesse e da ambição, e deve ao mesmo tempo dotá-lo de uma maior sensibilidade para todas as exigências e deveres de uma vida decente. Será capaz de sentir mais plenamente as distinções morais entre os diversos caracteres e costumes, e esta sua sensibilidade não será diminuída e sim, pelo contrário, altamente intensificada pela especulação. Além dessas insensíveis modificações do caráter e da personalidade, é altamente provável que outras possam ser produzidas pelo estudo e pela aplicação. Os prodigiosos efeitos da educação são de molde a convencer-nos de que o espírito não é completamente inflexível e obstinado, e é capaz de admitir muitas alterações em sua natureza e estrutura original. Se um homem escolher como modelo um tipo de caráter que aprova, e adquirir um perfeito conhecimento de todos os aspectos em que seu próprio caráter diverge de seu modelo, e além disso for capaz de constantemente se vigiar a si mesmo, levando seu espírito, através de um incessante esforço, do lado dos vícios para o das virtudes, não tenho dúvida que, com o tempo, encontrará em seu caráter uma mudança para melhor. O hábito é outro poderoso recurso para a reforma do espírito, nele implantando boas disposições e inclinações. Quem segue o caminho da sobriedade e da temperança sempre detesta tumultos e desordens. Para quem se dedica ao trabalho ou ao estudo, a indolência sempre representará um castigo. Quem se obrigar à prática da beneficência e da afabilidade, depressa passará a ter horror a todo exemplo de orgulho e violência. Quando se está firmemente convencido de que na vida o melhor caminho é o da virtude, e se tem força de ânimo suficiente para durante algum tempo impor restrições a si mesmo, não há motivos para desesperar da reforma do espírito. O que é lamentável é que esta convicção e esta força de ânimo só possam ter lugar em alguém que antes já seja razoavelmente virtuoso. Eis, portanto, aqui o principal triunfo da arte e, da filosofia: vai insensivelmente apurando o caráter, apontando-nos as tendências que nos devemos esforçar por alcançar, através de uma constante inflexão dada ao espírito, e através do hábito repetido. Para além disto, não posso aceitar que ela seja capaz de grande influência, e não posso deixar de alimentar dúvidas quanto a todas essas exortações e consolações que estão tão em moda entre os pensadores especulativos. Já vimos que nenhum objeto é em si mesmo desejável ou detestável, valioso ou desprezível, e que os objetos recebem essas qualidades da constituição e do caráter peculiar do espírito que os contempla. Consequentemente, para diminuir ou aumentar o valor que uma pessoa atribui a um objeto, para excitar ou para moderar suas paixões, não existem argumentos ou razões diretas que possam ser usados com alguma força ou influência. Apanhar moscas, como Domiciano, se provocar mais prazer, é preferível à caça de animais selvagens, como William Rufus, ou à conquista de reinos, como Alexandre. Mas, embora o valor de cada objeto só possa ser determinado pelo sentimento ou paixão de cada indivíduo, deve salientar-se que a paixão, ao pronunciar seu veredicto, não encara o objeto simplesmente como ele é em si mesmo, mas leva em conta todas as circunstâncias que o acompanham. Um homem cheio de alegria porque possui um diamante não se limita a considerar a pedra cintilante que tem diante dos olhos, pensa também em sua raridade, e é esta a causa principal de seu prazer e exultação. Assim, é por aqui que o filósofo pode penetrar, sugerindo aspectos, circunstâncias e considerações particulares que de outra maneira poderiam escapar-nos, conseguindo por esse meio moderar ou excitar cada paixão. Pode parecer pouco razoável negar radicalmente a autoridade da filosofia neste domínio, mas é preciso confessar que há um argumento muito forte contra ela - a saber, que, se essas considerações forem naturais e óbvias, elas ocorrerão por si mesmas, sem a ajuda da filosofia, e se não forem naturais jamais poderão adquirir qualquer influência sobre as afecções. Estas são de natureza extremamente delicada, e não podem ser forçadas ou constrangidas nem mesmo com o máximo esforço e habilidade. Uma reflexão que procuramos de propósito, que aceitamos com dificuldade e somos incapazes de guardar sem cuidado e atenção, nunca poderá produzir aqueles movimentos da paixão genuínos e duradouros, que são o resultado da natureza e da constituição do espírito. Seria o mesmo alguém pretender curar-se do amor olhando para sua amada através de um instrumento artificial como o microscópio, contemplando assim a aspereza de sua pele e a monstruosa desproporção de suas formas, e ter a esperança de excitar ou moderar qualquer paixão através dos argumentos artificiais de um Sêneca ou de um Epicteto. Em ambos os casos será impossível deixar de lembrar o aspecto e situação naturais do objeto. As reflexões da filosofia são demasiado sutis e distantes para ter influência na vida cotidiana, ou para erradicar uma afecção. O ar é fino demais para ser respirável, quando está acima dos ventos e nuvens da atmosfera. Outro defeito dessas apuradas reflexões que a filosofia nos sugere é que geralmente elas são incapazes de diminuir ou extinguir nossas paixões viciosas, sem ao mesmo tempo diminuir e extinguir também as que são virtuosas, tornando o espírito completamente indiferente e inativo. Em sua maioria são de caráter geral, e aplicáveis a todas as nossas afecções. Seria vão esperar dirigir sua influência num único sentido. Se através de incessante estudo e meditação fizemos que elas se nos tornassem intimamente presentes, elas continuarão agindo, cobrindo o espírito com uma universal insensibilidade. Quando destruímos os nervos, destruímos no corpo humano o sentido do prazer, juntamente com o da dor. Seria coisa fácil, apenas com um olhar, encontrar um ou outro destes defeitos na maior parte dessas reflexões filosóficas que foram tão celebradas tanto nos tempos antigos como nos modernos. Não permitais que as injúrias e a violência dos homens, dizem os filósofos, vos façam agitar pela ira ou pelo ódio. Sentiríeis ódio do macaco por sua maldade, ou do tigre por sua ferocidade? Esta reflexão conduz-nos a uma opinião desfavorável da natureza humana, e tem como resultado a eliminação das afecções sociais. Tende também para extinguir todo remorso pelos crimes que cada um praticou, pois faz pensar que o vício é tão natural no gênero humano como os instintos próprios de cada espécie animal. Todos os males derivam da ordem do universo, que é absolutamente perfeita. Ousaríeis perturbar ordem tão divina por causa de vosso próprio interesse pessoal? E se os males que sofro provierem da maldade ou da opressão? Mas os vícios e imperfeições dos homens também são abrangidos pela ordem do universo: Se pragas e terremotos não rompem os desígnios dos céus, Por que o fariam um Bórgia ou um Catilina? Se admitirmos que assim é, meus próprios vícios serão uma parte da mesma ordem. A alguém que disse só ser feliz quem consegue pôr-se acima da opinião pública, respondeu um espartano: Então só são felizes os patifes e os ladrões. O homem nasceu para ser miserável: haverá razão para alguém se admirar com qualquer infortúnio em especial? E haverá motivo para dores e lamentações por causa de qualquer desastre? Sim: é muito razoável lamentar ter-se nascido para ser miserável. Tua consolação oferece cem males em troca de um só, aquele de que pretendes alivia-lo. Deves ter sempre perante os olhos a morte, a doença, a pobreza, a cegueira, o exílio, a calúnia e a infâmia, como males que são inerentes à natureza humana. Se algum destes males te cair em sorte, suportá-lo-ás melhor se tiveres reconhecido isto. Minha resposta é que, se nos limitarmos a uma reflexão geral e distante sobre os males da vida humana, isso é incapaz de contribuir para preparar-nos para eles. Se graças a uma estrita e intensa meditação os tornarmos intimamente presentes a nós, isso será o verdadeiro segredo para envenenar todos os nossos prazeres, e tornar-nos miseráveis para sempre. Tua dor é infrutífera, e não vai mudar o curso do destino. Muito certo: e é precisamente por essa razão que sinto dor. A consolação de Cícero para a surdez é um tanto curiosa. Quantas línguas há, pergunta ele, que não compreendeis? O púnico, o espanhol, o gálico, o egípcio, etc. Em relação a todas estas sois como se fôsseis surdos, e todavia mostrai-vos indiferentes a essa questão. Poderá ser um tão grande infortúnio, nesse caso, ser surdo para mais uma língua? Prefiro a réplica de Antípater, o cirenaico, no momento em que algumas mulheres o lamentavam por sua cegueira: O que, disse ele,pensais que não há prazeres no escuro? Nada pode ser mais destrutivo, diz Fontenelle, para a ambição e a paixão da conquista, do que o verdadeiro sistema de astronomia. Que pobre coisa éo planeta inteiro, comparado com a infinita extensão da natureza! Esta reflexão é evidentemente demasiado distante para ter qualquer efeito. E, se o tivesse, não destruiria o patriotismo ao mesmo tempo que a ambição? O mesmo galante autor acrescenta, com certa razão, que os brilhantes olhos das damas são os únicos objetos que nada perdem de seu lustro e valor face às mais elaboradas investigações astronômicas, mas constituem prova contra todos os sistemas. Irão os filósofos aconselhar-nos a limitar a eles nosso afeto? O exílio, diz Plutarco a um amigo banido, não é um mal. Dizem-nos os matemáticos que a terra inteira não passa de um ponto, comparada com os céus. Mudar de país é, portanto, pouco mais do que sair de uma rua para entrar noutra. O homem não é uma planta, enraizada num determinado lugar da Terra: todos os solos e todos os climas lhe são igualmente adequados. Estes tópicos seriam admiráveis, se fosse possível caírem apenas nas mãos de pessoas banidas. Mas, e se chegarem também ao conhecimento dos que se dedicam às questões públicas, e destruir toda a sua dedicação a seu país natal? Ou serão eles como os remédios dos charlatães, que são igualmente bons para diabetes e para hidropisia? É indubitável que, se um ser superior fosse introduzido num corpo humano, todos os aspectos da vida lhe pareceriam tão mesquinhos, desprezíveis e pueris, que jamais seria possível convencê-lo a tomar parte fosse no que fosse, e mal prestaria atenção ao que se passasse em seu redor. Levá-lo a tamanha condescendência como a de desempenhar mesmo o papel de um Filipe com zelo e alacridade, seria muito mais difícil do que obrigar o mesmo Filipe, depois de ter sido rei e conquistador durante cinquenta anos, a consertar sapatos velhos com o devido cuidado e atenção, ocupação que lhe atribui Luciano nas regiões infernais. Ora, todas essas ideias de desdém pelas coisas humanas, que deveriam ocorrer a esse ser imaginário, ocorrem também ao filósofo, mas, sendo de certa forma desproporcionais em relação à capacidade humana, e não sendo fortalecidas pela experiência de alguma coisa melhor, não causam nele uma impressão decisiva. Ele vê sua verdade, mas é incapaz de senti-Ia suficientemente, e consegue ser um filósofo sublime enquanto não sentir necessidades, isto é, enquanto nada o perturba ou desperta suas paixões. Enquanto são os outros que estão em jogo, espanta-se com seu ardor e entusiasmo, mas, quando é ele que está em jogo, é geralmente transportado pelas mesmas paixões que tanto condenava quando era um simples espectador. Há nos livros de filosofia duas considerações das quais, mais do que de quaisquer outras, há que esperar efeitos importantes, e isto porque essas considerações são extraídas da vida cotidiana, e surgem ao espírito após o mais superficial exame das questões humanas. Quando refletimos sobre a brevidade e incerteza da vida, como nos parece desprezível nossa busca da felicidade! E, mesmo que nossa preocupação não fique limitada a nossa própria vida, como parecem frívolos nossos projetos mais grandiosos e mais generosos, quando pensamos nas incessantes mudanças e revoluções das coisas humanas, devido às quais as leis e o saber, os livros e os governos, são carregados pelo tempo, como se fosse uma veloz torrente, e se perdem no imenso oceano da matéria! É inegável que esta reflexão tende a mortificar todas as nossas paixões, mas não irá ela por isso mesmo contrariar o artifício da natureza, que felizmente induziu em nós a opinião de que a vida humana tem alguma importância? E não poderá tal reflexão ser utilizada com êxito por pensadores voluptuosos, a fim de nos arrastarem dos caminhos da ação e da virtude para os campos floridos da indolência e do prazer? Informa-nos Tucídides que, durante a famosa peste de Atenas, quando a morte parecia presente a cada um, o povo se deixou dominar por uma alegre e jovial dissolução, e cada um exortava os outros a aproveitarem a vida ao máximo, enquanto durasse. A mesma observação é feita por Boccaccio a respeito da peste de Florença. E um princípio semelhante leva os soldados, em tempo de guerra, a serem mais dados a distúrbios e a despesas do que qualquer outra espécie de homens. O prazer do momento tem sempre importância, e tudo o que diminui a importância de todos os outros objetos deve acrescentar-lhe influência e valor adicionais. A segunda consideração de ordem filosófica, que muitas vezes é capaz de exercer influência sobre as afecções, deriva da comparação de nossa própria condição com a condição dos outros. É uma comparação que estamos constantemente fazendo, mesmo na vida cotidiana, mas nossa infelicidade é termos sempre mais tendência para comparar nossa situação com a de nossos superiores do que com a de nossos inferiores. O filósofo é capaz de corrigir esta enfermidade natural, dirigindo seu olhar para o outro lado, a fim de se sentir feliz com a situação que a sorte lhe reservou. Poucas são as pessoas incapazes de tirar algum consolo desta reflexão, apesar de, para um homem de caráter excepcionalmente superior, a visão das misérias humanas ser mais capaz de provocar tristeza do que conforto, e venha acrescentar, a suas lamentações por causa de seu próprio infortúnio, uma profunda compaixão pelo dos outros. A tal ponto chega a imperfeição mesmo do melhor destes tópicos filosóficos de consolação. “Talvez o cético leve a questão longe demais, ao limitar a estes dois todos os tópicos e reflexões da filosofia. Parece haver outros, cuja verdade é inegável, e cuja tendência natural é tranquilizar e suavizar todas as paixões. A filosofia avidamente se apodera deles, estuda-os, avalia-os, confia-os à memória e torna-os familiares ao espírito. E sua influência sobre as personalidades sensatas, gentis e moderadas pode chegar a ser considerável. Mas que influência é essa, perguntareis, se a personalidade já está antecipadamente predisposta da mesma maneira que se pretende inculcar-lhe? Podem, pelo menos, fortalecer essa personalidade, e enriquecê-la com reflexões capazes de alimentá-la e consolidá-la. Seguem-se alguns exemplos dessas reflexões filosóficas: l. Não é inegável que toda condição humana tem infelicidades ocultas? Então por que invejar quem quer que seja? 2. Cada um sabe ter que passar por certas infelicidades inevitáveis, e nunca deixa de haver uma compensação. Por que não contentar-se com o presente? 3. O hábito amortece tanto o sentido do bem quanto o do mal, e nivela todas as coisas. 4. A saúde e a boa disposição são tudo. O resto é de somenos importância, a não ser que aquelas sejam afetadas. 5. Quantas outras boas coisas tenho eu? Então por que sofrer só por causa de uma infelicidade? 6. Quantos serão felizes na mesma condição da qual me lamento? E quantos me invejarão? 7. Todo bem tem o seu preço: o da fortuna é o trabalho, o do favor é a lisonja. Será possível não gastar o dinheiro, e mesmo assim conseguir a mercadoria? 8. Não esperes da vida uma felicidade demasiado grande. A natureza humana não o permite. 9. Não procures uma felicidade excessivamente complicada. Mas isso depende de mim? Sim: a primeira escolha depende de ti. A vida é como um jogo - cada um tem a possibilidade de escolher suas cartas. E a paixão, de maneira gradual, vai-se apoderando do objeto adequado. 10. Antecipa com tua esperança e tua imaginação os futuros consolos, que o tempo infalivelmente traz para todas as aflições. 11. Desejo ser rico. Por quê? Para poder ter muitos e belos objetos: casas, jardins, equipagem, etc. Quantos são os belos objetos que a natureza oferece a todos, sem qualquer despesa? Se forem gozados, são em número suficiente. Caso contrário, pensa nos efeitos do hábito e do caráter, em qual deles será o primeiro a privar os ricos de seus prazeres. 12. Desejo a fama. Que ela venha: se agir bem, ganharei a estima de todos os meus conhecidos. E o que vale para mim tudo o mais? Estas reflexões são tão óbvias que é de espantar não ocorrerem a todos os homens, e tão convincentes que é de espantar elas não persuadirem todos os homens. Mas talvez elas efetivamente ocorram e persuadam à maior parte dos homens, quando contemplam a vida humana com um olhar calmo e geral. No entanto, quando ocorrem incidentes reais e importantes, quando a paixão é despertada e a imaginação é agitada, o exemplo é determinante, e urge tomar uma decisão: o filósofo está perdido no homem, e é em vão que procura aquela persuasão que antes parecia tão firme e inabalável. Qual a solução para este inconveniente? E buscar ajuda na frequente consulta dos moralistas consagrados. É recorrer à sabedoria de Plutarco, à imaginação de Luciano, à eloquência de Cícero, ao espírito de Sêneca, à jovialidade de Montaigne, à sublimidade de Shaftesbury. Os preceitos morais, assim semeados, ganham, fundam raízes, e fortalecem o espírito contra as ilusões da paixão. Mas não confies demasiado na ajuda exterior: adquire, através do hábito e do estudo, aquele caráter filosófico que, ao mesmo tempo, confere força à reflexão, e, tornando independente a parte mais importante de tua felicidade, atenua o gume de todas as paixões desordenadas, e tranquiliza o espírito. Não desprezes esses auxílios - mas também não confies demasiado neles, a não ser que a natureza tenha sido favorável no caráter com que te dotou. (Nota do Autor)” Vou concluir este assunto lembrando que, embora a virtude seja indubitavelmente a melhor escolha, quando não é inatingível, mesmo assim é tal a desordem e confusão das coisas humanas, que é impossível esperar nesta vida uma distribuição perfeita ou regular da felicidade e da miséria. Não apenas os bens da fortuna e os dotes do corpo (ambos os quais são importantes), não apenas estas vantagens, dizia eu, são desigualmente divididas entre os virtuosos e os viciosos, mas até o próprio espírito participa, em certa medida, dessa desordem. E mesmo o caráter mais nobre, devido à própria constituição das paixões, nem sempre goza da mais extrema felicidade. Pode observar-se que, embora todas as dores corpóreas derivem de alguma desordem numa das partes ou órgãos do corpo, apesar disso nem sempre a dor é proporcional à desordem, sendo maior ou menor conforme a maior ou menor sensibilidade da parte sobre a qual os humores nocivos exercem sua influência. Uma dor de dentes produz mais violentas convulsões de dor do que uma tísica ou uma hidropisia. De maneira semelhante, com respeito à economia do espírito, podemos observar que sem dúvida todo vício é pernicioso, mas que a perturbação ou a dor não é medida pela natureza em exata proporção ao grau de vício, nem o homem de mais alta virtude, mesmo sem contar os acidentes externos, é sempre o mais feliz. É inegável que uma disposição sombria e melancólica é, para nossos sentimentos, um vício ou imperfeição, mas, como pode ser acompanhada de um elevado sentido da honra e de uma grande integridade, pode ser encontrada nos mais nobres caracteres. Embora seja suficiente para amargurar a existência e tornar a pessoa afetada completamente infeliz. Por outro lado, uma pessoa má e egoísta pode possuir um temperamento vivo e alegre, certa jovialidade de coração, que é inegavelmente uma boa qualidade, mas é muito mais recompensada do que merece, e é capaz, quando acompanhada de sorte, de compensar o desagrado e o remorso que provêm de todos os outros vícios. Devo acrescentar, a título de observação no mesmo sentido, que, se alguém tiver tendência para um determinado vício ou imperfeição, pode muitas vezes acontecer que uma boa qualidade ao mesmo tempo possuída por esse alguém o tome mais infeliz do que se fosse inteiramente vicioso. Uma pessoa de uma fraqueza de caráter capaz de facilmente a fazer vergar ao peso da afecção será mais infeliz ainda se for dotada de um temperamento generoso e amistoso, pois este dá-lhe uma viva preocupação pelos outros e torna-a mais sujeita a acasos e acidentes. Num caráter imperfeito, o sentido da vergonha é inegavelmente uma virtude, mas gera um extremo desprazer e remorso, do qual está livre aquele que é livremente perverso. Uma pessoa de fortes tendências amorosas, mas com um coração incapaz de amizade, será mais feliz do que se aliar o mesmo excesso em questões amorosas a um temperamento generoso, que sempre transporta a pessoa para além de si mesma, e a transforma num perfeito escravo do objeto de sua paixão. Numa palavra, a vida humana é mais governada pelo acaso do que pela razão, deve ser encarada mais como um enfadonho passatempo do que como uma ocupação séria, e é mais influenciada pelo temperamento de cada um do que por princípios de ordem geral. Devemos empenhar-nos nela com paixão e ansiedade? Não é merecedora de tanta preocupação. Devemos ser indiferentes a tudo o que acontece? Nossa fleuma e falta de interesse far-nos-á perder todo o prazer do jogo. Enquanto especulamos a respeito da vida, a vida já passou. E a morte, embora talvez eles a recebam de maneiras diferentes, trata do mesmo modo o tolo e o filósofo. Tentar reduzir a vida a uma regra e um método exatos é geralmente uma ocupação dolorosa ou infrutífera - e não é isto mais uma prova de que superestimamos o prêmio por que lutamos? E mesmo especular tão cuidadosamente sobre ela, procurando estabelecer com rigor sua justa ideia, equivaleria a superestimá-la, se para certos temperamentos esta ocupação não fosse uma das mais divertidas a que é possível dedicar a vida. DA ORIGEM DO GOVERNO Nascido em uma família, o homem é obrigado a conservar a sociedade, por necessidade, por inclinação natural e por hábito. Em sua evolução subsequente, essa mesma criatura é levada a instituir a sociedade política, a fim de tornar possível a administração da justiça, sem a qual não pode haver entre os homens nem paz, nem segurança, nem relações mútuas. Consequentemente, a distribuição da justiça, ou, em outras palavras, a manutenção dos doze juízes, deve ser considerada, em última análise, como o único objetivo e finalidade de todo o vasto mecanismo de nosso governo. Os reis e os parlamentares, os exércitos e as armadas, os funcionários da corte e das rendas, os embaixadores, os ministros e os conselheiros privados, têm todos eles sua finalidade subordinada a este aspecto da administração. Mesmo quanto ao clero, tendo em vista que seu dever é a propagação da moral, deve pensar-se, no que diz respeito a este mundo, que foi esse o único objetivo útil de sua instituição. Todo homem tem consciência da necessidade da justiça para conservar a paz e a ordem, assim como todo homem tem consciência da necessidade da paz e da ordem para a conservação da sociedade. Mas, não obstante esta forte e evidente necessidade - tal a fragilidade e perversidade de nossa natureza! -, não é possível obrigar os homens a seguir de maneira fiel e constante a senda da justiça. Podem ocorrer certas circunstâncias extraordinárias, em que alguém considere seus interesses mais favorecidos pela fraude ou pela pilhagem do que prejudicados pela ofensa feita à união social por essa sua injustiça. Mas muito mais frequente é os homens serem distraídos de seus principais interesses, mais importantes mas mais longínquos, pela sedução de tentações presentes, embora muitas vezes totalmente insignificantes. Esta grande fraqueza é incurável na natureza humana. Os homens precisam, portanto, procurar um paliativo para o que não podem curar. Precisam criar certos cargos, cujos titulares se chamarão magistrados, e terão a função especial de proferir sentenças imparciais, punir os transgressores, corrigir a fraude e a violência, e obrigar os homens, mesmo contra sua vontade, a respeitar seus próprios interesses reais e permanentes. Em poucas palavras: a Obediência é um novo dever, que precisa ser inventado para sustentar o da Justiça, e os laços da equidade devem ser reforçados pelos da sujeição. Mas poderia ainda pensar-se, considerando este problema de maneira abstrata, que nada se ganha com esta aliança, e que o dever factício da obediência, em virtude de sua própria natureza, tem tão pouca influência sobre o espírito humano como o dever primitivo e natural da justiça. Os interesses pessoais e as tentações presentes tanto podem sobrepujar um como o outro; ambos estão igualmente sujeitos ao mesmo inconveniente. E um homem que tiver tendência para ser mau vizinho será forçosamente levado pelos mesmos motivos, bem ou mal entendidos, a ser um mau cidadão e um mau súdito. Para não referir a possibilidade de muitas vezes o próprio magistrado ser negligente, parcial ou injusto no exercício de suas funções. Todavia, a experiência mostra que há uma grande diferença entre os dois casos. Verifica-se que na sociedade a ordem é muito mais eficazmente preservada por meio do governo; e nosso dever para com o magistrado é mais solidamente garantido pelos princípios da natureza humana que nosso dever para com os outros cidadãos. Tão forte é a paixão do poder no coração do homem, que muitos não só aceitam mas até procuram todos os perigos, canseiras e cuidados do governo; e, uma vez chegados a essa situação, embora muitas vezes sejam desviados por paixões pessoais, em muitos casos os homens encontram um evidente interesse na administração imparcial da justiça. As pessoas a quem é conferi da esta distinção, pelo consentimento tácito ou expresso do povo, devem ser dotadas de superiores qualidades pessoais, de valor, força, integridade ou prudência, as quais impõem respeito e confiança; e, depois de estabelecido o governo, a consideração pelo nascimento, pela categoria e situação social tem sobre os homens uma poderosa influência, conferindo maior autoridade aos decretos do magistrado. O príncipe ou líder combate toda desordem que possa perturbar sua sociedade. Exorta todos os seus partidários e todos os homens probos a ajudarem-no a corrigi-la e regenerá-la, e é prontamente apoiado, no desempenho de suas funções, por todos os homens imparciais. Depressa adquire o poder de recompensar esses serviços; e, com o progresso da sociedade, designa ministros a ele subordinados, e muitas vezes uma força militar, que encontram um imediato e evidente interesse em apoiar sua autoridade. O hábito depressa vem reforçar o que outros princípios da natureza humana deficientemente consolidaram; e, uma vez habituados à obediência, os homens jamais pensam em afastar-se desse caminho que ele e seus antepassados constantemente trilharam, e ao qual são levados por tantos e tão imperiosos e evidentes motivos. Mas, embora esta evolução das coisas humanas possa parecer certa e inevitável, e embora o apoio prestado à justiça pela sujeição assente em evidentes princípios da natureza humana, não se pode esperar que os homens fossem capazes de antecipadamente descobri-los ou prever seus efeitos. O governo tem início de maneira mais acidental e imperfeita. É provável que tenha sido durante um estado de guerra que pela primeira vez um homem tenha ganho ascendente sobre as multidões; pois na guerra se revela de modo mais evidente a superioridade da coragem e do gênio, nela o acordo e a unanimidade são mais necessários, nela as perniciosas consequências da desordem se revelam mais fortemente. A longa permanência desse estado, coisa vulgar entre as tribos selvagens, leva o povo à submissão; e, se acaso o chefe for tão equânime quanto prudente e corajoso, ele se torna, mesmo em tempo de paz, o árbitro de todas as disputas, e pode ir gradualmente consolidando sua autoridade, através de um misto de força e de consentimento. Os evidentes benefícios derivados de sua influência fazem-no amado pelo povo, ou pelo menos pelos mais pacíficos e de melhor caráter; e, se acaso seu filho é dotado das mesmas qualidades, mais depressa o governo chega à maturidade e à perfeição; mas permanece em estado ainda deficiente, enquanto novos progressos não dão ao magistrado uma renda que lhe permita distribuir remunerações entre os diversos instrumentos de sua administração, e impor castigos aos rebeldes e desobedientes. Antes deste período, cada exercício de sua influência é forçosamente momentâneo, e baseado nas circunstâncias particulares de cada caso. Depois dele, a submissão deixa de ser objeto de escolha por parte da massa da comunidade, passando a ser rigorosamente imposta pela autoridade do supremo magistrado. Em todos os governos existe uma permanente luta intestina, aberta ou silenciosa, entre a Autoridade e a Liberdade, e neste conflito nem uma nem outra pode jamais prevalecer de maneira absoluta. Em todos os governos se tem necessariamente que fazer um grande sacrifício da liberdade, e contudo também a autoridade, que limita a liberdade, jamais deve, em qualquer constituição, tornar-se completa e incontrolável. O sultão é senhor da vida e da fortuna de qualquer indivíduo, mas não lhe é permitido cobrar novos impostos a seus súditos; um monarca francês pode cobrar os impostos que lhe aprouver, mas consideraria perigoso atentar contra a vida e a fortuna dos súditos. Também a religião, na maior parte dos países, costuma ser um princípio extremamente indócil; e outros princípios ou preconceitos frequentem ente resistem a toda autoridade do magistrado civil, cujo poder, dado que assenta na opinião, nunca pode subverter outras opiniões que estejam tão profundamente enraizadas como seu título de domínio. O governo que, na linguagem vulgar, recebe a designação de livre, é aquele que permite uma divisão do poder entre vários membros, cuja autoridade conjunta não é superior à de qualquer monarca; mas esses membros, no curso normal da administração, devem agir de acordo com leis gerais e sempre idênticas, que são previamente conhecidas por todos os membros do governo e todos os súditos. Neste sentido, é forçoso reconhecer que a liberdade é a perfeição da sociedade civil, sem que isso permita, contudo, negar que a autoridade é essencial para sua própria existência; e por isso esta última pode merecer a preferência, nessas disputas em que tantas vezes uma é oposta à outra. A não ser, talvez, que possa dizer-se (e dizê-lo com certa razão) que uma circunstância essencial para a existência da sociedade civil deve sempre sustentar-se a si mesma, não precisando ser salvaguardada tão ciosamente como uma que apenas contribui para sua perfeição, a qual tão facilmente a indolência dos homens tende a esquecer, e sua ignorância a desprezar. DO CONTRATO ORIGINAL Como na época atual nenhum partido pode subsistir sem associar a seu sistema político ou prático um sistema de princípios filosófico ou especulativo, verificamos, em consequência disso, que cada uma das facções que dividem esta nação elaborou um sistema do segundo tipo, a fim de proteger e secundar o esquema de ação que adotou. Como geralmente o povo é um construtor extremamente tosco, especialmente neste terreno especulativo, e ainda mais especialmente quando é influenciado pelo zelo partidário, é natural que sua obra se apresente um pouco informe, apresentando sinais evidentes da violência e da pressa com que foi edificada. Um dos partidos, filiando o governo à Divindade, procura torná-lo tão sagrado e inviolável que constitui pouco menos que um sacrilégio, por mais tirânico que seja, feri-lo ou violá-lo no menor aspecto. O outro partido, fazendo o governo depender inteiramente do consentimento do povo, supõe a existência de uma espécie de contrato original, mediante o qual os súditos se reservaram tacitamente o direito de resistir a seu soberano, de cada vez que se sentirem prejudicados por aquela mesma autoridade que a ele, para certos fins, voluntariamente confiaram. São estes os princípios especulativos dos dois partidos; e são também estas as consequências práticas deles deduzidas. Arriscar-me-ei a afirmar que ambos estes sistemas de princípios especulativos são justos, embora não no sentido que os partidos pretendem; e que ambos os esquemas de consequências práticas são prudentes, embora não ao ponto a que cada um dos partidos, em oposição ao outro, tem geralmente procurado levá-los. Que a Divindade é o autor último de qualquer governo não o negará ninguém que aceite uma providência geral e admita que todos os acontecimentos do universo são regidos por um plano uniforme, e conduzem a sábios fins. Sendo à raça humana impossível subsistir, pelo menos em situação confortável e segura, sem a proteção do governo, sem dúvida esta instituição foi desejada por aquele Ser bondoso que pretende o bem de todas as suas criaturas. E como na realidade ela se tem universalmente concretizado, em todos os países e em todas as épocas, podemos com certeza ainda maior concluir que ela foi desejada por aquele Ser onisciente que nunca pode ser enganado por qualquer fato ou acontecimento. Mas, como ele a fez surgir, não por qualquer intervenção especial ou milagrosa, mas por seu poder oculto e universal, nenhum soberano pode propriamente ser considerado seu representante, a não ser no sentido em que é lícito dizer-se de todo poder ou força que, tendo nele sua origem, atua por sua delegação. Tudo que efetivamente acontece está contido no plano ou intenção geral da providência, e neste sentido mesmo o maior e mais legítimo dos príncipes não tem, para alegar santidade especial ou autoridade inviolável, maior razão que um magistrado inferior, ou mesmo um usurpador, ou até um salteador ou um pirata. O mesmo divino superintendente que, com sábios objetivos, atribuiu autoridade a um Tito ou a um Trajano, também conferiu poder, com objetivos sem dúvida igualmente sábios, embora ignorados, a um Bórgia ou a um Angria. As causas que em cada Estado fizeram surgir o poder soberano são as mesmas que nele igualmente estabeleceram todas as jurisdições menores e todas as autoridades limitadas. Portanto, qualquer policial, não menos que um rei, age por delegação divina e é detentor de um direito sagrado. Se lembrarmos como todos os homens são aproximadamente iguais em força física, e mesmo em poder e capacidade mental, antes de cultivados pela educação, teremos necessariamente de admitir que só o consentimento de cada um poderia, ao princípio, levá-los a associar-se e submeter-se a qualquer autoridade. O povo, se remontarmos à primitiva origem do governo nas florestas e nos desertos, é a fonte de todo poder e jurisdição; voluntariamente, para bem da paz e da ordem, os homens renunciaram a sua liberdade natural e acataram leis ditadas por seus iguais e companheiros. As condições sob as quais se dispuseram à submissão, ou foram expressas, ou eram tão claras e óbvias que se podia perfeitamente considerar inútil exprimi-Ias. Ora, se é isto que se entende por contrato original, é inegável que todo governo assenta, de início, em um contrato, e que as mais antigas e toscas associações humanas se constituíram essencialmente em virtude desse princípio. Seria inútil perguntar em que registros consta essa carta de nossas liberdades: não foi escrita em pergaminho, nem em folhas ou cascas de árvores; precedeu o uso da escrita e de todas as outras artes civilizadas da vida. Mas descobrimo-la claramente na natureza do homem na igualdade, ou algo semelhante à igualdade, que verificamos existir entre todos os indivíduos dessa espécie. A força que atualmente predomina, baseada nas frotas e nos exércitos, é apenas política, e deriva da autoridade, a qual é consequência da instituição do governo. A força natural de um homem consiste apenas no vigor de seus membros e na firmeza de sua coragem, qualidades estas que jamais poderiam submeter multidões ao domínio de um só homem. Só seu próprio consentimento, e sua noção das vantagens resultantes da paz e da ordem, poderia ter essa influência. Todavia, mesmo esse consentimento foi durante muito tempo extremamente imperfeito, não podendo assim servir de base para uma administração regular. O chefe, que provavelmente conseguira sua influência no decurso da guerra, governava mais pela persuasão que pelo mando e, até ao momento em que começou a poder usar a força para subjugar os refratários e desobedientes, mal se pode dizer que a sociedade tenha atingido o estado de governo civil. É evidente que não foi expressamente celebrado nenhum pacto ou acordo de submissão geral, pois tal estaria muito além da compreensão de selvagens: cada caso em que foi estabeleci da a autoridade de um chefe deve ter sido um caso especial, que surgiu devido às exigências de cada circunstância particular. A evidente utilidade resultante dessa medida fez que tais casos se tornassem cada vez mais frequentes, e esta frequência foi gradualmente fazendo surgir no povo uma aquiescência habitual e, se assim quiserem chamar-lhe, voluntária, e portanto precária. Mas aqueles filósofos que aderiram a um partido (caso isto não seja uma contradição nos termos) não se satisfazem com estas concessões. Não se limitam a afirmar que o governo, em sua primitiva infância, teve origem no consentimento, ou antes, na aquiescência voluntária do povo; afirmam além disso que, mesmo atualmente, agora que chegou à maturidade plena, ele continua tendo esse único fundamento. Afirmam que todos os homens continuam nascendo iguais e não devem fidelidade a nenhum príncipe ou governo, caso não estejam presos pela obrigação e sanção de uma promessa. E como nenhum homem iria renunciar, sem em troca receber alguma coisa equivalente, às vantagens de sua liberdade natural, submetendo-se à vontade de outro homem, essa promessa deve sempre ser atendida como condicional, sem lhe impor obrigação alguma, a não ser que receba justiça e proteção de seu soberano. O soberano, em troca, promete-lhe estas vantagens e, se acaso deixar de cumprir a promessa, terá violado, por seu lado, as cláusulas do compromisso, libertando assim seu súdito de qualquer obrigação de fidelidade. Tal é, segundo esses filósofos, o fundamento da autoridade de todo e qualquer governo; e tal é o direito de resistência que pertence a todo e qualquer súdito. Mas, se os que assim argumentam passeassem seu olhar pelo mundo inteiro, nada encontrariam que tivesse a menor relação com suas ideias, ou pudesse justificar sistema tão apurado e filosófico. Pelo contrário, em toda parte encontramos príncipes que consideram seus súditos como sua propriedade, e afirmam seu direito independente à soberania, baseado na conquista ou na sucessão. Encontramos também, em toda parte, súditos que reconhecem a seu príncipe esse direito, considerando-se nascidos já submetidos à obrigação de obediência a seu soberano, do mesmo modo que nasceram já submetidos à obrigação de respeito e obediência a seus pais. Estas relações são sempre concebidas como igualmente independentes de nosso consentimento, na Pérsia ou na China, na França ou na Espanha, e até mesmo na Holanda ou na Inglaterra, em todo lugar onde as doutrinas atrás referidas não foram cuidadosamente inculcadas. A obediência ou sujeição se toma coisa tão habitual que os homens, em sua maioria, jamais procuram investigar suas origens ou causas, tal como em relação à lei da gravidade, à resistência ou às leis mais universais da natureza. Ou então, se alguma vez sentem essa curiosidade, logo que ficam sabendo que eles próprios e seus antepassados têm estado sujeitos, desde há várias épocas ou desde tempos imemoriais, a certa forma de governo ou a certa família, imediatamente concordam, reconhecendo sua obrigação de fidelidade. Na maioria dos países, se lá fôssemos proclamar que as relações políticas assentam inteiramente no consentimento voluntário ou numa promessa recíproca, depressa o magistrado nos mandaria prender como sediciosos, por enfraquecer os laços da obediência; se antes disso nossos amigos nos não mandassem internar como loucos, por defender tais absurdos. É estranho que um ato do espírito, que se supõe todo indivíduo tenha realizado, e isso já depois de poder fazer uso da razão, pois caso contrário não poderia ter autoridade alguma, que esse ato, dizia eu, seja a tal ponto desconhecido por todos que em toda a superfície da Terra mal restem dele quaisquer vestígios ou lembrança. Mas diz-se que esse contrato em que o governo assenta é o contrato original, e portanto deve ser considerado demasiado antigo para poder ser conhecido pela geração atual. Se com isto se quer referir o acordo mediante o qual selvagens pela primeira vez se associaram e conjugaram suas forças, ele deve ser reconhecido como real; mas, sendo tão antigo, e estando já obliterado por mil mudanças de governo e de príncipe, não é lícito supor-se que conserve ainda qualquer autoridade. Se alguma coisa devemos dizer a tal respeito, é forçoso afirmar que qualquer governo, que seja legítimo e ao qual os súditos tenham o dever de prestar fidelidade, assentava inicialmente no consentimento e em um pacto voluntário. Mas isto, além de implicar o consentimento, por parte dos pais, em vincular seus filhos, mesmo até às gerações mais remotas (coisa que os autores republicanos jamais admitirão), além disso, dizia eu, tal fato não é justificado pela história ou pela experiência, em qualquer época ou em qualquer país do mundo. Quase todos os governos atualmente existentes, ou dos quais algo ficou registrado na história, assentaram inicialmente na usurpação ou na conquista, ou em ambas, sem qualquer pretensão de legítimo consentimento ou sujeição voluntária do povo. Quando à frente de um exército ou de um partido se encontra um homem experimentado e audacioso, frequentemente se lhe torna fácil, empregando umas vezes a violência e outras vezes falsas pretensões, impor seu domínio a um povo cem vezes mais numeroso do que seus partidários. Impede a liberdade de comunicações, para que seus inimigos não possam saber com segurança o seu número ou força; não lhes concede lazer para se reunirem num corpo que lhe seja contrário; é até possível que todos aqueles que são instrumentos de sua usurpação desejem sua queda; mas a ignorância em que se encontram das intenções uns dos outros conserva-os amedrontados, e é a única causa da segurança do chefe. Foi mediante tais artifícios que muitos governos foram fundados, e a isto se resume todo o contrato original de que podem vangloriar-se. A face da Terra está permanentemente em mudança, devido à transformação de pequenos reinos em grandes impérios, à dissolução de grandes impérios em reinos menores, à fundação de colônias, à migração de tribos. Será possível descobrir, em todas estas ocorrências, algo mais do que força e violência? Onde está o acordo mútuo, a associação voluntária de que tanto se fala? Mesmo a maneira mais suave mediante a qual uma nação pode receber um senhor estrangeiro, por casamento ou testamento, não é extremamente honrosa para o povo, pois supõe que ele pode ser tratado como um dote ou uma herança, de acordo com o prazer ou os interesses dos governantes. Mas, nos casos em que não há intervenção da força e se realiza uma eleição, que coisa é essa tão louvada eleição? Ou é uma combinação entre alguns grandes homens, que decidem por todos e não permitem oposição alguma, ou é o furor de uma multidão que segue um sedicioso cabeça de motim, o qual talvez não seja conhecido por uma dúzia de entre eles, e deve o lugar que ocupa apenas a sua própria impudência ou ao capricho momentâneo de seus companheiros. Poderá dizer-se que estas desordenadas eleições, que além do mais são raras, são detentoras de tão poderosa autoridade que faça delas o único fundamento legítimo de todo governo e de toda fidelidade? Na realidade, nenhuma ocorrência pode ser mais terrível que a total dissolução do governo, que dá liberdade à multidão e faz depender a determinação ou escolha do novo regime de um número que se aproxima do de todo o conjunto do povo; pois nunca atinge inteiramente todo esse conjunto. Portanto, todo homem deseja ver, à frente de um exército poderoso e obediente, um general que seja capaz de alcançar rapidamente a vitória, dando um senhor ao povo, que é tão incapaz de por si mesmo escolhê-la. Tão pequena correspondência há entre essas noções filosóficas e a realidade dos fatos. Não deixemos que o regime saído da Revolução nos iluda, ou nos faça apaixonar por uma origem filosófica do governo a ponto de imaginarmos que todas as outras são monstruosas e irregulares. Mesmo esse acontecimento esteve longe de corresponder a essas ideias sutis. A única coisa que então mudou foi a sucessão, e mesmo esta apenas na parte monárquica do governo; e foi apenas a maioria de setecentos que determinou essa mudança, em nome de cerca de dez milhões. Evidentemente não duvido de que a maioria desses dez milhões tenha concordado de boa vontade com essa determinação; mas acaso o problema foi entregue, um pouco que fosse, a sua decisão? Acaso a questão não foi com justiça, a partir desse momento, considerada resolvida, e não passou a ser castigado todo aquele que recusasse submeter-se ao novo soberano? De que outra maneira poderia o problema ter sido resolvido? A república de Atenas é, segundo creio, a mais ampla democracia de que nos fala a história. Contudo, se levarmos devidamente em conta as mulheres, os escravos e os estrangeiros, esse regime não foi criado, nem jamais qualquer lei foi votada, pela décima parte daqueles que eram obrigados a se lhe submeter. Isto para não referir as ilhas e colônias que os atenienses consideravam suas por direito de conquista. E, visto que é bem sabido que nessa cidade as assembleias populares eram sempre cheias de abusos e desordens, malgrado as instituições e leis que as controlavam, como negar que tais assembleias deverão ser muito mais desordenadas quando não seguem a constituição estabelecida, mas se reúnem tumultuosamente após a dissolução do antigo governo, a fim de dar origem a um novo? Não será totalmente quimérico falar de uma escolha em tais circunstâncias? Os aqueus gozavam da democracia mais livre e mais perfeita de toda a antiguidade, e todavia, como nos diz Políbio, usaram da força para obrigar algumas cidades a entrar para sua liga. Henrique IV e Henrique VII da Inglaterra não possuíam realmente outro título ao trono senão uma eleição parlamentar; contudo, jamais o reconheceram, pois isso iria enfraquecer sua autoridade. Muito estranho, se o consentimento e as promessas são o único fundamento verdadeiro de toda autoridade! É inútil dizer que todos os governos são ou devem ser criados com base no consentimento popular, na medida em que a necessidade das coisas humanas o permitir. Isto é totalmente favorável à ideia que defendo. Afirmo que jamais as coisas humanas permitirão tal consentimento, e raramente algo que aparente sê-lo; e que a conquista ou a usurpação, ou mais simplesmente a força, mediante a dissolução dos antigos governos, é a origem de quase todos os novos governos que o mundo viu nascer. E que, nos poucos casos em que possa parecer ter havido um consentimento, este foi geralmente tão irregular, tão limitado ou tão misturado com a fraude e a violência, que não se lhe pode atribuir grande autoridade. Não tenho aqui a intenção de negar que o consentimento do povo, quando ocorre, seja um justo fundamento do governo; é sem dúvida o melhor e o mais sagrado de todos. Afirmo apenas que muito raramente ele se verificou, em qualquer grau, e quase nunca em toda a sua plenitude, e que é portanto forçoso admitir também algum outro fundamento do governo. Se todos os homens fossem inspirados por tão inflexível respeito pela justiça que por si sós se abstivessem totalmente da propriedade alheia, teriam ficado para sempre num estado de liberdade absoluta, sem se submeterem a qualquer magistrado ou sociedade política. Mas isso seria um estado de perfeição do qual, com razão, a natureza humana é considerada incapaz. Mais, fossem eles dotados de um entendimento tão perfeito que sempre lhes permitisse saber quais são seus interesses, jamais teria sido proposta qualquer outra forma de governo que não a que assenta no consentimento e é plenamente votada por todos os membros da sociedade. Mas este estado de perfeição é também totalmente inacessível à natureza humana. A razão, a história e a experiência nos mostram que todas as sociedades políticas tiveram uma origem muito menos exata e regular; e, se procurássemos o momento em que nos eventos políticos o consentimento do povo menos é levado em conta, deveríamos escolher precisamente o momento em que é instituído um novo governo. Numa constituição estabelecida a opinião do povo é frequentem ente consultada, mas durante a fúria das revoluções, das conquistas e das convulsões políticas é geralmente a força militar ou a habilidade política que decide a controvérsia. Quando é instituído um novo governo, seja por que meios for, o povo fica geralmente descontente com ele, e obedece mais por medo e necessidade do que em virtude de qualquer ideia de fidelidade ou de obrigação moral. O príncipe está atento e vigilante, precisando se precaver cuidadosamente contra qualquer início ou sinais de insurreição. O tempo vai gradualmente fazendo desaparecer todas estas dificuldades, e habituando o povo a reconhecer como seus príncipes legítimos ou naturais os membros daquela mesma família que de início havia considerado uma família de usurpadores ou conquistadores estrangeiros. E para fundamentar esta opinião não recorrem a nenhuma noção de promessa ou consentimento voluntário, o qual bem sabem não ter sido, neste caso, nem esperado nem pedido. A instituição original é feita através da violência, e a submissão é devida à necessidade. A administração subsequente é também sustentada pelo poder, e aceita pelo povo, como uma questão de obrigação e não de escolha. O povo não imagina que seu consentimento confere um título ao príncipe; consente de boa vontade, por pensar que a longa posse lhe conferiu um título, independentemente de sua escolha ou sua preferência. Se se objetar que, pelo fato de continuar vivendo sob o domínio de um príncipe que seria possível abandonar, cada indivíduo manifesta um consentimento tácito a sua autoridade e lhe promete obediência, poderá responder-se que tal consentimento implícito só pode ter lugar se cada indivíduo pensar que o caso depende de sua escolha. Mas, se cada um pensar (como sucede com todos os homens que nasceram sob o governo estabelecido) que tem desde a nascença deveres de submissão para com certo príncipe ou certa forma de governo, será absurdo inferir um consentimento ou escolha que, neste caso, todos expressamente negam e repudiam. Será lícito afirmar seriamente que um pobre camponês ou artífice tem a possibilidade de livremente abandonar seu país, quando não conhece as línguas nem os costumes estrangeiros, e vive apenas seu dia-a-dia com o pequeno salário que ganha? Seria o mesmo que dizer que um homem, devido ao fato de permanecer num navio, dá seu livre consentimento à autoridade do capitão, embora tenha sido levado para bordo enquanto dormia, e só lançando-se ao mar e morrendo possa sair do navio. E se o príncipe proíbe os súditos de abandonar seus domínios, como no tempo de Tibério, quando um cavaleiro romano foi considerado criminoso por haver tentado fugir para a Pártia, a fim de escapar à tirania daquele imperador ê? Ou como quando os antigos moscovitas castigavam toda e qualquer viagem com a pena de morte? E, se acaso um príncipe verificasse que grande número de seus súditos era atacado por uma fúria de emigração para o estrangeiro, sem dúvida alguma disso os impediria, e com grande razão e justiça, para evitar o despovoamento de seu reino. Perderia ele o direito à fidelidade de todos os seus súditos em virtude dessa lei tão sensata e razoável? E neste caso não há dúvida que os súditos são privados de sua liberdade de escolha. Um grupo de homens que abandonasse seu país natal para ir povoar qualquer região desabitada poderia sonhar com a recuperação de sua liberdade natural; mas depressa viria a descobrir que seu príncipe continuava reivindicando-os como seus súditos, apesar de se encontrarem em uma nova colônia. E com esta atitude estaria apenas agindo em conformidade com as ideias mais comuns dos homens. O exemplo mais autêntico que se pode verificar, de um consentimento tácito deste tipo, é o do estrangeiro que se instala em qualquer país, conhecendo previamente o príncipe, o governo e as leis a que irá submeter-se. Mesmo assim, embora seja mais voluntária, sua fidelidade é muito menos esperada e exigida que a de um súdito nascido no país; pelo contrário, seu príncipe natural continua reivindicando-o. E, se acaso não castiga o renegado, se o captura quando em guerra a serviço de seu novo príncipe, essa clemência não assenta na lei nacional, a qual em todos os países condena o prisioneiro, e sim no consentimento dos príncipes, que combinaram entre si esta indulgência, a fim de evitar represálias. Se uma geração de homens se retirasse de cena de uma vez só, e lhe sucedesse outra, como acontece no caso dos bichos-da-seda e das borboletas, a nova raça, se fosse suficientemente sensata para escolher seus governantes, coisa que sem dúvida nunca acontece entre os homens, poderia estabelecer voluntariamente e mediante o consentimento geral sua própria forma de constituição, sem de modo algum levar em conta as leis ou precedentes que dominavam no tempo, de seus antepassados. Mas a sociedade humana está em fluxo permanente, a cada momento há um homem que se retira do mundo e outro que nele entra, e assim torna-se necessário, a fim de preservar a estabilidade do governo, que os membros da nova raça aceitem a constituição estabeleci da, seguindo de perto o caminho traçado por seus pais, os quais por sua vez fizeram o mesmo, seguindo as pisadas de seus pais. Em todas as instituições humanas é necessário introduzir algumas inovações, e são casos felizes aqueles em que o gênio esclarecido da época orienta estas no sentido da razão, da liberdade e da justiça. Mas a nenhum indivíduo é lícito realizar inovações violentas: estas são perigosas mesmo quando feitas pelo legislativo; delas é sempre de esperar maior mal do que bem e, se é certo que a história nos dá exemplos do contrário, mesmo assim estes não podem ser transformados em precedentes, e devem ser apenas considerados como prova de que na ciência política há poucas regras que não admitam certas exceções, e que não possam às vezes ser modificadas pelo acaso. As violentas inovações do reinado de Henrique VIII foram introduzidas por um monarca despótico, sustentado por uma aparência de autoridade legislativa; as do reinado de Carlos I foram causadas pelo partidarismo e pelo fanatismo, e tanto umas como outras deram bons resultados em cada caso. Mas mesmo as primeiras foram durante muito tempo fonte de inúmeras desordens, e de ainda mais perigos; e, se as regras da fidelidade forem extraídas das segundas, a sociedade humana se tornará teatro da mais completa anarquia, e todo governo chegará imediatamente a seu fim. Suponhamos que um usurpador, depois de banir seu príncipe legítimo e a família real, imponha seu jugo a qualquer país, durante dez ou doze anos, conseguindo manter em suas tropas uma disciplina tão rigorosa e em suas guarnições uma ordem tão impecável que jamais se erga qualquer insurreição, nem se ouça qualquer murmúrio contra sua administração. Poderá neste caso afirmar-se que o povo, que em seus corações detesta essa traição, deu um consentimento tácito a sua autoridade e lhe prometeu fidelidade, só pelo fato de a necessidade o levar a viver sob seu jugo? Suponhamos agora que o príncipe legítimo é recolocado no trono, por meio de um exército por ele recrutado em países estrangeiros: o povo recebê-lo-á com alegria e exultação, mostrando claramente com que relutância se havia submetido a outro jugo. Posso agora perguntar qual o fundamento em que assenta o título do príncipe. Evidentemente não é o consentimento popular, pois, embora o povo de boa vontade aceite sua autoridade, jamais pensa que foi seu consentimento que o tornou soberano; se deu o consentimento, foi por considerá-lo já, por nascimento, seu soberano legítimo. Quanto àquele consentimento tácito que agora se pode deduzir do fato de viver sob seu domínio, nada mais é do que aquele que anteriormente havia dado ao tirano e usurpador. Ao afirmarmos que todo governo legítimo deriva do consentimento do povo, sem dúvida lhe prestamos uma homenagem muito superior à que merece, ou sequer espera e deseja que lhe prestemos. Quando os domínios romanos se tornaram demasiado difíceis de controlar para que a república pudesse governá-los, o povo de todo o mundo conhecido ficou extremamente grato a Augusto pela autoridade que, mediante a violência, sobre ele estabeleceu; e manifestou igual intenção de submeter-se ao sucessor que ele indicasse em seu testamento. Posteriormente, teve a desgraça de nunca haver uma família que estabelecesse uma sucessão longa e regular, e que a linhagem de seus príncipes fosse continuamente interrompida, tanto por atentados pessoais como por rebeliões públicas. De cada vez que caía uma família, a guarda pretoriana escolhia um imperador; as legiões do Leste escolhiam um segundo; as da Germânia, talvez, um terceiro; e só pela espada se decidia a controvérsia. Se nessa poderosa monarquia a condição do povo era digna de lástima, não era pelo fato de nunca ser feita por ele a escolha do imperador, pois isso seria impraticável, mas pelo de nunca ter sido governado por uma sucessão de chefes que se seguissem regularmente uns aos outros. Quanto à violência, às guerras e ao derramamento de sangue que foram provocados pela nova escolha, não devem ser censurados, pois eram inevitáveis. A casa de Lencastre governou esta ilha durante cerca de sessenta anos, mas os partidários da rosa branca pareciam multiplicar-se todos os dias na Inglaterra; a linhagem atual já está no governo há mais tempo ainda. Terá desaparecido completamente qualquer possibilidade de direitos de outra família, embora na época em que ela foi expulsa quase nenhum homem ainda hoje vivo tivesse já chegado à idade da razão, ou pudesse ter consentido em seu domínio ou a ela ter prometido obediência e fidelidade? O que constitui sem dúvida indicação suficiente da atitude geral dos homens quanto a esse aspecto; porque, se censuramos os partidários da família destronada, não é apenas devido ao longo período durante o qual conservaram sua imaginária fidelidade; censuramo-los por defenderem uma família que, afirmamo-lo nós, foi justamente expulsa, e que a partir do momento em que a nova linhagem teve início perdeu todo direito à autoridade. Mas, para apresentarmos uma refutação mais regular, ou pelo menos mais filosófica, desse princípio do contrato original ou consentimento popular, talvez bastem as observações seguintes. Os deveres morais podem ser divididos em duas espécies. A primeira compreende aqueles a que todos os homens são conduzidos por um instinto ou propensão natural, que exerce influência sobre eles independentemente de qualquer ideia de obrigação e qualquer consideração da utilidade pública ou privada. Desta natureza são o amor pelas crianças, a gratidão para com os benfeitores e a piedade pelos infelizes. Ao refletirmos sobre as vantagens de que a sociedade se beneficia graças a tais instintos humanos, prestamo-lhes o justo tributo da aprovação e da estima moral; mas a pessoa que por eles é guiada sente seu poder e influência anteriormente a qualquer reflexão deste tipo. A segunda espécie de deveres morais é a dos que não assentam em qualquer instinto original da natureza, derivando inteiramente de um sentido de obrigação, quando consideramos as necessidades da sociedade humana e a impossibilidade de preservá-la se esses deveres forem descurados. É assim que a justiça, o respeito pela propriedade alheia, e a lealdade, o cumprimento das promessas, se tornam obrigatórias e ganham autoridade sobre os homens. Porque, sendo evidente que todo homem se ama mais a si mesmo do que a qualquer outra pessoa, ele é naturalmente levado a ampliar o mais possível suas aquisições; e esta sua propensão só pode ser limitada pela reflexão e pela experiência, graças às quais fica conhecendo os efeitos perniciosos desse excesso de liberdade e a total dissolução da sociedade que dela forçosamente decorrerá. Portanto, suas tendências ou instintos originais são aqui restringidos e limitados por um juízo ou observação posterior. Com o dever político ou civil de fidelidade acontece precisamente o mesmo que com os deveres naturais de justiça e lealdade. Nossos instintos primitivos nos conduzem, ou a conceder a nós mesmos uma liberdade ilimitada, ou a procurar o domínio sobre os outros; e só a reflexão nos leva a sacrificar essas fortes paixões aos interesses da paz e da ordem pública. Basta um pequeno grau de experiência e de observação para mostrar que é impossível preservar a sociedade sem a autoridade dos magistrados, e que esta autoridade depressa passaria a ser desrespeitada se não se fizesse obedecer da maneira mais rigorosa. A observação destes interesses gerais e evidentes é a fonte de toda sujeição e de toda obrigação moral que a ela atribuímos. Qual é pois a necessidade de fazer assentar o dever de fidelidade ou obediência aos magistrados no de lealdade ou cumprimento das promessas, e de supor que é o consentimento de cada indivíduo que o submete ao governo, quando vemos que a fidelidade e a lealdade assentam ambas exatamente no mesmo fundamento, e são ambas aceitas pelos homens devido aos evidentes interesses e necessidades da sociedade humana? Diz-se que somos obrigados a obedecer a nosso soberano porque lhe fizemos uma promessa tácita nesse sentido; mas por que somos obrigados a cumprir nossa promessa? Devemos aqui afirmar que o comércio e as relações entre os homens, que tão grandes vantagens oferecem, não possuirão segurança alguma se os homens não respeitarem seus compromissos. De modo semelhante se pode dizer que seria totalmente impossível viver em sociedade, ou pelo menos numa sociedade civilizada, sem leis, magistrados e juízes para impedir os abusos dos fortes contra os fracos, dos violentos contra os justos e equitativos. Como a obrigação de fidelidade tem a mesma força e autoridade que a obrigação de lealdade, nada ganhamos em reduzir uma à outra; para fundamentar ambas elas bastam os interesses e necessidades gerais da sociedade. Se se perguntar qual a razão dessa obediência que somos obrigados a prestar ao governo, prontamente responderei que é porque de outro modo a sociedade não poderia subsistir. E esta resposta é clara e inteligível para todo e qualquer homem. Vossa resposta é: porque devemos cumprir a palavra dada. Mas, além de ninguém, antes de ser instruído num sistema filosófico, ser capaz de compreender ou apreciar esta resposta, além disso, digo eu, vós mesmos ficais embaraçados quando se pergunta por que somos obrigados a cumprir a palavra dada. E não se pode dar outra resposta a não ser aquela que, imediatamente e sem qualquer desvio, explica nossa obrigação de fidelidade. Mas a quem é devida a fidelidade? Quem é nosso soberano legítimo? Este problema é geralmente o mais difícil de todos, e pode dar origem a infindáveis discussões. Quando se tem a felicidade de poder responder: Nosso soberano atual, que herdou em linha direta de antepassados que nos governaram durante muitas gerações, esta resposta não admite réplica; mesmo que os historiadores, investigando até à mais remota antiguidade a origem dessa família real, descubram, como frequentemente acontece, que sua autoridade teve inicialmente origem na usurpação e na violência. Todos reconhecem que a justiça privada, o respeito pela propriedade alheia, é uma virtude extremamente importante; contudo, a razão nos diz que não há propriedade de objetos duradouros, como terras ou casas, quando cuidadosamente investigada sua passagem de mão em mão, que não deva em algum momento ter-se baseado na fraude e na injustiça. As necessidades da sociedade humana, tanto na vida privada como na pública, não permitirão uma investigação tão rigorosa; e não há virtude ou dever moral algum que não possa facilmente ser rejeitado, se permitirmos que uma falsa filosofia a analise e inspecione, mediante toda e qualquer regra capciosa da lógica, sob todo e qualquer aspecto ou posição em que possa ser colocado. Os problemas relacionados com a propriedade privada encheram inúmeros volumes de direito e filosofia, sem em ambos contarmos com os comentadores do texto original, mas apesar disso podemos afirmar que muitas das regras neles estabelecidas são incertas, ambíguas e arbitrárias. Idêntica opinião se pode formar a respeito da sucessão e dos direitos dos príncipes e das formas de governo. Não há dúvida que se dão vários casos, sobretudo na infância de qualquer constituição, que de modo algum podem ser determinados pelas leis da justiça e da equidade; e nosso historiador Rapin afirma que a controvérsia entre Eduardo III e Filipe de Valois era desta natureza, e só podia ser decidida por um apelo ao céu, ou seja, pela guerra e pela violência. Quem poderá dizer-me se seria Germânico ou Druso quem deveria ter sucedido a Tibério, se este tivesse morrido, estando ambos vivos, sem designar nenhum deles como seu sucessor? Deveria o direito de adoção ser aceito como equivalente ao do sangue, numa nação em que ele tinha o mesmo efeito nas famílias, e já em dois casos havia tido aplicação política? Deveria Germânico ser considerado como filho mais velho, por ter nascido antes de Druso, ou mais novo, por ter sido adotado depois do nascimento de seu irmão? Deveria o direito do mais velho ser levado em conta, numa nação onde não era aplicado à sucessão nas famílias? Deveria o Império Romano dessa época ser considerado hereditário, em virtude de dois exemplos, ou deveria ele, mesmo numa época tão recuada, ser considerado como pertencente ao possuidor mais forte ou ao do momento, devido a basear-se em tão recente usurpação? Cômodo subiu ao trono depois de uma série bastante longa de excelentes imperadores, os quais não tinham adquirido seu título nem por nascimento nem por eleição pública, mas pelo ritual fictício da adoção. Depois de esse devasso sanguinário ser assassinado por uma conspiração repentinamente urdida entre sua concubina e o amante desta, que por acaso era nessa ocasião prefeito pretoriano, estes imediatamente discutiram a escolha do novo senhor do gênero humano, para falar no estilo daqueles tempos, e deram sua preferência a Pertinax. Antes de ser conhecida a morte do tirano, o prefeito foi secretamente procurar aquele senador, o qual, ao ver aparecerem os soldados, julgou que sua execução havia sido ordenada por Cômodo. Foi imediatamente proclamado imperador pelo administrador e sua comitiva; entusiasticamente aclamado pela populaça; relutantemente obedecido pelos guardas; formalmente reconhecido pelo senado; e passivamente aceito pelas províncias e exércitos do império. O descontentamento da guarda pretoriana irrompeu em repentina sedição, a qual ocasionou o assassínio daquele excelente príncipe; ficando assim o mundo sem senhor e sem governo, os guardas houveram por bem pôr formalmente o império à venda. Juliano, o comprador, foi aclamado pelos soldados, reconhecido pelo senado e obedecido pelo povo, e também teria sido obedecido pelas províncias, se a cobiça das legiões não tivesse feito surgir oposição e resistência. Pescênio Niger, na Síria, fez-se eleger imperador, conseguiu o tumultuoso assentimento de seu exército e viu-se apoiado pelo secreto favor do senado e do povo de Roma. Albino, na Grã-Bretanha, considerou-se com igual direito a apresentar suas pretensões; mas Severo, que governava a Panônia, acabou finalmente por sobrepujar a ambos. Esse hábil político e guerreiro, achando seu nascimento e dignidade demasiado baixos para a coroa imperial, ao princípio confessou apenas a intenção de vingar a morte de Pertinax. Avançou como general sobre a Itália; derrotou Juliano; e, sem que possamos determinar o início exato do consentimento sequer de seus soldados, foi, por necessidade, reconhecido como imperador pelo senado e pelo povo; e sua violenta autoridade foi plenamente consolidada pela submissão de Niger e Albino. Nesse ínterim, Gordiano César (diz Capitolino, referindo-se a outro período) apoiado pelos soldados, foi aclamado imperador, pois, no momento, não havia outro. Convém salientar que Gordiano era um moço de catorze anos de idade. Na história dos imperadores encontram-se numerosos exemplos de natureza semelhante, como na dos sucessores de Alexandre e na de muitos outros países. E nada pode ser mais lamentável que um governo despótico deste tipo, em que a sucessão é desarticulada e irregular, tendo que ser resolvida, de cada vez que o trono fica vago, pela força ou por eleições. Num governo livre isso é muitas vezes inevitável, sendo também muito menos perigoso. Os interesses da liberdade podem frequentem ente levar o povo, em sua própria defesa, a modificar a sucessão da coroa. E a constituição, por ser composta de partes, pode continuar a manter uma estabilidade suficiente apoiando-se nos membros aristocráticos ou democráticos, embora de vez em quando o membro monárquico seja mudado, a fim de ser ajustado aos primeiros. Num governo absoluto, nos casos em que não haja um príncipe legítimo que possua direito ao trono, este pode com segurança ser considerado pertencente ao primeiro ocupante. Os exemplos deste gênero são até demasiado frequentes, sobretudo nas monarquias orientais. Quando uma linhagem de príncipes se extingue, o testamento ou as disposições do último soberano devem ser considerados como um título. Assim o edito de Luís XIV, que considerava sucessores os príncipes bastardos, no caso de faltarem todos os príncipes legítimos, teria nesse caso certa autoridade. “É notável que, no protesto do Duque de Bourbon e dos príncipes legítimos contra esta determinação de Luís XIV, se insista na doutrina do contrato original, mesmo sob aquele governo absoluto. Dizem eles que, tendo a nação francesa escolhido Hugo Capeto e sua posteridade para governá-la, e a sua posteridade, no caso de falhar a primeira linha de sucessão, existe um direito tácito de escolher uma nova família real e este direito é violado pela convocação dos príncipes bastardos para o trono, sem o consentimento da nação. Mas o Conde de Boulainvilliers, que escreveu a defesa dos príncipes bastardos, ridiculariza esta noção de contrato original, especialmente quando aplicada a Hugo Capeto, o qual subiu ao trono, diz ele, mediante as mesmas artes que desde sempre foram usadas por todos os conquistadores e usurpadores. E certo que fez reconhecer seu título pelos Estados, depois de ter assegurado a posse do trono: mas isto será uma escolha ou um contrato? Convém salientar que o Conde de Boulainvilliers era um conhecido republicano, mas, sendo homem culto e muito versado em história, sabia que o povo quase nunca é consultado nessas revoluções, e que só o tempo confere direito e autoridade àquilo que geralmente começa por assentar na força e na violência. (Nota do Autor)” Do mesmo modo, foi o testamento de Carlos II que decidiu o destino de toda a monarquia espanhola. A cessão do antigo proprietário, sobretudo quando se vem juntar à conquista, é de maneira semelhante considerada um título válido. A obrigação geral que nos vincula ao governo depende do interesse e das necessidades da sociedade; e esta obrigação é muito forte. Sua atribuição a este ou aquele príncipe ou forma de governo em particular é frequentem ente mais incerta e duvidosa. A posse atual tem considerável autoridade nestes casos, e mais do que na propriedade privada, devido às desordens que acompanham todas as revoluções e mudanças de governo. Antes de acabar, assinalaremos apenas que, embora invocar a opinião geral possa com justiça, nas ciências especulativas como a metafísica, a filosofia natural ou a astronomia, ser considerado injusto e inconsequente, mesmo assim, em todos os problemas relacionados com a moral, assim como com a crítica, não há efetivamente nenhum outro padrão que possa resolver qualquer controvérsia. E nada prova mais claramente que uma teoria deste tipo é errônea do que o fato de ela conduzir a paradoxos que repugnam aos sentimentos mais comuns dos homens e aos usos e opiniões de todas as nações e de todas as épocas. A doutrina que baseia todo governo legítimo num contrato original, ou no consentimento do povo, pertence a este tipo; e o mais conhecido de seus partidários, em sua defesa, não hesitou em afirmar que a monarquia absoluta é incompatível com a sociedade civil, e portanto de modo algum pode ser uma forma de governo civil; e que o poder supremo de um Estado não pode tirar a nenhum homem, por meio de impostos ou tributos, parte alguma de sua propriedade, sem seu próprio consentimento ou o de seus representantes. É fácil averiguar que autoridade pode ter qualquer argumentação moral que conduza a opiniões tão afastadas dos usos mais habituais entre os homens, em toda a parte menos neste reino. O único texto da antiguidade que encontrei, onde a obrigação de obediência ao governo é atribuída a uma promessa, está no Críton de Platão, no trecho em que Sócrates recusa fugir da prisão, por ter tacitamente prometido obedecer às leis. Assim, tira ele uma consequência tory de obediência passiva, partindo do fundamento whig do contrato original. Não é de esperar que surjam novas descobertas nestes domínios, Se, até uma época bem avançada, raros foram os homens que pensaram que o governo se baseia num pacto, é coisa certa que ele, em geral, não pode ter tal fundamento. Entre os antigos, o crime de rebelião era vulgarmente designado pela expressão neoterídzein, novas res moliri. DA OBEDIÊNCIA PASSIVA Procuramos no ensaio anterior refutar os sistemas políticos especulativos apresentados neste país, tanto o sistema religioso de um partido como o sistema filosófico de outro. Passamos agora a examinar as consequências práticas deduzidas por cada um dos partidos, em relação às normas da submissão devida aos soberanos. Dado que a obrigação de justiça assenta inteiramente nos interesses da sociedade, os quais exigem a mútua abstinência da propriedade, a fim de preservar a paz entre os homens, é evidente que, se acaso a execução da justiça implicar consequências altamente perniciosas, essa virtude deve ser suspensa e substituída pela utilidade pública, nessas emergências extraordinárias e urgentes. A máxima "Fiat Justitia et ruat Coelum "(Que a justiça seja cumprida, mesmo que o universo seja destruído) é evidentemente falsa, e, sacrificando os fins aos meios, revela uma ideia absurda da subordinação dos deveres. Algum governador hesitará em queimar os subúrbios de sua cidade, caso eles facilitem o avanço do inimigo? Algum general se absterá de saquear um país neutro, se assim o exigirem as necessidades da guerra, não tendo outra maneira de sustentar seu exército? Com o dever de fidelidade acontece o mesmo: e o senso comum nos ensina que, como o governo nos obriga à obediência apenas porque esta é favorável à utilidade pública, esse dever terá sempre que se submeter, nos casos extraordinários em que a obediência acarretar de modo evidente a ruína pública, à obrigação primeira e original. "Salus populi suprema Lex": "A segurança do povo é a lei suprema". Essa máxima agrada aos sentimentos dos homens de todas as épocas; e não há ninguém tão fanático dos sistemas dos partidos que, lendo a história das insurreições contra um Nero ou um Filipe II, não deseje o sucesso da empresa, ou deixe de louvar os que a executam. Mesmo nosso arrogante partido monárquico, mal grado sua sublime teoria, se vê em tais casos obrigado a julgar, sentir e aprovar em conformidade com os outros homens. Admitindo-se portanto a resistência em casos extraordinários, o único problema que merece ser discutido entre bons pensadores é qual o grau de necessidade capaz de justificar a resistência, tomando-a legítima e recomendável. E devo aqui confessar que sempre preferirei a opinião daqueles que respeitam muito rigorosamente os laços da fidelidade, e consideram sua infração como um último refúgio, nos casos desesperados em que o povo se encontra em perigo iminente de sofrer violência e tirania. Porque além dos malefícios da guerra civil, que a insurreição geralmente acarreta, é coisa certa que o aparecimento em qualquer povo de uma tendência para a rebelião é sempre uma das principais causas da tirania dos dirigentes, obrigando-os a numerosas medidas violentas que jamais adotariam se todos tendessem para a sujeição e a obediência. E por isso o tiranicídio ou assassinato, aprovado por antigas máximas, longe de atemorizar os tiranos e os usurpadores, em vez disso os torna dez vezes mais ferozes e impiedosos, e foi já por tudo isso justamente abolido pelas leis das nações, e universalmente condenado como um método baixo e traiçoeiro de justificar esses tumultuadores da sociedade. Devemos além disso considerar que, sendo a obediência um dever, em circunstâncias normais, é nela que sobretudo se deve insistir; nada poderia ser mais absurdo do que enumerar com excessiva preocupação e cuidados todos os casos em que se pode permitir a resistência. De maneira semelhante, e embora um filósofo possa com razão reconhecer, no decorrer de sua argumentação, que é lícito prescindir das regras da justiça em casos de necessidade urgente, que deveríamos nós pensar de qualquer pregador ou casuísta que escolhesse como principal objeto de seu estudo a determinação de tais casos, defendendo o direito de resistência com a maior veemência de argumentação e eloquência? Acaso não seria preferível dedicar-se ele à difusão da doutrina geral, em vez de apresentar as exceções particulares, as quais talvez os homens tenham, por si sós, uma tendência excessiva para adotar e exagerar? Todavia, duas razões podem ser invocadas em defesa daquele partido que entre nós diligentemente tem propagado os princípios da resistência, princípios esses que, forçoso é confessá-lo, geralmente tão perniciosos e tão destrutivos são para a sociedade civil. A primeira é que seus adversários levaram a doutrina da obediência a tais extremos, não só nunca referindo as exceções em casos extraordinários (o que poderia talvez ser desculpável), mas chegando até a negá-las expressamente, que se tornou necessário insistir nessas exceções, em defesa dos direitos da verdade e de liberdade ofendidas. A segunda e talvez a melhor dessas razões, assenta na natureza da Constituição e da forma de governo da Inglaterra. É característica quase exclusiva de nossa Constituição haver um primeiro magistrado com tão grande preeminência e dignidade que, apesar de limitado pelas leis, se encontra de certo modo, no que diz respeito a sua própria pessoa, acima das leis, não podendo ser interrogado nem punido por qualquer injúria ou delito que possa cometer. Apenas seus ministros, ou aqueles que agem por sua delegação, estão submetidos à justiça; e, enquanto a garantia de sua proteção pessoal leva o príncipe a não impedir o livre curso das leis, se preserva na realidade uma segurança equivalente, por meio da punição dos transgressores menores, ao mesmo tempo que se evita a guerra civil, a qual ocorreria inevitavelmente, se de cada vez fosse diretamente atacado. Contudo, embora a Constituição preste ao príncipe esta salutar homenagem, jamais poderá razoavelmente pensar-se que com este princípio ela haja ditado sua própria destruição, ou instituído uma dócil submissão, no caso de ele proteger seus ministros, perseverar na injustiça e usurpar todo o poder do Estado. É certo que este caso não é expressamente previsto pelas leis, pois estas, em seu papel normal, não podem dar-lhe solução, nem instituir um magistrado com autoridade superior, que possa castigar as exorbitâncias do príncipe. Mas um direito sem solução possível seria coisa absurda, e assim, para este caso há a solução excepcional da resistência, sempre que se chegue à situação extrema de só por esse meio se poder defender a Constituição. Portanto, a resistência deve, evidentemente, tornar-se mais frequente no governo inglês do que em outros que são mais simples e implicam menor número de partes e de movimentos. Quando o rei é um soberano absoluto, está pouco sujeito à tentação de exercer a desmedida tirania que seria capaz de provocar uma justa rebelião, mas quando é um soberano limitado, sua imprudente ambição, mesmo sem quaisquer vícios, pode arrastá-lo para essa perigosa situação. É opinião corrente que foi esse o caso de Carlos I e, se nos é permitido falar verdade, agora que os ódios já se extinguiram, foi também o caso de Jaime II. Embora não fossem homens de bom caráter, eram homens inofensivos, mas interpretaram erradamente a natureza de nossa Constituição e monopolizaram todo o Poder Legislativo, e assim tornou-se necessário fazer-lhes frente com certa veemência, e até privar formalmente o segundo daquela autoridade que ele usara de modo tão imprudente e irrefletido. DOS PRIMEIROS PRINCÍPIOS DO GOVERNO Aos olhos daqueles que estudam de maneira filosófica os problemas humanos, nada parece mais surpreendente do que a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos, assim como a implícita submissão com que os homens abdicam de seus próprios sentimentos e paixões em favor dos de seus governantes. Se investigarmos através de que meios se consegue este prodígio, verificaremos que, como a força está sempre do lado dos governados, os governantes se apoiam unicamente na opinião. O governo assenta portanto apenas na opinião; e esta máxima se aplica tanto aos governos mais despóticos e militares como aos mais livres e populares. O sultão do Egito, ou o imperador de Roma, podiam conduzir seus súditos inermes, como animais, contra seus sentimentos e inclinações; mas pelo menos precisavam comandar seus mamelucos, ou seus guardas pretorianos, como homens, através de sua opinião. A opinião pode ser de duas espécies, a saber, a opinião de interesse e a opinião de direito. Por opinião de interesse entendo sobretudo o sentido dos benefícios gerais que derivam do governo, juntamente com a convicção de que aquele governo que está efetivamente estabelecido é tão vantajoso como qualquer outro que facilmente pudesse ser instituído. Todo governo adquire grande segurança, sempre que é esta a opinião dominante num Estado, ou entre aqueles que detêm a força nas mãos. O direito pode ser de duas espécies, o direito ao poder e o direito à propriedade. Facilmente se pode constatar a preponderância, entre os homens da opinião, da primeira espécie, observando a dedicação de todos os povos a seus antigos governos, e mesmo àqueles nomes que receberam a consagração da antiguidade. A antiguidade sempre dá origem à opinião de direito; e, por mais desfavorável que seja o conceito em que temos os homens, a verdade é que eles sempre se mostram prontos a sacrificar vida e fortuna para a manutenção da justiça pública. Não há, sem dúvida, outro caso em que à primeira vista possamos encontrar, na conformação do espírito humano, maior contradição do que esta. Quando um homem pertence a um partido, é capaz, sem vergonha ou remorso, de desprezar todos os liames da honra e da moral para servir à sua facção; apesar disso, quando um partido se constitui com base num ponto de direito ou de princípio, nenhuma outra circunstância permite aos homens dar mostras de maior firmeza e mais sólido sentido da justiça e da equidade. É a mesma predisposição social dos homens que dá origem a estas manifestações contraditórias. É evidente que a opinião de direito à propriedade é da maior importância em todas as questões relacionadas com o governo. Um autor famoso fez da propriedade o fundamento de todo governo, e a maior parte de nossos autores políticos parece tender para concordar com ele quanto a esse ponto. Isso é levar as coisas longe demais; todavia, é forçoso reconhecer que a opinião de direito à propriedade exerce grande influência nesta questão. É portanto nestas três opiniões, de interesse público, de direito ao poder e de direito à propriedade, que têm seu fundamento todos os governos e toda autoridade dos poucos sobre os muitos. É certo que há outros princípios, que conferem a estes maior força, e determinam, limitam ou alteram sua influência, como, por exemplo, o interesse pessoal, o medo e a afeição; podemos contudo afirmar que estes outros princípios são incapazes de por si sós exercer qualquer influência, e pressupõem uma influência anterior das opiniões acima referidas. Devem portanto ser considerados princípios secundários do governo, e não seus princípios originais. Porque, primeiro, quanto ao interesse pessoal, entendido aqui no sentido de uma expectativa de recompensas particulares, o que é diferente da proteção geral que recebemos do governo, é evidente que é necessário a autoridade do magistrado estar estabelecida, ou pelo menos ser esperada, antes de poder surgir essa expectativa. A perspectiva de recompensas pode aumentar sua autoridade em relação a algumas pessoas em particular; mas em relação ao público nunca pode dar-lhe origem. Os homens esperam naturalmente receber de seus amigos e conhecidos os maiores favores; portanto, as esperanças de qualquer número importante de súditos jamais se concentrariam em qualquer grupo em especial, se os membros deste não possuíssem qualquer outro título à magistratura e outra influência sobre as opiniões dos homens. Esta mesma observação pode também aplicar-se aos outros dois princípios, o medo e a afeição. Não haveria razão para alguém ter medo da fúria de um tirano, se a autoridade deste proviesse apenas do medo; porque, sendo ele um único homem, sua força corpórea tem alcance muito restrito, e todo o restante poder que possui deve assentar em nossa opinião, ou na suposta opinião de outros. Por outro lado, embora a afeição pela sabedoria e virtude de um soberano tenha grande importância e exerça forte influência, mesmo assim é necessário que anteriormente se considere estar ele investido de uma dignidade pública, caso contrário a estima pública não lhe trará vantagem alguma, nem tampouco sua virtude exercerá qualquer influência para além de um círculo restrito. Um governo pode durar muitas gerações, mesmo que não haja coincidência entre a balança do poder e a balança da propriedade. Isto acontece sobretudo quando qualquer classe ou ordem do Estado adquiriu uma ampla parcela da propriedade, mas, devido à Constituição original do governo, não participa do poder. A que título poderia qualquer indivíduo dessa classe adquirir autoridade nos negócios públicos? Como geralmente os homens são extremamente dedicados a seu antigo governo, não é de esperar que o povo venha jamais a apoiar tais usurpações, Mas quando a Constituição original atribui qualquer parcela de poder, mesmo pequena, a uma classe que possua uma grande parcela de propriedade, fácil se lhe torna ir gradualmente reforçando sua autoridade, levando a balança do poder a coincidir com a da propriedade. Foi isto o que aconteceu na Inglaterra com a Câmara dos Comuns. A maior parte dos autores que escreveram sobre o governo britânico supôs que, como a Câmara Baixa representa todos os comuns da Grã-Bretanha, seu peso na escala é proporcional à propriedade.e ao poder de todos aqueles que representa. Mas este princípio não deve ser considerado absolutamente verdadeiro; porque, embora o povo possa ter maior dedicação pela Câmara dos Comuns do que por qualquer outro membro da Constituição, dado que essa Câmara foi escolhida como sua representante e pública guardiã de sua liberdade, mesmo assim houve casos em que a Câmara, mesmo quando em oposição à coroa, não foi apoiada pelo povo; conforme podemos observar no exemplo da Câmara tory do reinado de Guilherme. Se os membros da Câmara dos Comuns fossem obrigados a receber instruções de seus constituintes, como os deputados holandeses, o caso seria inteiramente diferente; e, se os comuns da Grã-Bretanha tivessem um poder proporcional a seu imenso poder e riqueza, é difícil acreditar que a coroa pudesse influenciar essa multidão de pessoas e resistir a esse predomínio da propriedade. É certo que a coroa exerce grande influência sobre o corpo coletivo na eleição dos membros da Câmara; mas se esta influência, que atualmente se exerce apenas de sete em sete anos, fosse usada para influenciar cada voto do povo, depressa ela se esgotaria, e nenhuma habilidade, popularidade ou renda seria capaz de sustentá-la. Só posso, portanto, ser de opinião que uma alteração neste aspecto viria introduzir em nosso governo uma alteração total, depressa transformando-o em uma pura república; talvez até em uma república de tipo bastante aceitável. Pois, embora quando reunido em corpos como as tribos romanas o povo seja completamente incapaz de ser governado, quando disperso em pequenos grupos é mais suscetível tanto de razão como de ordem; a força das correntes e marés populares é em grande medida atenuada; e é possível promover o interesse público com algum método e regularidade. Mas é inútil tecer mais comentários a respeito de uma forma de governo que provavelmente jamais será instituído na Grã-Bretanha, e que não parece ser objetivo de qualquer de nossos partidos. Procuremos estimar e melhorar o mais possível nosso antigo governo, sem encorajar qualquer paixão por essas perigosas novidades. DA SUCESSÃO PROTESTANTE Creio que, se durante o reinado de Guilherme e Ana, no tempo em que era ainda incerta a consolidação da Sucessão Protestante, um membro do Parlamento estivesse refletindo sobre o partido que deveria tomar quanto a essa importante questão, e avaliando imparcialmente as vantagens e desvantagens de ambos os lados, ele levaria em consideração os seguintes aspectos. Facilmente ele veria a grande vantagem que resultaria da restauração da família Stuart, graças à qual teríamos uma sucessão segura e incontestada, livre de um rival portador de um título tão valioso como o do sangue, o qual sempre constitui para a multidão a reivindicação mais forte e mais facilmente compreensível. Inútil será dizer, como muitos disseram, que o problema dos governantes, independentemente do governo, é um problema frívolo, que pouco merece ser discutido, e muito menos que por causa dele se lute. A grande maioria dos homens jamais partilhará essa opinião, e creio ser muito melhor para a sociedade que o não faça, mantendo suas inclinações naturais. Como poderia ser mantida a estabilidade de qualquer governo monárquico (o qual talvez não seja o melhor, mas é e sempre foi o mais comum de todos), se os homens não tivessem esse respeito apaixonado pelo legítimo herdeiro de sua família real, e, mesmo quando ele é fraco de entendimento ou alquebrado pelos anos, lhe não dessem tão marcada preferência, acima dos homens que possuem brilhantes talentos ou são celebrados por grandes feitos? Sem isso, todos os líderes populares reivindicariam o trono, de cada vez que este ficasse vago, ou até sem que o ficasse, e o reino se transformaria num teatro de guerras e perturbações constantes. Sob este aspecto, sem dúvida a situação do Império Romano não era muito invejável, nem tampouco o é a das nações orientais, que dão pouca importância aos títulos de seu soberano, e todos os dias os sacrificam ao capricho ou disposição momentânea da populaça ou da soldadesca. Louca sabedoria é essa, que tão cuidadosamente se dedica a rebaixar os príncipes, colocando-os ao mesmo nível que os mais desprezíveis dos homens. É certo que o anatomista nada mais encontra no maior dos monarcas do que no mais ínfimo camponês ou jornaleiro, e que o moralista pode muitas vezes encontrar bem menos. Mas a que conduzem todas estas reflexões? Nós, todos nós, conservamos ainda aqueles preconceitos a favor do nascimento e do sangue, e nem nas ocupações sérias nem nos mais descuidados divertimentos conseguimos deles nos libertar inteiramente. Depressa nos enfadaria uma tragédia que apresentasse as aventuras de marinheiros ou carregadores, ou mesmo de particulares de categoria mais elevada, ao passo que aquelas que apresentam reis e príncipes adquirem a nossos olhos uma aura de importância e dignidade. E se acaso algum homem, graças à sua superior sabedoria, pudesse elevar-se inteiramente acima desses preconceitos, depressa a mesma sabedoria o levaria a voltar a eles, para bem da sociedade, cuja prosperidade compreenderia estar a eles intimamente ligada. Longe de procurar abrir os olhos do povo quanto a este aspecto, passaria a estimar esses sentimentos de reverência para com seus príncipes, que tão necessários são para manter na sociedade a devida subordinação. E, mesmo que muitas vezes se sacrifique a vida de vinte mil homens, para manter um rei na posse de seu trono ou impedir que seja prejudicado o direito de sucessão, esse homem não se indigna com aquela perda, alegando que talvez cada um desses indivíduos tivesse tanto valor quanto o príncipe a quem servia; leva em conta as consequências da violação do direito hereditário dos reis, consequências essas que podem fazer-se sentir durante muitos séculos, ao passo que a perda de alguns milhares de homens acarreta tão pouco prejuízo para um grande país que é possível alguns anos depois já não se fazer sentir. As vantagens da ascensão da casa de Hanover ao trono são de natureza oposta, e derivam precisamente do fato de ela constituir uma violação do direito hereditário, e colocar no trono um príncipe que não tem, por nascimento, direito algum a essa dignidade. A história desta ilha mostra de maneira evidente que durante cerca de dois séculos os privilégios do povo têm aumentado constantemente, devido à divisão das terras da Igreja, à alienação das propriedades dos barões, ao progresso do comércio e, acima de tudo, à nossa situação privilegiada, que durante muito tempo nos garantiu uma segurança suficiente, sem ser preciso um exército permanente. Pelo contrário, durante esse mesmo período, e em quase todas as outras nações da Europa, a liberdade pública tem estado em constante declínio, pois o povo ganhou aversão às fadigas da velha milícia feudal, e preferiu conceder exércitos mercenários a seus príncipes, os quais facilmente os voltaram contra eles. Portanto, não é de estranhar que alguns dos soberanos britânicos se tenham enganado quanto à natureza da Constituição, ou pelo menos quanto à índole do povo, aceitando todos os precedentes favoráveis que lhes haviam sido deixados por seus antepassados, ao mesmo tempo em que desprezavam todos os que lhes eram adversos e implicavam uma limitação de nosso governo. Este seu erro foi encorajado pelo exemplo de todos os príncipes vizinhos, o qual, dado que estes tinham o mesmo título ou designação e possuíam as mesmas insígnias de autoridade, naturalmente os levou a exigir os mesmos poderes e prerrogativas. Os discursos e proclamações de Jaime I, e todo o conjunto das ações desse príncipe, assim como de seu filho, mostram claramente que ele considerava o governo inglês uma simples monarquia, e jamais pensou que uma parte importante de seus súditos tinha opinião contrária. Esta ideia levou esses monarcas a revelar suas pretensões, sem preparar a força necessária para apoiá-las, e isto sem aquela reserva ou disfarce que sempre são usados por aqueles que empreendem qualquer projeto novo ou pretendem fazer inovações em qualquer governo. Seus preconceitos se fortaleceram ainda mais devido às lisonjas dos cortesãos, e sobretudo às do clero, o qual, com base em diversas passagens das Escrituras, que além do mais foram deturpadas, haviam elaborado um sistema coerente e confessado de poder arbitrário. A única maneira possível de destruir imediatamente todas estas ambiciosas reivindicações e pretensões era afastar-se da legítima linha hereditária, escolhendo um príncipe que, sendo inequivocamente escolhido pelo povo, e recebendo a coroa sob certas condições, expressas e declaradas, vê sua autoridade estabelecida ao mesmo nível que os privilégios do povo. Escolhendo-o dentro da família real, evitamos todas as esperanças de súditos ambiciosos, que em ocasiões futuras poderiam perturbar o governo com suas cabalas e pretensões; tornando a coroa hereditária em sua família evitamos todos os inconvenientes da monarquia eletiva; e, rejeitando o herdeiro legítimo, preservamos todas as nossas limitações constitucionais, tomando sólido e uniforme nosso governo. O povo respeita a monarquia porque é protegido por ela e o monarca preserva a liberdade porque foi por ela instituído. Assim, a nova instituição garante todas as vantagens permitidas pela experiência e sabedoria dos homens. São estas, consideradas separadamente, as vantagens de defender a sucessão da casa Stuart e a da casa Hanover. Cada uma destas soluções tem também suas desvantagens, as quais um patriota imparcial deveria ponderar e examinar, a fim de formular um juízo imparcial sobre o todo. As desvantagens da sucessão protestante derivam dos domínios estrangeiros que os príncipes de Hanover possuem, os quais é lícito supor que nos arrastariam para as intrigas e guerras do continente, fazendo que em certa medida perdêssemos a inestimável vantagem de estarmos rodeados e guardados pelo mar, que é por nós dominado. As desvantagens de chamar de volta a família deposta vêm sobretudo de sua religião, que é mais prejudicial para a sociedade que a religião estabelecida entre nós, é contrária a esta, e impede que qualquer outra comunidade religiosa goze de tolerância, de paz ou de segurança. É minha opinião que estas vantagens e desvantagens devem ser reconhecidas em ambos os lados, pelo menos por todos aqueles que sejam capazes de um mínimo de reflexão ou raciocínio. Nenhum súdito, por mais leal que seja, pretende negar que o título duvidoso e os domínios estrangeiros da atual família real constituam um inconveniente. Nem tampouco qualquer partidário dos Stuarts deixará de confessar que a reivindicação da hereditariedade, o direito inalienável e a religião católica romana são também desvantagens dessa família. Portanto, compete apenas ao filósofo, que não pertence a nenhum desses partidos, pesar todas as circunstâncias e atribuir a cada uma delas seu verdadeiro valor e influência. Esse filósofo começará prontamente por reconhecer que todas as questões políticas são infinitamente complicadas, e que raras vezes a deliberação leva a uma escolha que seja inteiramente boa ou inteiramente má. De qualquer medida se pode prever que resultem as mais complexas e variadas consequências, e a verdade é que de qualquer uma sempre resultam numerosas consequências imprevistas. Portanto, nesta sua experiência ou tentativa os únicos sentimentos que o inspiram são a hesitação, a reserva e a dúvida, ou então, se alguma paixão se permite, o desprezo pela multidão ignorante, que é sempre vociferante e dogmática, mesmo em relação às questões mais sutis, das quais, talvez mais ainda por falta de moderação que de entendimento, são totalmente incapazes de ser juízes. Mas, para dizer algo mais explícito sobre o assunto, as reflexões seguintes mostrarão, espero, se não o entendimento, pelo menos a moderação do filósofo. Julgando apenas a partir das primeiras aparências e da experiência do passado, temos de admitir que as vantagens do título parlamentar da casa de Hanover são maiores que as do título indiscutível da casa Stuart, e que portanto nossos avós se mostraram sagazes ao preferirem a primeira à segunda. Durante todo o tempo em que a casa Stuart governou a Grã-Bretanha, que, sem contar com a interrupção, somou mais de oitenta anos, o governo viveu permanentemente em sobressalto, devido à luta entre os privilégios do povo e as prerrogativas da coroa. Quando se depunham as armas, continuava o ruído das discussões, e quando estas silenciavam a desconfiança continuava corroendo os corações, lançando a nação em abominável perturbação e desordem. E enquanto nós assim nos entretínhamos com dissensões internas, ia-se elevando na Europa, sem qualquer oposição da nossa parte e até às vezes com nossa ajuda, uma potência estrangeira que constitui um perigo para a liberdade pública. Mas no decorrer dos últimos sessenta anos, devido a ter sido feita uma instituição parlamentar, e malgrado todas as facções que possam ter predominado tanto entre o povo como nas assembleias públicas, toda a força de nossa Constituição sempre pendeu para um só lado, mantendo-se entre nossos príncipes e nossos parlamentares uma ininterrupta harmonia. A liberdade pública, juntamente com a paz e a ordem interna, floresceu quase sem interrupção; houve um incremento do comércio, das manufaturas e da agricultura; cultivaram-se as artes, as ciências e a filosofia. Até os partidos religiosos foram obrigados a pôr de lado seu recíproco rancor, e a glória da nação se espalhou por toda a Europa, graças tanto aos progressos nas artes da paz como à coragem e às vitórias na guerra. Dificilmente alguma nação se poderá vangloriar de um período tão longo e glorioso, nem em toda a história da humanidade existe outro exemplo de tantos milhões de pessoas, durante tão grande espaço de tempo, se terem conservado unidas, de maneira tão livre, tão racional e tão adequada à dignidade da natureza humana. Mas, embora esta recente experiência pareça decidir claramente a favor da atual instituição, há algumas outras circunstâncias que devem ser colocadas no outro prato da balança, pois é perigoso basear nosso juízo num único exemplo ou acontecimento. Tivemos duas revoltas durante o florescente período atrás referido, além de inúmeras conjuras e conspirações. E, se é certo que nenhuma destas deu origem a qualquer acontecimento fatal, devemos pensar que escapamos graças sobretudo à estreiteza de espírito dos príncipes que disputavam nosso governo, e pensar que até agora temos sido bem afortunados. Mas receio que as reivindicações da família deposta ainda se não tenham tornado obsoletas; além disso, quem pode prever se suas futuras tentativas não darão origem a maiores desordens? As dissensões entre o privilégio e a prerrogativa podem ser facilmente resolvidas mediante leis, votações, conferências e concessões, sempre que haja razoável moderação ou prudência de ambos os lados ou apenas de um dos lados. Mas entre títulos conflitantes a questão só pode ser resolvida pela espada, pela devastação e pela guerra civil. Um príncipe que ascende ao trono com um título duvidoso nunca ousa dar armas a seus súditos, o que constitui a única maneira de dar inteira segurança a um povo, tanto contra a opressão interna como contra a conquista por um país estrangeiro. Não obstante nossa riqueza e nossa fama, o último tratado de paz só por pouco nos permitiu escapar a perigos que tiveram origem menos na má direção ou fortuna na guerra do que no pernicioso costume de hipotecar nossas finanças, e ao princípio ainda mais pernicioso de nunca pagar nossas dívidas. Provavelmente jamais teriam sido adotadas essas fatais medidas, se não fosse para defender um governo pouco firme. Mas, para nos convencermos de que um título hereditário é preferível a um título parlamentar que não assente em outras razões ou motivos, basta que nos transportemos para a época da restauração, e imaginemos que ocupamos um lugar naquele Parlamento que chamou de volta a família real, pondo fim às maiores desordens que jamais tiveram origem nas pretensões opostas do príncipe e do povo. O que se pensaria nessa época de alguém que propusesse afastar Carlos II, e entregar a coroa ao Duque de York ou de Gloucester, com o único fim de evitar pretensões ambiciosas como as de seu pai e seu avô? Não seria esse alguém considerado um reformador extravagante, amante das soluções perigosas, capaz de mexer e brincar com um governo e uma Constituição nacional tal como um curandeiro com seu doente? A verdade é que a razão invoca da pela nação para afastar os Stuarts, assim como tantos outros ramos da família real, não foi seu título hereditário (razão essa que a opinião comum teria considerado inteiramente absurda), e sim sua religião; e é isto que nos leva a comparar as desvantagens, atrás referidas, de cada uma dessas famílias. Confesso que, considerando o assunto em geral, seria excessivo desejar que nosso príncipe não tivesse domínios estrangeiros, e pudesse dedicar inteiramente sua atenção ao governo desta ilha. Para não referir alguns verdadeiros inconvenientes que podem resultar da posse de territórios no continente, é certo que esta serve de pretexto para calúnias e difamações, pretexto esse que é avidamente aproveitado pelo povo, o qual está sempre pronto a pensar mal de seus superiores. Deve todavia reconhecer-se que Hanover é talvez o pedaço de terra europeia menos inconveniente para um rei da Inglaterra: fica no coração da Alemanha, a certa distância das grandes potências que são nossas rivais naturais; é protegido pelas leis do império, assim como pelas armas de seu próprio soberano; e serve apenas para ligar-nos mais estreitamente à casa de Áustria, nossa aliada natural. A convicção religiosa da casa Stuart constitui um inconveniente de caráter muito mais profundo, que nos ameaçaria com consequências muito mais funestas. A religião católica romana, com seu préstito de padres e frades, é mais dispendiosa do que a nossa; mesmo que não venha com seu natural acompanhamento de inquisidores, fogueiras e patíbulos, é menos tolerante; e, não lhe bastando separar a função sacerdotal da função real (o que forçosamente é prejudicial para qualquer Estado), ainda atribui a primeira a um estrangeiro, cujos interesses são sempre diferentes do interesse público e podem até muitas vezes ser-lhe opostos. Mas, mesmo que essa religião trouxesse grandes vantagens para a sociedade, ela é contrária àquela que está estabelecida entre nós e que, conforme parece provável, continuará durante muito tempo a dominar o espírito do povo. E, embora seja de esperar que o progresso da razão mitigará, gradualmente, a acrimônia das querelas religiosas em toda a Europa, até agora o espírito de moderação tem mostrado progressos demasiado lentos para poder merecer inteira confiança. Assim, no seu todo, as vantagens da entronização da família Stuart, a qual permite evitar um título contestável, parecem ser equiparáveis às da entronização da família Hanover, que nos permite evitar as reivindicações da prerrogativa; mas de outro lado as desvantagens provenientes de colocar no trono um católico romano são maiores do que as que, na outra solução, derivam da outorga da coroa a um príncipe estrangeiro. Qual o partido que um patriota imparcial deveria tomar, no reinado de Guilherme e Ana, entre estas concepções opostas, é coisa que alguns poderão, talvez, considerar difícil de determinar. Mas a entronização da casa de Hanover foi efetivamente realizada. Os príncipes dessa família, sem intrigas nem cabalas, sem qualquer solicitação de sua parte, foram escolhidos para subir ao trono, por decisão unânime de todo o corpo legislativo. Desde a subida ao trono que têm dado mostras, em todos os seus atos, da maior moderação, equidade e respeito para com as leis e a Constituição. Quem nos tem governado são nossos ministros, nossos parlamentares, somos nós mesmos, e, se acaso algum mal nos sucedeu, só da sorte ou de nós próprios nos podemos queixar. Em que censuras não incorreríamos entre as nações se, enfastiados de uma instituição tão deliberadamente feita, e cujas condições tão religiosamente têm sido respeitadas, voltássemos a lançar tudo na maior confusão, e, com nossa inconstância e temperamento rebelde, nos mostrássemos totalmente indignos de qualquer estado que não a mais absoluta escravidão e sujeição? O maior inconveniente de um título contestável é acarretar o perigo de revoltas e guerras civis. Qual o homem sensato que, para evitar este inconveniente, se lançaria diretamente numa guerra civil e numa revolta? Isto para não referir que uma posse tão longa, garantida por tantas leis, deve ter já criado, perante a opinião da maior parte da nação, um título para a casa de Hanover, independentemente de sua posse atual, e portanto agora não iríamos mais, mesmo através de uma revolução, evitar um título contestável. Nenhuma revolução feita por forças nacionais será jamais capaz, sem que haja qualquer outra grande necessidade, de abolir nossas dívidas, nas quais estão implicados os interesses de tantas pessoas. E uma revolução feita por forças estrangeiras é uma conquista, uma calamidade com a qual nos ameaça o precário equilíbrio do poder, e que é provável nossas dissensões civis, mais do que quaisquer outras circunstâncias, venham a fazer-nos sofrer. QUE A POLÍTICA PODE SER TRANSFORMADA EM UMA CIENCIA Diversos autores se perguntam se existe alguma diferença especial entre as diversas formas de governo, e se não será verdade que qualquer dessas formas se pode tornar boa ou má, conforme seja bem ou mal administrada. Se se chegasse à conclusão de que todos os governos se equivalem, e que a única diferença reside no caráter e na conduta dos governantes, teria chegado o fim da maior parte das controvérsias políticas, e deveria considerar-se simples fanatismo e loucura todo e qualquer zelo por uma determinada Constituição, em detrimento de outra. Todavia, e apesar de partidário da moderação, não posso deixar de condenar essa opinião, e ser-me-ia doloroso pensar ser impossível, nas coisas humanas, maior estabilidade que a que lhes vem do temperamento e caráter ocasional de determinados homens. Os que afirmam que a excelência de qualquer governo depende da excelência da administração podem, é certo, citar numerosos exemplos históricos concretos em que o mesmo governo, mudando de mãos, passou repentinamente do pior para o melhor extremo. Compare-se o governo francês sob Henrique III e sob Henrique IV. A desgraçada época do primeiro se caracterizou pela opressão, frivolidade e velhacaria dos governantes, e pelo espírito de facção, sedição, traição, rebeldia e deslealdade dos súditos. Mas, a partir do momento em que o heroico e patriótico príncipe que lhe sucedeu se encontrou firmemente instalado no trono, tanto o governo como o povo, tudo, enfim, pareceu modificar-se inteiramente: e isso devido às diferenças de temperamento e conduta daqueles dois soberanos. Poderia apresentar-se um número quase infinito de exemplos deste gênero, tirados da história antiga ou da moderna, da estrangeira ou da nacional. Mas será talvez conveniente estabelecer aqui uma distinção. Todos os governos absolutos inevitavelmente dependem muito da administração, o que constitui um dos grandes inconvenientes de que sofre essa forma de governo. Mas um governo republicano e livre seria um evidente absurdo, se acaso os controles e restrições especificamente previstos na Constituição não tivessem na realidade influência alguma, e não fizessem que todos, mesmos os maus, tivessem interesse em agir em favor do bem público. Tal é a intenção dessas formas de governo, e tais são realmente suas consequências quando sabiamente organizadas; mas, por outro lado, elas se tornam fonte de toda espécie de desordens e dos mais nefandos crimes, quando em seu plano e instituição originais falta habilidade ou honestidade. É tão grande a força das leis e das formas específicas de governo, e tão pouco dependem elas do caráter e temperamento dos homens, que se podem às vezes delas deduzir consequências quase tão gerais e tão certas como as que são possíveis nas ciências matemáticas. A Constituição da república romana atribuía ao povo todo o Poder Legislativo, sem conceder o direito de veto nem à nobreza nem aos cônsules. O povo detinha este poder ilimitado através de um corpo coletivo, e não representativo. Daí resultaram as seguintes consequências: quando, devido à prosperidade e às conquistas, o povo se tornou muito numeroso e se espalhou até grande distância da capital, as tribos da cidade passaram a fornecer a quase totalidade dos votos, embora fossem as menos numerosas; seus membros passaram, portanto, a ser adulados por todos aqueles que almejavam a popularidade; viviam ociosamente, sustentados pela distribuição geral de trigo, e por subornos particulares que recebiam de quase todos os candidatos; e assim se foram tornando cada vez mais devassos, e o Campo de Marte era cenário constante de tumultos e revoltas. Entre esses cidadãos aviltados foram introduzidos escravos armados, e assim o governo caiu na anarquia, e o poder despótico dos Césares se tornou a maior felicidade a que os romanos podiam aspirar. Tais são os resultados da democracia sem um órgão representativo. A nobreza de um país pode ser detentora de todo ou de apenas uma parte do Poder Legislativo, de duas maneiras diferentes: ou cada nobre participa do poder como parte do órgão inteiro, ou é este que possui o poder enquanto composto de partes, cada uma das quais tem poder e autoridade distintos. A aristocracia veneziana é exemplo do primeiro tipo de governo, e a polonesa do segundo. No governo veneziano é o conjunto da nobreza que detém todo o poder, e nenhum nobre possui qualquer autoridade que lhe não venha do todo. No governo polonês cada um dos nobres, por intermédio de seus feudos, tem uma autoridade hereditária distinta sobre seus vassalos, e o órgão inteiro não possui qualquer poder que não receba do concurso de suas partes. As diferenças de funcionamento e de tendências destas duas formas de governo podem ser explicadas mesmo a priori. É preferível uma nobreza como a veneziana a outra como a polonesa, independentemente das maiores diferenças de inclinações e educação que possa haver entre os homens. Uma nobreza que possua em comum seu poder será capaz de manter a paz e a ordem, tanto em seu próprio seio como entre seus súditos, e a nenhum de seus membros será possível, mesmo por um momento, possuir autoridade suficiente para controlar as leis. Os nobres preservarão sua autoridade sobre o povo, mas sem qualquer opressiva tirania nem violações da propriedade privada, pois um governo assim tirânico não serve aos interesses de toda a nobreza, embora possa convir a alguns de seus membros. Haverá uma distinção hierárquica entre a nobreza e o povo, mas será essa a única distinção existente no Estado. O conjunto da nobreza constituirá um corpo, e o conjunto do povo constituirá outro, sem qualquer dessas contendas e animosidades particulares que em toda parte espalham a ruína e a desolação. Fácil se torna constatar as desvantagens de uma nobreza como a da Polônia em qualquer destes aspectos. É possível constituir um governo livre no qual uma única pessoa, quer se chame doge, príncipe ou rei, possua uma ampla parcela do poder, estabelecendo um correto equilíbrio com as outras partes do governo. Esse primeiro magistrado pode ser eletivo ou hereditário; e, embora a uma visão superficial a primeira instituição possa parecer a mais vantajosa, um exame mais profundo descobrirá nela maiores inconvenientes do que na última, inconvenientes esses que assentam em causas e princípios eternos e imutáveis. Em semelhante governo o preenchimento do trono é problema de interesse demasiado grande e geral para deixar de dividir todo o povo em facções, havendo lugar para recear quase com certeza uma guerra civil, o maior dos males, de cada vez que ele ficar vago. O príncipe eleito pode ser estrangeiro ou natural do país; o primeiro não conhecerá bem o povo que vai governar, não terá confiança em seus súditos, nem estes nele, dará toda a sua confiança a estrangeiros, que terão a única preocupação de enriquecer o mais depressa possível, enquanto o favor e a autoridade de seu senhor puderem sustentá-los. Um natural do país levará para o trono todas suas animosidades e amizades pessoais, e sua ascensão não poderá deixar de despertar sentimentos de inveja naqueles que anteriormente o consideravam seu igual. Para não referir o fato de que uma coroa é recompensa demasiado grande para ser concedida apenas ao mérito, e levará sempre os candidatos a usar da força, do dinheiro ou da intriga para conquistar os votos dos eleitores; de modo que tal eleição não tornará mais provável que o príncipe possua méritos excepcionais do que quando a nação deixa que seja apenas o nascimento a determinar quem será o soberano. Pode portanto afirmar-se, como axioma universal em política, que um príncipe hereditário, uma nobreza sem vassalos e um povo que escolhe seus representantes formam a melhor monarquia, aristocracia e democracia. Contudo, para provar mais decisivamente que é possível em política formular verdades gerais, que não variam com o temperamento ou a educação tanto dos súditos como do soberano, talvez não seja inoportuno apontar aqui alguns outros princípios desta ciência que possam merecer essa designação. Facilmente poderá verificar-se que os governos livres, embora geralmente sempre tenham sido os mais felizes para aqueles que gozam sua liberdade, são contudo os mais ruinosos e tirânicos para suas províncias. E creio poder-se considerar esta observação como uma máxima do gênero a que aqui nos estamos referindo. Quando um monarca amplia seus domínios por meio da conquista, depressa aprende a considerar em pé de igualdade seus antigos e seus novos súditos, pois na realidade todos são para ele o mesmo, com exceção dos poucos amigos e favoritos que conhece pessoalmente. Não faz, portanto, distinção alguma entre eles em suas leis gerais, ao mesmo tempo que toma o cuidado de evitar quaisquer atos particulares de opressão, contra uns como contra os outros. Mas um Estado livre faz necessariamente uma grande distinção, e assim deverá acontecer até que os homens aprendam a amar o próximo como a si mesmos. Num tal governo todos os conquistadores são legisladores, e nunca deixarão, mediante impostos e restrições ao comércio, de tudo planejar de maneira a tirar de suas conquistas certas vantagens particulares, além das públicas. Em uma república os governadores das províncias têm também maior oportunidade para se apropriar dos despojos, por meio da intriga e do suborno; e seus concidadãos, vendo seu Estado enriquecido com os despojos das províncias submetidas, terão maior tendência para tolerar tais abusos. Sem contar com o fato de, num Estado livre, ser necessário tomar a precaução de mudar frequentemente os governadores, o que obriga esses tiranos temporários a tomar-se mais diligentes e vorazes, para conseguir acumular suficientes riquezas antes de ceder o lugar a seus sucessores. Como os romanos tiranizaram o mundo, no tempo da república! É certo que tinham leis para impedir a tirania dos magistrados provinciais; mas diz nos Cícero que a melhor maneira de servir os interesses das províncias seria a revogação dessas leis. Porque nesse caso, diz ele, nossos magistrados, gozando de total impunidade, pilhariam apenas o bastante para satisfazer sua própria ganância, ao passo que atualmente precisam também satisfazer a de seus juízes, assim como a de todos os grandes homens de Roma, de cuja proteção necessitam. Quem é capaz de ler sem horror e espanto o relato das crueldades e tiranias de Verres? E quem não se enche de indignação ao saber que, depois de Cícero ter fulminado esse perverso criminoso com toda a força de sua eloquência, chegando a conseguir que o condenassem com o máximo rigor permitido pela lei, apesar disso aquele cruel tirano viveu tranquilamente até idade avançada, no conforto e na opulência, sendo trinta anos depois proscrito por Marco Antônio, devido a sua exorbitante riqueza, juntamente com o próprio Cícero e todos os homens mais virtuosos de Roma? Após a dissolução da república, o jugo romano sobre as províncias se tomou mais leve, segundo nos informa Tácitos e deve assinalar-se que muitos dos piores imperadores, como por exemplo Dorniciano tiveram o cuidado de evitar que as províncias sofressem qualquer opressão. No tempo de Tibério a Gália era considerada mais rica do que a própria Itália, e não tenho conhecimento de que, durante toda a época da monarquia romana, qualquer das províncias do Império se tenha tornado menos rica ou menos populosa, embora sem dúvida a coragem e a disciplina militar tenham sofrido uma grande decadência. A opressão e tirania inf1igidas pelos cartagineses aos Estados africanos que submeteram chegou ao ponto de, conforme nos ensina Políbio, não lhes bastando extorquir metade de todo o produto da terra, o que por si só já constituía uma renda elevadíssima, ainda os sobrecarregaram com muitos outros impostos. Se passarmos dos tempos antigos para os modernos, continuaremos podendo afirmar o mesmo. As províncias das monarquias absolutas sempre recebem melhor tratamento que as dos Estados livres. Basta comparar o pays conquis da França com a Irlanda para nos convencermos desta verdade, embora este último reino, sendo em grande parte habitado por ingleses, possua tantos direitos e privilégios que poderia naturalmente aspirar a um tratamento melhor que o concedido a uma província conquistada. A Córsega é também um exemplo evidente do mesmo fato. Há em Maquiavel uma observação, a respeito das conquistas de Alexandre, o Grande, que me parece poder ser considerada uma daquelas verdades políticas eternas que nem o tempo nem quaisquer acidentes podem alterar. Pode parecer estranho, diz aquele político, que conquistas tão repentinas como as de Alexandre possam ter sido tão tranquilamente conservadas por seus sucessores, e que os persas, durante todas as confusões e guerras civis que se verificaram entre os gregos, nunca tenham feito o menor esforço para recuperar a independência. Se quisermos descobrir as causas deste fato singular, podemos considerar duas maneiras diferentes pelas quais um monarca pode governar seus súditos: ou segue os princípios dos monarcas orientais, levando sua autoridade até ao ponto de só permitir que haja entre seus súditos as distinções de posição que ele mesmo determinar, assim como quaisquer privilégios de nascimento, honrarias ou posses hereditárias, em uma palavra, nenhum crédito entre o povo, a não ser o que provier de sua delegação; ou o monarca exerce seu poder de maneira mais branda, como outros príncipes europeus, autorizando outras fontes de honra além de seu sorriso e favor: nascimento, títulos, posses, coragem, integridade, saber, ou grandes e afortunadas proezas. No primeiro tipo de governo, se o país for conquistado, jamais será possível sacudir esse jugo, pois não há entre o povo quem possua o crédito e autoridade pessoais necessários para dar início a tal empresa; ao passo que no segundo bastará o menor infortúnio ou discórdia entre os vencedores para encorajar os vencidos a pegar em armas, pois estes possuem chefes preparados para incitá-los e comandá-los em qualquer empreendimento. É este o argumento de Maquiavel, que parece sólido e convincente, embora fosse preferível não ter ele misturado o falso ao verdadeiro, afirmando que as monarquias governadas segundo a política oriental são as mais difíceis de conquistar, apesar de serem as mais fáceis de conservar depois de conquistadas, devido a ser impossível nelas haver qualquer súdito poderoso cujo descontentamento e revolta possam facilitar a ação de um inimigo. Porque, além de um governo assim tirânico debilitar a coragem dos homens, tomando-os indiferentes à sorte de seu soberano, além disso, a experiência nos ensina que mesmo a autoridade temporária e por delegação que os generais e magistrados detêm, que em tais governos é tão absoluta em sua esfera como a do próprio príncipe, é capaz de produzir, entre bárbaros habituados a uma obediência cega, as mais perigosas e fatais revoluções. Assim se vê que sob todos os aspectos é o governo moderado que deve ser preferido, pois é ele que proporciona maior segurança, tanto ao soberano como aos súditos. Os legisladores, portanto, não devem confiar inteiramente ao acaso o futuro governo de um Estado, e sim elaborar um sistema de leis para regular a administração das questões públicas até a mais remota posteridade. Os efeitos hão de sempre corresponder às causas, e em qualquer nação uma sábia legislação é a herança mais valiosa que pode ser deixada às épocas futuras. No mais ínfimo tribunal ou repartição pública se verifica que as normas e os métodos estabelecidos para regulamentar as diversas atividades constituem uma importante barreira contra a natural depravação da humanidade. Por que não poderia dar-se o mesmo com as questões públicas? Poderemos atribuir a estabilidade e a sabedoria do governo veneziano, ao longo de tantos anos, a algo mais que à forma de governo? E não é coisa fácil apontar quais os defeitos da Constituição original que produziram os tumultuosos governos de Atenas e Roma, e finalmente culminaram na ruína dessas duas célebres repúblicas? E esta questão depende tão pouco do caráter e da educação dos indivíduos, que é possível certa parte da mesma república ser sabiamente governada e outra sê-lo deficientemente, pelos mesmos homens, devido simplesmente à diferença das normas e instituições que regulam cada uma dessas partes. Dizem-nos os historiadores que foi efetivamente esse o caso de Gênova. Enquanto o Estado estava permanentemente cheio de revoltas, tumultos e desordens, o banco de São Jorge, que se havia tornado uma parte importante do povo, foi durante muitos anos governado com a maior integridade e sabedoria. As épocas de maior espírito público nem sempre são as que mais se distinguem pela virtude pessoal. É possível que boas leis introduzam a ordem e a moderação no governo, mesmo que os usos e costumes pouca humanidade ou justiça hajam incutido no caráter dos homens. O período mais ilustre da história romana, do ponto de vista político, foi do início da primeira até ao fim da última Guerra Púnica, porque o devido equilíbrio entre a nobreza e o povo era mantido pelos debates dos tribunos, e não havia ainda sido desfeito pela extensão das conquistas. Nessa mesma época, contudo, o horrendo costume do envenenamento era tão vulgar que, no decurso de parte de uma estação, um pretor condenou à morte por este crime mais de três mil pessoas em uma região da Itália, e além disso continuava recebendo muitas outras informações da mesma natureza. Há um exemplo semelhante, ou antes, ainda pior, que data dos tempos antigos da república; a tal ponto esse povo, cuja história tanto admiramos, era depravado em sua vida particular. Estou certo de que eram mais virtuosos no tempo dos triunviratos, embora despedaçassem sua própria pátria, espalhando a guerra e a desolação por toda a face da terra, apenas por causa da escolha de tiranos. Aqui temos pois incentivo bastante para manter em todos os Estados livres, com o maior zelo, as normas e instituições graças às quais se garante a liberdade, se satisfaz o bem público e se restringe e castiga a avareza ou a ambição de certos homens. Nada é mais honroso para a natureza humana do que vê-la suscetível de tão nobre paixão, assim como nada pode indicar mais claramente a vileza do coração de um homem do que vê-lo dela destituído. Todo homem que ama apenas a si mesmo, sem consideração pela amizade ou pelo merecimento, merece a mais severa reprovação; mas um homem que apenas é suscetível de amizade, sem espírito público ou consideração pela comunidade, é deficiente na parte mais essencial da virtude. Mas na época atual não é necessário insistir mais longamente neste assunto. Há de ambos os lados bastante fanáticos, que inflamam as paixões de seus partidários e, sob o pretexto do bem público, defendem os interesses e os objetivos da facção a que pertencem. Por mim, serei sempre mais favorável à moderação do que ao zelo, embora talvez a maneira mais segura de fazer surgir a moderação em qualquer partido seja aumentar nosso zelo pelo público. Procuremos portanto, se possível, extrair da precedente doutrina uma lição de moderação em relação aos partidos em que atualmente nosso país está dividido; enquanto ao mesmo tempo não permitimos que essa moderação enfraqueça a diligência e a paixão que cada indivíduo tem obrigação de colocar a serviço do bem de seu país. Aqueles que atacam ou defendem um ministro, num governo que, como o nosso, permite a mais ampla liberdade, levam sempre o caso ao extremo, exagerando os méritos ou os defeitos de sua administração. Seus inimigos nunca deixam de lhe atribuir as maiores enormidades, em política interna ou exterior, e não há vileza ou crime de que, segundo eles, o ministro não seja capaz. Guerras desnecessárias, tratados escandalosos, esbanjamento do erário público, impostos excessivos, todo o gênero de erros de administração lhe atribuem. Para agravar a acusação, diz-se que sua perniciosa conduta continuará a exercer sua influência maligna mesmo no futuro, solapando a melhor Constituição do mundo e desorganizando o sábio sistema de leis, instituições e costumes de acordo com o qual durante tantos séculos nossos antepassados tão acertadamente foram governados. Além de em si mesmo ser um mau ministro, conseguiu também destruir toda a segurança estabeleci da contra os possíveis maus ministros do futuro. Por outro lado, os partidários do ministro elevam seu panegírico a tão grande altura como as acusações que os outros lhe fazem, glorificando sua conduta sábia, firme e moderada em todos os aspectos da administração. Defendidos no estrangeiro a honra e os interesses da nação, mantido no país o crédito público, restringidas as perseguições, dominadas as facções: o mérito de todos esses benefícios é atribuído exclusivamente ao ministro. Ao mesmo tempo, todos os seus méritos culminam no mais religioso respeito pela melhor Constituição do mundo, a qual sempre preservou em todas as suas partes e transmitiu intata, para garantir a felicidade e a segurança da posteridade mais remota. Como os defensores de ambos os partidos aceitam esta acusação ou este panegírico, não é de admirar que se verifique em ambos os lados uma extraordinária efervescência e que a nação se encha de violentas animosidades. Mas gostaria muito de persuadir esses fanáticos de que há uma flagrante contradição tanto na acusação como no panegírico, e que, se não fosse essa contradição, seria impossível que tanto uma como a outra chegassem a tais extremos. Se nossa Constituição fosse efetivamente essa nobre invenção, orgulho da Grã-Bretanha, inveja de nossos vizinhos, erguida pelo labor de tantos séculos, melhorada à custa de tantos milhões e cimentada por tão grande profusão de sangue se, digo eu, nossa Constituição de qualquer modo merecesse esses louvores, nesse caso ela jamais teria permitido que um ministro fraco e perverso governasse triunfalmente durante uma vintena de anos, quando lhe fizeram oposição os maiores gênios da nação, os quais gozaram da mais ampla liberdade de palavra e de imprensa, no Parlamento e em seus frequentes apelos ao povo. Porque, se o ministro é tão fraco e perverso como tão insistentemente se proclama, então a Constituição deve estar errada em seus princípios originais, e não se pode com coerência acusar o ministro de solapar a melhor forma de governo do mundo. Uma Constituição só pode ser considerada boa na medida em que fornece um remédio contra a má administração; e se a inglesa, no máximo de seu vigor e depois de melhorada por dois acontecimentos tão notáveis como a Revolução e a Coroação, devido aos quais nossa antiga família real a ela foi sacrificada; se, digo eu, todas essas vantagens não permitem a nossa Constituição fornecer tal remédio, nesse caso devemos de certo modo ficar gratos ao ministro que a solapa, pois assim nos fornece uma oportunidade para erigir outra melhor no lugar dela. Empregaria os mesmos argumentos para atenuar o zelo daqueles que defendem o ministro. Se nossa Constituição é assim tão excelente, é impossível que uma mudança de ministro seja coisa tão terrível, pois é essencial que essa Constituição, seja qual for o ministro, ao mesmo tempo evite que ela própria seja violada e impeça que haja quaisquer excessos na administração. Se nossa Constituição é muito má, então não há motivo para tal desconfiança e apreensão com a possibilidade de uma mudança, e neste caso não se justifica qualquer ansiedade, tal como a um homem que tenha casado com uma meretriz não adianta vigiá-la para impedir sua infidelidade. Num tal governo os negócios públicos terão necessariamente que se desorganizar, sejam quais forem as mãos que os conduzam, e nesse caso a paciência e a humildade dos filósofos é muito mais necessária que o zelo dos patriotas. A virtude e as boas intenções de Catão e de Bruto merecem os maiores louvores, mas para que serviu seu zelo? Apenas para apressar a fatal queda do governo romano, tornando mais violentas e dolorosas as convulsões e agonias de sua morte. Não pretendo com isto dizer que os negócios públicos não mereçam cuidados nem atenções. Se os homens fossem moderados e consistentes seria possível aceitar suas queixas, ou pelo menos examiná-las. O Partido do Campo poderia afirmar que nossa Constituição, apesar de excelente, permite até certo ponto que haja uma má administração, de tal modo que, no caso de haver um mau ministro, é lícito fazer-lhe oposição com um grau adequado de zelo. Por outro lado, o Partido da Corte pode ter o direito de defender a administração do ministro, caso este seja bom, e também com algum zelo. Gostaria apenas de persuadir os homens a não discutirem como se estivessem lutando pro aris et focis, e a não transformarem uma boa em má Constituição, com a violência de seu facciosismo. Não referi aqui nenhum dos aspectos pessoais da atual controvérsia. Com a melhor Constituição civil, em que todos seriam constrangidos pelas mais rígidas leis, seria fácil descortinar as boas ou más intenções de um ministro, e decidir se seu caráter pessoal merece o amor ou o ódio. Mas tais problemas pouca importância têm para a nação, e submetem aqueles que lhes dedicam sua pena à justa suspeita de malevolência ou lisonja. DA LIBERDADE CIVIL Aqueles que, livres da fúria e dos preconceitos partidários, dedicam sua pena às questões políticas cultivam uma ciência que contribui, mais do que qualquer outra, para a utilidade pública, e até mesmo para a satisfação pessoal dos que se dedicam a seu estudo. Creio no entanto haver razões para supor que o mundo é demasiado jovem para que se possa formular em política um grande número de verdades gerais, capazes de permanecer verdadeiras até à mais remota posteridade. Possuímos ainda menos de três mil anos de existência; assim, não apenas a arte de pensar é ainda imperfeita nesta ciência, tal como em todas as outras, mas carecemos até de suficientes materiais sobre os quais possamos pensar. Não se sabe perfeitamente até que extremos, de virtude ou vício, a natureza humana é capaz de chegar, nem o que poderá esperar-se da humanidade, caso haja uma grande revolução em sua educação, costumes ou princípios. Maquiavel era sem dúvida um grande gênio, mas, tendo-se limitado a estudar os violentos e tirânicos governos dos tempos antigos, ou os pequenos e turbulentos principados da Itália, seus argumentos se revelaram extremamente deficientes, sobretudo os que se referem ao governo monárquico; e é difícil encontrar em seu Príncipe alguma máxima que a experiência posterior não tenha vindo refutar completamente. Um príncipe fraco, diz ele, é incapaz de receber bons conselhos, pois, se os pedir a vários homens, não será depois capaz de escolher entre os diferentes conselhos recebidos. Se aceitar um deles, é possível que esse ministro seja competente, mas não continuará ministro por muito tempo: virá sem dúvida a depor seu senhor, colocando-se a si próprio e a sua família no trono. Refiro apenas este, de entre os muitos erros desse político, erros que em larga medida se devem ao fato de ele ter vivido numa época demasiado antiga para que já se pudesse ser bom juiz da verdade política. Atualmente quase todos os príncipes da Europa são governados por seus ministros, e isto vem sucedendo desde há perto de dois séculos: no entanto, nem uma só vez tal acontecimento ocorreu, nem é possível que ocorra. Séjano pôde conceber o projeto de destronar os Césares: mas Fleury, por mais vicioso que fosse, seria incapaz, desde que se conservasse em seu perfeito juízo, de alimentar a menor esperança de depor os Bourbons. Até ao século passado, o comércio não era considerado uma questão de Estado, e é raro encontrar qualquer autor político antigo que lhe tenha feito referência. Até os autores italianos observaram a esse respeito o mais profundo silêncio, apesar de atualmente o comércio atrair a maior atenção tanto dos ministros de Estado como dos pensadores. Parecem ter sido a grandeza, a opulência e as proezas militares das duas potências marítimas que fizeram ver à humanidade a importância de que um amplo comércio pode revestir-se. Pretendendo, portanto, proceder neste ensaio li uma comparação exaustiva entre a liberdade civil e o governo absoluto, mostrando as grandes vantagens que a primeira oferece em relação ao segundo, comecei a alimentar a suspeita de que nenhum homem desta época se acha suficientemente habilitado para tal empreendimento, e que é altamente provável que tudo aquilo que qualquer um possa adiantar sobre o assunto seja refutado pela experiência subsequente e rejeitado pela posteridade. As coisas humanas têm sofrido revoluções tão importantes, e têm-se dado tantos acontecimentos que contradizem as predições dos antigos, que basta isto para permitir esperar que se deem mais mudanças ainda. Foi assinalado pelos antigos que todas as artes e ciências surgiram em nações livres, e que os persas e os egípcios, malgrado a abastança, a opulência e o luxo de que desfrutavam, fracos esforços fizeram no sentido de apreciar os prazeres mais requintados, prazeres estes que os gregos, mesmo em meio a guerras permanentes, vivendo pobremente e com a maior simplicidade de costumes, levaram a tão grande perfeição. Assinalaram também que, a partir do momento em que os gregos se viram privados da liberdade, e apesar de verem suas riquezas imensamente aumentadas, graças às conquistas de Alexandre, a partir desse momento as artes entraram em declínio, e desde então não mais foram capazes de progredir naquela região. O saber se transferiu para Roma, que nessa época era a única nação livre do universo, e, depois de encontrar solo tão propício, realizou progressos prodigiosos durante mais de um século, até ao momento em que a decadência da liberdade acarretou a decadência das letras, espalhando no mundo inteiro a mais completa barbárie. Longinus pensou que bastavam essas duas experiências, cada uma das quais foi dupla em seu gênero, mostrando tanto a derrocada do saber nos governos absolutos quanto seu progresso nos governos populares, para justificar sua afirmação de que as artes e as ciências só num governo livre podem florescer. E nesta opinião foi seguido por diversos autores eminentes de nosso país, os quais ou se limitaram a apreciar fatos antigos, ou patentearam uma excessiva parcialidade em favor da forma de governo estabelecida entre nós. Mas o que diriam esses autores dos exemplos da Roma moderna e de Florença? Das quais a primeira levou à maior perfeição todas as belas-artes, a escultura, a pintura e a música, assim como a poesia, embora gemesse sob a tirania, e uma tirania de sacerdotes, ao passo que a segunda realizou seus principais progressos nas artes e nas ciências depois de começar a perder sua liberdade, devido a usurpação da família dos Médicis. Ariosto, Tasso e Galileu, e igualmente Rafael e Miguel Ângelo, não nasceram em repúblicas. E, embora a escola lombarda tenha sido famosa, assim como a romana, por outro lado os venezianos foram os menos ilustres, e parecem possuir um gênio para as artes e ciências um tanto inferior ao dos outros italianos. Rubens fundou sua escola em Antuérpia, e não em Amsterdam. Na Alemanha, o centro de cultura é Dresden, e não Hamburgo. Mas o mais eminente exemplo do florescimento do saber sob os governos absolutos é o da França, que raras vezes tem gozado de liberdade, e contudo levou as artes e as ciências a uma perfeição que nenhuma outra nação ultrapassou. Os ingleses são, talvez, maiores filósofos; os italianos, melhores pintores e músicos; os romanos foram maiores oradores. Mas os franceses são o único povo, com exceção dos gregos, que teve ao mesmo tempo filósofos, poetas, oradores, historiadores, pintores, arquitetos, escultores e músicos. Quanto ao teatro, foram ainda melhores do que os gregos, os quais foram melhores do que os ingleses. E na vida cotidiana aperfeiçoaram em ampla medida aquela arte que é a mais útil e agradável de todas, l’art de vivre, a arte da sociedade e da conversação. Se considerarmos o estado das ciências e das belas-artes em nosso próprio país, veremos que a observação de Horácio em relação aos romanos pode em grande medida ser aplicada aos ingleses: Sed in longum lamen aevum Mansuerunt, hodieque manenl vestigia ruris. (Mas por longo tempo durou e ainda perdura a marca do campo.) A elegância e a propriedade do estilo têm sido extremamente desprezadas entre nós. Não temos dicionário algum de nossa língua, e mal possuímos uma gramática aceitável. A primeira prosa culta que tivemos foi escrita por um autor que ainda é vivo. Quanto a Sprat, Locke e mesmo Temple, todos eles conheciam demasiado mal as regras da arte para que se possa considerá-los prosadores elegantes. A prosa de Bacon, Harrington e Milton é extremamente afetada e pedante, embora o conteúdo de suas obras seja excelente. Os homens deste país têm-se ocupado de tal modo com as grandes discussões de Religião, Política e Filosofia, que não têm qualquer inclinação pelas observações aparentemente minuciosas da gramática e da crítica. E, embora este estilo de pensamento deva ter melhorado consideravelmente nossa inteligência e nossa capacidade de argumentação, deve confessar-se que, mesmo nas ciências acima mencionadas, não possuímos qualquer obra importante que possamos legar à posteridade. O máximo de que nos podemos vangloriar são algumas tentativas no sentido de uma filosofia mais acertada, as quais sem dúvida constituem uma valiosa promessa, mas que até agora não atingiram qualquer grau de perfeição. Passou a ser opinião estabeleci da que o comércio só sob um governo livre pode florescer, e esta opinião parece assentar numa experiência mais longa e mais ampla do que a anterior, relativa às artes e às ciências. Se seguirmos a evolução do comércio, através de Tiro, Atenas, Siracusa, Cartago, Veneza, Florença, Gênova, Antuérpia, a Holanda, a Inglaterra, etc., verificaremos em todos os casos que ele se encontra nos governos livres. As três maiores cidades da Europa são Londres, Amsterdam e Hamburgo; todas elas cidades livres, e cidades protestantes, o que significa que desfrutam de uma dupla liberdade. Não obstante, é forçoso assinalar que a grande preocupação ultimamente surgida, em relação ao comércio da França, parece demonstrar que esta máxima não é mais certa e infalível do que a anterior, e que é possível aos súditos de um príncipe absoluto se tomarem nossos rivais no comércio, como já o eram no saber. Ousasse eu dar minha opinião quanto a um problema tão incerto, afirmaria que, não obstante os esforços dos franceses, há algo de inerente à própria natureza do governo absoluto e dele inseparável que é prejudicial ao comércio; embora a razão na qual assenta esta opinião seja um tanto diferente daquela em que geralmente se insiste. A propriedade privada me parece estar quase tão segura numa monarquia civilizada europeia como numa república; nem tampouco em tal governo a violência do soberano deve fazer recear mais perigos do que os que geralmente provêm das trovoadas e dos terremotos, ou de qualquer dos mais invulgares e extraordinários acidentes. A cobiça, aguilhão da indústria, é uma paixão tão obstinada, que abre caminho através de tantos perigos e dificuldades reais, que não seria provável ela se deixar assustar por um perigo imaginário, e tão pequeno que mal é possível calculá-lo. Portanto, em minha opinião, o comércio poderá decair sob os governos absolutos, mas não devido a ser menos seguro, e sim devido a ser menos honroso. A monarquia não pode subsistir sem uma subordinação de classes. O nascimento, os títulos e a posição devem ser honrados acima da indústria e da riqueza. E, enquanto for esta a opinião dominante, todos os mercadores importantes estarão sujeitos à tentação de abandonar seu comércio, a fim de adquirir qualquer um desses empregos que trazem privilégios e honrarias. Já que estou tratando desta questão das alterações que o tempo produziu ou pode produzir na política, devo assinalar que todos os tipos de governo, livre ou absoluto, parecem ter sofrido nos tempos modernos uma grande mudança para melhor, no que diz respeito à administração das questões exteriores e internas. À balança do poder é um segredo da política, que só na época atual passou a ser plenamente conhecido; e devo acrescentar que a polícia interna dos Estados foi também objeto de grandes aperfeiçoamentos durante este último século. Informa-nos Salústio que o exército de Catilina aumentou muito com a incorporação dos salteadores das proximidades de Roma, embora, creio eu, todos os homens dessa profissão que atualmente se encontram dispersos pela Europa não seriam em número suficiente para formar um regimento. Nas alegações de Cícero em favor de Milo encontro, entre outros argumentos usados para provar que seu cliente não havia assassinado Clódio, o seguinte: que se Milo, diz ele, tivesse a intenção de matar Clódio, não o teria atacado à luz do dia, nem a tão grande distância da cidade; tê-lo-ia atacado à noite, próximo dos subúrbios, onde se poderia supor que ele tivesse sido morto por ladrões; a frequência de tais acidentes teria facilitado essa burla. Isto constitui uma prova surpreendente da frouxidão da polícia de Roma, e do número e força desses ladrões, pois nessa ocasião Clódio ia acompanhado por trinta escravos, que estavam completamente armados, e suficientemente habituados ao sangue e ao perigo, com os frequentes tumultos provocados por esse sedicioso tribuno. Mas, embora todos os tipos de governo tenham melhorado nos tempos modernos, mesmo assim o governo monárquico parece ter sido aquele que mais se aproximou da perfeição. Pode atualmente afirmar-se, sobre as monarquias civilizadas, aquilo que anteriormente se dizia apenas em louvor das repúblicas: que são um governo de Leis e não de Homens. Verifica-se que são capazes, e em medida surpreendente, de ordem, método e constância. Nelas a propriedade está em segurança, a indústria é estimulada, as artes florescem; e o príncipe vive em segurança no meio de seus súditos, como um pai no meio de seus filhos. Existem na Europa, e já existem há dois séculos, talvez cerca de duzentos príncipes absolutos, grandes ou pequenos: e, calculando que cada um deles reinou durante vinte anos, podemos supor que houve ao todo dois mil monarcas ou tiranos, como lhes teriam chamado os gregos. Todavia, em todos eles não houve um único, nem sequer Filipe II da Espanha, que tenha sido tão mau como Tibério, Calígula, Nero ou Domiciano, que foram quatro de entre os doze imperadores romanos. Deve contudo confessar-se que os governos monárquicos, apesar de se terem aproximado mais, em brandura e em estabilidade, dos governos populares, ainda lhes são inferiores. Nossa educação e nossos costumes modernos inculcam maior humanidade e moderação que os antigos; mas não conseguiram ainda eliminar inteiramente as desvantagens dessa fôrma de governo. Mas devo aqui pedir licença para formular uma conjetura que parece provável mas só pela posteridade poderá ser plenamente julgada. Inclino-me para pensar que há nos governos monárquicos uma fonte de melhoria, e nos governos populares uma fonte de degenerescência, que com o tempo levarão essas duas espécies de Constituição civil ainda mais perto da igualdade. Os maiores dos abusos que ocorrem na França, país que é o mais perfeito modelo de monarquia pura, não derivam de lá haver impostos em número e importância superior aos que se encontram nos países livres, mas sim do método dispendioso, desigual, arbitrário e complicado de cobrá-los, que em grande medida desencoraja a indústria dos pobres, sobretudo a dos camponeses e lavradores, e torna a agricultura um trabalho miserável e escravizante. Mas quem tendem esses abusos a favorecer? Se é a nobreza, podem ser considerados inerentes a essa forma de governo, pois a nobreza é o verdadeiro esteio da monarquia, e é natural que nessa Constituição seus interesses sejam mais respeitados do que os do povo. Mas na realidade é a nobreza que mais é prejudicada por essa opressão, pois ela arruína suas propriedades e empobrece seus rendeiros. Os únicos que são favorecidos são os financeiros, raça de homens odiada pela nobreza e por todo o reino. Se, portanto, surgisse um príncipe ou ministro suficientemente dotado de discernimento para ver qual o seu interesse e o da nação, e com suficiente força de vontade para romper com os costumes antigos, seria lícito esperar que esses abusos teriam fim; e em tal caso a diferença entre esse governo absoluto e nosso governo livre já não pareceria tão importante como atualmente. A fonte de degenerescência que se pode verificar nos governos livres consiste na prática de contrair dívidas e hipotecar as rendas públicas, o que pode com o tempo ter como resultado que os impostos se tornem intoleráveis, e que toda a propriedade do Estado caia nas mãos do povo. Conforme nos diz Xenofonte, os atenienses, embora governados por uma república, pagavam cerca de duzentos por cento pelas quantias em dinheiro que qualquer emergência os obrigasse a tomar emprestadas. Entre os modernos, foram os holandeses os primeiros a introduzir a prática de tomar emprestadas grandes somas a juro baixo, e por causa disso quase chegaram a arruinar-se. Os príncipes absolutos também têm contraído dívidas, mas, como qualquer príncipe absoluto pode abrir falência quando quiser, seu povo nunca pode ser oprimido por suas dívidas. Nos governos populares, sendo o credor público geralmente o povo, e principalmente os que ocupam os mais altos cargos, o Estado tem grande dificuldade em adotar esta solução que, apesar de por vezes ser necessária, é sempre cruel e bárbara. Parece portanto ser este um inconveniente que ameaça todos os governos livres, e sobretudo o nosso, no atual estado de coisas. E é este um forte motivo para nos levar a aumentar nossa parcimônia em relação aos dinheiros públicos; caso contrário seremos reduzidos, pela multiplicidade dos impostos ou, o que é pior, por nossa incapacidade pública e inabilidade para a defesa, a amaldiçoar nossa própria liberdade, e aspirar ao mesmo estado de servidão de todas as nações que nos rodeiam. DA LIBERDADE DE IMPRENSA Nada neste país é mais capaz de surpreender os estrangeiros do que a extrema liberdade que desfrutamos de comunicar ao público quanto nos aprouver, e de censurar abertamente qualquer medida que possa ser tomada pelo rei ou por seus ministros. Se o governo se decide pela guerra, afirma-se que, seja deliberadamente ou por ignorância, ele interpreta erradamente os interesses da nação, e que na atual situação a paz seria infinitamente preferível. Se a paixão dos ministros se inclina para a paz, nossos autores políticos só falam de guerra e devastação, e acusam de mesquinha e pusilânime a conduta pacífica do governo. Dado que esta liberdade não é permitida por nenhum outro governo, seja republicano ou monárquico (na Holanda e em Veneza mais do que na França ou na Espanha), é muito natural que surja a seguinte pergunta: Como é possível que só a Grã-Bretanha goze deste especial privilégio? A razão devido à qual as leis nos concedem tal liberdade parece derivar da forma mista de nosso governo, o qual não é inteiramente monárquico nem inteiramente republicano. Deve ser considerada como uma correta observação política, se não estou em erro, a de que os dois extremos do governo, a liberdade e a escravidão, geralmente quase se tocam; e que, à medida que nos afastamos dos extremos, misturando à liberdade um pouco de monarquia, o governo sempre se torna mais livre, assim como, por outro lado, misturando à monarquia um pouco de liberdade, o jugo sempre se torna mais pesado e intolerável. Num governo como o da França, que é absoluto, num país onde tanto as leis como os costumes e a religião contribuem para fazer que o povo se sinta plenamente satisfeito com sua condição, o monarca não pode alimentar qualquer desconfiança em relação a seus súditos, e portanto é capaz de lhes conceder grandes liberdades, tanto de palavra como de ação. Num governo completamente republicano como o da Holanda, onde nenhum magistrado é suficientemente eminente para suscitar a desconfiança do Estado, não é perigoso conferir aos magistrados amplos poderes discricionários; e, embora de tais poderes derivem muitas vantagens para a manutenção da paz e da ordem, eles limitam consideravelmente as ações dos homens, fazendo todos os cidadãos ter grande respeito pelo governo. Parece assim evidente que os dois extremos, a monarquia absoluta e a república, são muito semelhantes em alguns aspectos essenciais. Na primeira não há desconfiança do magistrado em relação ao povo, e na segunda não há desconfiança do povo em relação ao magistrado; em ambos os casos essa ausência de desconfiança dá origem a grande tranquilidade, causando uma espécie de liberdade nas monarquias e de poder arbitrário nas repúblicas. Para justificar a segunda parte da precedente observação, que em todo governo os meios estão muito afastados um do outro e que as misturas de monarquia e liberdade tornam o jugo ou mais leve ou mais pesado, devo citar um comentário de Tácito sobre os romanos do período imperial, de acordo com o qual estes eram incapazes de suportar tanto a escravidão total como a liberdade total: Nec totam servitutem, nec totam libertatem pati possunt. Um poeta famoso traduziu e aplicou aos ingleses este comentário, em sua vívida descrição da política e do governo da Rainha Elizabeth : Et fit aimer son joug à l’Anglais indompté, Qui ne peut ni servir, ni vivre en liberté. De acordo com estes comentários, devemos considerar o governo romano do período imperial como uma mistura de despotismo e liberdade, com maior preponderância do despotismo; e o governo inglês como uma mistura da mesma espécie, na qual predomina a liberdade. As consequências estão em conformidade com a observação anterior, e são o que seria de esperar dessas formas mistas de governo, que dão origem a um recíproco temor e desconfiança. Muitos dos imperadores romanos foram os mais terríveis tiranos que jamais desonraram a natureza humana, e é evidente que sua crueldade era provocada sobretudo por sua desconfiança e por verem que todos os grandes homens de Roma toleravam com impaciência o domínio de uma família que, apenas algum tempo antes, de modo algum era superior à sua. Na Inglaterra, por outro lado, dado que é a parte republicana do governo que predomina, embora com grande mistura de monarquia, ela é obrigada, para sua própria preservação, a manter uma vigilante desconfiança em relação aos magistrados, a eliminar todos os poderes discricionários e a garantir a vida e a fortuna de todos por meio de leis gerais e inflexíveis. Uma ação só pode ser considerada crime se a lei como tal claramente a definir; nenhum homem pode ser acusado de um crime sem ser apresentada aos juízes uma prova legal; e mesmo esses juízes precisam ser seus pares, e são obrigados, em seu próprio interesse, a manter um olhar vigilante sobre os abusos e violências dos ministros. A estas causas se deve o fato de haver na Grã-Bretanha tanta liberdade, e até talvez licenciosidade, como antigamente havia escravidão e tirania em Roma. Estes princípios explicam a grande liberdade da imprensa neste reino, mais do que qualquer outro governo permite. Compreende-se que ficaríamos sob a ameaça do poder arbitrário, caso não tivéssemos o cuidado de impedir seu progresso, e se não houvesse um método fácil de espalhar o alarma de uma ponta a outra do reino. O entusiasmo do povo precisa ser frequentemente instigado, a fim de refrear as ambições da corte; e o medo de que esse entusiasmo seja instigado precisa ser usado para evitar essas ambições. Nada contribui tanto para este fim como a liberdade de imprensa, graças à qual é possível usar todo o saber, inteligência e gênio da nação em favor da liberdade, e exortar todos a defendê-la. Portanto, enquanto a parte republicana de nosso governo puder conservar sua preponderância sobre a monárquica, ela terá naturalmente o cuidado de manter livre a imprensa, pois esta é importante para sua própria preservação. Deve todavia conceder-se que a ilimitada liberdade de imprensa, embora seja difícil, e talvez impossível, propor para ela um remédio adequado, é um dos males a que estão sujeitas essas formas mistas de governo. SE O GOVERNO BRITÂNICO TENDE MAIS PARA A MONARQUIA ABSOLUTA OU PARA A REPÚBLICA Um fato que dá origem a violentos preconceitos contra quase todas as ciências é o de nenhum homem prudente, por mais certo que esteja de seus princípios, se atrever a fazer profecias sobre qualquer acontecimento, ou a predizer as consequências remotas das coisas. O médico não se arrisca a pronunciar-se sobre o estado em que se encontrará seu paciente daí a uma quinzena ou um mês, e o político ainda menos se atreve a predizer, com vários anos de antecedência, a situação dos negócios públicos. Harrington se considerava tão certo de seu princípio geral, segundo o qual a balança do poder depende da propriedade, que se arriscou a declarar para sempre impossível o restabelecimento da monarquia na Inglaterra, mas pouco depois da publicação de seu livro ela foi restaurada, e sabemos que a partir de então ela sempre se manteve em sua situação anterior. Não obstante este infeliz exemplo, vou tentar o exame de um problema importante, a saber: se o governo britânico tende mais para a monarquia absoluta ou para a república, e em qual destas duas espécies de governo é mais provável que ele acabe por se fixar. Como não parece haver grande perigo de uma brusca revolução em qualquer dos dois sentidos, ao menos escaparei à vergonha resultante de minha temeridade, se se verificasse ter-me equivocado. Os que afirmam que o equilíbrio de nosso governo tende mais para a monarquia absoluta podem defender sua opinião mediante as razões seguintes. Seria impossível negar que a propriedade tem grande influência sobre o poder, mas apesar disso a máxima geral segundo a qual a balança de um depende da balança da outra só pode ser aceita com severas restrições. É evidente que uma propriedade muito menor, em uma só mão, será capaz de contrabalançar uma maior propriedade em diversas mãos, não só porque é difícil fazer que muitas pessoas se associem tendo em vista os mesmos objetivos, mas também porque, quando unida, a mesma propriedade gera muito maior dependência do que quando dispersa. Cem pessoas com mil libras anuais cada uma podem gastar toda a sua renda, e mesmo assim ninguém ficar na dependência delas, a não ser seus criados e artífices, os quais com justiça consideram seus lucros como produto de seu próprio trabalho. Mas um homem que possua cem mil libras de renda anual, se for suficientemente generoso e habilidoso, pode criar grande dependência por meio de favores, e ainda mais mediante as esperanças que faz nascer. Por isso se verifica que, em todos os governos livres, todo cidadão exorbitantemente rico sempre provoca desconfiança, mesmo que suas posses não possam ser comparadas às do Estado. A fortuna de Crasso, se bem me lembro, chegava apenas a cerca de dois milhões e meio em nossa moeda, e mesmo assim sabemos que, embora seu gênio nada tivesse de extraordinário, ele foi capaz, graças unicamente a sua riqueza, de igualar durante toda a sua vida tanto o poder de Pompeu como o de César, o qual veio depois a tornar-se senhor do mundo. A riqueza dos Médicis fez deles senhores de Florença, embora provavelmente ela não fosse muito grande, comparada com a propriedade conjunta dessa opulenta república. Estas considerações são de molde a fazer-nos receber uma ideia grandiosa do espírito de amor à liberdade britânico, pois fomos capazes de conservar nosso governo livre, durante tantos séculos, contra nossos soberanos que, além do poder e da majestade e dignidade da coroa, sempre foram senhores de muito mais propriedades do que qualquer cidadão jamais gozou em qualquer república. Mas deve dizer-se que este espírito, por maior que seja, nunca será capaz de se manter contra a imensa propriedade que o rei atualmente possui, e que continua aumentando. Segundo um cálculo moderado, a coroa tem à sua disposição perto de três milhões por ano. A lista civil soma perto de um milhão, a cobrança de todos os impostos outro milhão, e os salários do exército e da marinha, juntamente com os cargos eclesiásticos, somam mais de um terceiro milhão: uma quantia imensa, que pode razoavelmente ser calculada em mais da trigésima parte de toda a renda e trabalho do reino. Se a esta grande propriedade acrescentarmos o luxo crescente da nação, nossa tendência para a corrupção, juntamente com o grande poder e prerrogativas da coroa, e o comando das forças militares, ninguém poderá esperar ser capaz, sem extraordinários esforços, de, apesar destas desvantagens, conservar nosso governo livre durante muito tempo. Por outro lado, os que sustentam que o governo britânico se inclina para a república também podem defender sua opinião por meio de argumentos plausíveis. Pode dizer-se que, apesar de essa imensa propriedade da coroa se ir juntar à dignidade de primeiro magistrado e a muitos outros poderes e prerrogativas legais, que naturalmente lhe deverão dar maior influência, ela se torna menos perigosa para a liberdade devido precisamente a essa razão. Se a Inglaterra fosse uma república. e qualquer particular possuísse uma renda equivalente a um terço, ou mesmo a um décimo da coroa, muito justamente provocaria desconfiança, pois teria infalivelmente grande autoridade no governo; e uma autoridade tão irregular, não reconhecida pelas leis, é sempre mais perigosa que a autoridade, mesmo muito maior, que delas deriva. Um homem que seja possuidor de um poder usurpado não pode fixar limites para suas pretensões; seus partidários têm razão para tudo esperar de seu favor; seus inimigos provocam sua ambição, fazendo-o recear a violência de sua oposição; e, estando o governo mergulhado em grande agitação, todo indivíduo corrupto do país naturalmente se lhe juntará. Pelo contrário, uma autoridade legal, embora grande, tem sempre certos limites, os quais impedem as ambições e pretensões de seu possuidor; as leis certamente terão previsto remédio contra seus excessos. Um magistrado tão eminente tem demasiado medo e demasiado pouca ambição para pensar em usurpações; e, como sua autoridade legal é tranquilamente reconhecida, tem pouca tentação e pouca oportunidade de aumentá-la ainda mais. Além disso, sucede com as aspirações e projetos ambiciosos o mesmo que se pode observar nas seitas filosóficas e religiosas. Uma nova seita provoca tal agitação, e é tanto atacada como defendida com tal veemência, que sempre alastra mais depressa, e multiplica seus partidários com maior rapidez do que qualquer opinião de há muito estabelecida, recomendada pela sanção das leis e da antiguidade. Tal é a natureza da novidade, que sempre que alguma coisa agrada ela se torna duplamente agradável, precisamente pela mesma razão. E, na maior parte dos casos, a violência dos inimigos é favorável aos projetos ambiciosos, do mesmo modo que o zelo dos partidários. Pode além disso dizer-se que, embora os homens sejam fortemente dominados pelo interesse, até mesmo o próprio interesse, e todos os assuntos humanos, são inteiramente governados pela opinião. Ora, no decurso destes últimos quinze anos, deu-se uma brusca e sensível mudança nas opiniões dos homens, graças aos progressos do saber e da liberdade. A maior parte dos habitantes desta ilha se despojou de toda supersticiosa reverência pelos nomes e pela autoridade; o clero perdeu grande parte de seu crédito; suas pretensões e doutrina foram ridicularizadas; e mesmo a religião mal consegue já sustentar-se. O simples nome de rei inspira pouco respeito, e falar de um rei como vigário de Deus na terra, ou atribuir-lhe qualquer um desses títulos pomposos que antigamente deslumbravam os homens, provocaria apenas o riso de todos. Embora a coroa, graças a sua grande renda, possa conservar sua autoridade nas épocas de tranquilidade, por meio da influência e do interesse pessoal, apesar disso, como o menor choque ou convulsão é capaz de fazer em pedaços esses interesses, o poder real, deixando de ser sustentado pelos princípios e opiniões dos homens, será imediatamente destruído. Se durante a revolução os homens estivessem na mesma disposição em que estão atualmente, a monarquia teria corrido o risco de desaparecer completamente desta ilha. Se me arriscasse a expor minhas próprias opiniões no meio destes argumentos opostos, afirmaria que, a não ser que se dê qualquer convulsão extraordinária, o poder da coroa, graças a sua grande renda, parece mais estar-se reforçando; embora ao mesmo tempo deva admitir que este progresso parece ser muito lento e quase insensível. É bem sabido que todo governo tem que acabar um dia, e que a morte é tão inevitável para o corpo político como para o corpo animal. Mas, como é possível preferir-se um tipo de morte a outro, é lícito perguntar-se se é mais desejável que a Constituição britânica seja substituída por um governo popular ou por uma monarquia absoluta. Aqui declaro francamente que, embora em quase todos os casos a liberdade seja preferível à escravidão, preferiria ver nesta ilha um monarca absoluto a uma república. De fato, pensemos que tipo de república temos razões para esperar. Não está em causa qualquer bela república imaginária, cujo plano possamos traçar em nosso gabinete. Não há dúvida que é possível imaginar um governo popular mais perfeito que a monarquia absoluta, ou mesmo que nossa atual Constituição. Mas que razões temos nós para esperar que tal governo venha jamais a ser instituído na Grã-Bretanha, após a destruição de nossa monarquia? Se qualquer pessoa adquirir sozinha poder suficiente para reduzir a pedaços nossa Constituição e reelaborá-la inteiramente, ela será na realidade um monarca absoluto, e já tivemos um exemplo deste tipo, suficiente para nos convencer de que tal pessoa jamais renunciaria a seu poder nem instituiria um governo livre. Portanto o problema deve ser deixado a sua evolução natural; e a Câmara dos Comuns, de acordo com sua constituição atual, será o único Legislativo nesse governo popular. Seriam milhares os inconvenientes que tal situação acarretaria. Se em tal caso a Câmara dos Comuns alguma vez for dissolvida, o que não é de esperar, podemos contar com uma guerra civil em cada eleição. Se ela se mantiver, sofreremos toda a tirania de uma facção, subdividida em novas facções. E, como um governo assim violento não pode subsistir por muito tempo, iremos finalmente, depois de muitas convulsões e guerras civis, encontrar repouso na monarquia absoluta, a qual teria sido muito melhor instituirmos pacificamente desde o início. Portanto, a monarquia absoluta é a morte mais fácil, a verdadeira eutanásia da Constituição britânica. Portanto, se temos razões para ter mais desconfiança em relação à monarquia, por vir desse lado o perigo mais importante, temos também razões para tê-la mais em relação ao governo popular, porque é este o perigo mais terrível. Isto pode dar-nos uma lição de moderação em todas as nossas controvérsias políticas. DA INDEPENDÊNCIA DO PARLAMENTO Os autores políticos estabeleceram como máxima que, na instituição de qualquer sistema de governo e na fixação dos diversos freios e controles constitucionais, todo homem deve ser considerado um velhaco, que tem como fim único de todas as suas ações o interesse pessoal. É por intermédio deste interesse que devemos governar os homens, e através dele obrigá-los, apesar de sua insaciável avareza e ambição, a contribuir para o bem comum. Sem isso, dizem eles, será inútil gabarmos as vantagens de qualquer Constituição; e acabaremos finalmente por descobrir que a segurança de nossas liberdades e posses depende apenas da boa vontade dos governantes; ou seja, que não temos segurança alguma. Que todo homem deve ser considerado um velhaco é, portanto, uma máxima política acertada; embora ao mesmo tempo pareça um pouco estranho que uma máxima que de fato é falsa seja verdadeira em política. Mas, para resolver satisfatoriamente este problema, devemos lembrar que os homens são geralmente mais honestos na vida privada do que na vida pública, e que são capazes de ir mais longe para servir um partido do que quando apenas estão em causa seus interesses pessoais. Nas ações humanas a honra constitui um freio importante, mas este freio é em larga medida eliminado sempre que um grupo bastante grande age em conjunto; pois cada um está certo de ser aprovado por seu próprio partido, em tudo o que seja favorável ao interesse comum, e depressa aprende a desprezar os protestos dos adversários. Ao que podemos acrescentar que em todos os senados ou assembleias as decisões são tomadas por maioria de votos, e assim basta que a maioria se deixe levar pelo interesse pessoal (como sempre sucederá) para que todo o senado se deixe arrastar pela sedução deste interesse separado, e proceda como se nem um só de seus membros tivesse o menor respeito pela liberdade e pelo interesse da nação. Quando portanto a nosso exame e censura é apresentado qualquer plano de governo, real ou imaginário, em que o poder esteja distribuído entre várias assembleias e ordens, devemos sempre levar em conta o interesse separado de cada assembleia e de cada ordem; e se verificarmos que, graças a uma hábil divisão do poder, esse interesse terá efeitos necessariamente coincidentes com o interesse público, podemos concluir que esse é um governo sábio e feliz. Se, pelo contrário, os interesses separados não forem freados nem orientados no sentido do bem público, não podemos esperar de tal governo senão discórdia, desordem e tirania. Esta minha opinião é justificada pela experiência, assim como pela autoridade de todos os filósofos e políticos, tanto antigos como modernos. Como teria portanto ficado surpreendido um gênio como Cícero ou Tácito, se lhe dissessem que numa época futura surgiria um equilibrado sistema de governo misto, no qual a autoridade estaria distribuída de modo tal, que uma das ordens, sempre que lhe aprouvesse, poderia absorver todo o resto e apoderar-se de todo o poder da Constituição! Tal governo, diriam eles, não seria um governo misto; pois, tão grande é a ambição natural dos homens, que eles nunca estão satisfeitos com o poder, e que, se uma das ordens, em defesa de seus próprios interesses, pudesse usurpar o poder de todas as outras, ela sem dúvida assim faria, assumindo a autoridade mais absoluta e incontrolável que fosse possível. Mas a experiência mostra que essa opinião seria errônea. Pois é esse efetivamente o caso da Constituição britânica. A parcela de poder que nossa Constituição atribui à Câmara dos Comuns é tão grande, que esta dirige de modo absoluto todas as outras partes do governo. É evidente que o poder Legislativo do rei não pode controlá-la adequadamente, porque, embora o rei tenha direito de sanção na elaboração das leis, esse direito é de fato considerado tão pouco importante, que tudo que for votado pelas duas câmaras será com certeza transformado em lei, e o consentimento real é pouco mais do que uma formalidade. A principal força da coroa reside no poder Executivo; mas, além de em qualquer governo o poder Executivo estar inteiramente subordinado ao Legislativo; além disso, repito, o exercício desse poder exige uma despesa imensa; e os Comuns reservaram exclusivamente para si o direito de distribuir verbas. Como não seria fácil àquela Câmara, portanto, arrancar à coroa todos esses poderes, um após outro, impondo condições a troco de cada distribuição de verbas, e escolhendo tão bem as ocasiões que sua recusa apenas criasse dificuldades ao governo, sem dar às potências estrangeiras qualquer vantagem sobre nós? Se a Câmara dos Comuns estivesse em idêntica dependência em relação ao rei, e só por sua dádiva os membros da Câmara tivessem prioridade, acaso não seria ele quem tomaria as decisões, tornando-se a partir desse momento um monarca absoluto? Quanto à Câmara dos Lordes, esta constitui um poderosíssimo apoio para a coroa, na medida em que por sua vez é apoiada por esta; mas tanto a experiência como a razão nos mostram que ela não possui força nem autoridade suficiente para se manter por si só, sem o referido apoio. Como poderemos então resolver este paradoxo? E através de que meios este membro de nossa Constituição é mantido dentro dos devidos limites, quando, de acordo com a própria Constituição, deve necessariamente possuir todo o poder que exigir e só por si mesmo pode ser limitado? Como pode isto ser compatível com nossa experiência da natureza humana? A resposta é que neste caso os interesses do conjunto são refreados pelos dos indivíduos; e que a Câmara dos Comuns não amplia seus poderes porque essa usurpação seria contrária aos interesses da maioria de seus membros. A coroa tem à sua disposição tal número de cargos, que, quando apoiada pela parte honesta e desinteressada da Câmara, sempre poderá orientar as decisões do todo, pelo menos em medida suficiente para livrar de perigo a antiga Constituição. Podemos portanto dar a esta influência o nome que nos aprouver; podemos dar-lhe as odiosas designações de corrupção e dependência; de qualquer modo, um certo grau ou certa espécie dela é inseparável da própria natureza da Constituição e necessária para a preservação de nosso governo misto. Assim, em vez de afirmar de maneira absoluta que a dependência do Parlamento, seja em que medida for, constitui uma violação da liberdade britânica, o Partido do Campo deveria ter feito algumas concessões a seus adversários, limitando-se a examinar qual seria o grau adequado para esta dependência, além do qual ela se tornaria perigosa para a liberdade. Mas não seria de esperar tal moderação em qualquer espécie de homens de partido. Após uma concessão desta natureza, seria preciso abandonar toda espécie de declamações, e os leitores ficariam esperando uma calma investigação sobre qual seria a medida adequada de influência da corte e dependência parlamentar. E, embora em tal controvérsia a vantagem continuasse possivelmente pertencendo ao Partido do Campo, mesmo assim a vitória não poderia ser tão completa como este deseja, nem um verdadeiro patriota seria capaz de abrandar totalmente seu zelo, por receio de levar as coisas ao extremo oposto, reduzindo demasiadamente a influência da coroa. Foi portanto considerado preferível negar que esse extremo pudesse jamais ser perigoso para a Constituição, ou que a coroa pudesse jamais ter demasiado pouca influência sobre os membros do Parlamento. Todos os problemas relativos ao justo meio termo entre extremos são difíceis de resolver, tanto por não ser fácil encontrar palavras adequadas para definir esse meio termo como por nesses casos o bem e o mal se distinguirem um do outro de maneira tão gradual, que chegam até a tornar duvidosos e incertos nossos sentimentos. Mas no problema em questão há uma dificuldade peculiar, capaz de embaraçar o mais sábio e imparcial dos juízes. O poder da coroa sempre reside em uma única pessoa, seja rei ou ministro; e, como esta pessoa pode ter um grau maior ou menor de ambição, capacidade, coragem, popularidade ou fortuna, o mesmo poder que é excessivo em umas mãos pode ser demasiado reduzido em outras. Nas repúblicas puras, onde a autoridade é distribuída entre diversas assembleias ou senados, os freios e controles constitucionais atuam de maneira mais uniforme, pois é lícito supor-se que os membros dessas numerosas assembleias têm sempre qualidades e virtudes aproximadamente idênticas, sendo apenas levados em consideração seu número, riqueza ou autoridade. Mas uma monarquia limitada não pode permitir tal estabilidade, nem é possível atribuir à coroa um grau de poder rigorosamente definido, capaz de estabelecer adequadamente, em quaisquer mãos, um sólido equilíbrio com as outras partes da Constituição. É esta uma desvantagem inevitável, entre as muitas vantagens oferecidas por essa forma de governo. IDEIA DE UMA REPÚBLICA PERFEITA Com as formas de governo não se passa o mesmo que com as outras invenções, pois nestas é possível pôr de lado uma máquina velha, se encontrarmos outra que ofereça maior precisão e comodidade, ou sem perigo proceder a experiências, mesmo que o êxito seja duvidoso. Um governo estabelecido apresenta uma infinita vantagem, devido precisamente ao fato de estar estabelecido; os homens, em sua maioria, são governados pela autoridade e não pela razão, e nunca reconhecem autoridade ao que não apresenta a recomendação da antiguidade. Portanto, intrometer-se neste assunto, fazendo experiências apenas com base numa pretensa argumentação ou filosofia, é coisa que jamais será tentada por um magistrado sensato, que tenha respeito pelo que traz as marcas do tempo; e, embora possa tentar algumas melhorias para bem da nação, mesmo assim adaptará o mais possível suas inovações ao antigo edifício, conservando intatos os principais pilares e sustentáculos da Constituição. Havia entre os matemáticos da Europa um profundo desacordo sobre o modelo de navio mais adequado para navegar; e Huygens, que finalmente resolveu a controvérsia, é justamente considerado merecedor da gratidão tanto do mundo do saber como do dos negócios, apesar de Colombo ter descoberto a América e de Sir Francis Drake ter dado a volta ao mundo sem essa invenção. Visto devermos admitir que uma forma de governo pode ser mais perfeita do que outra, independentemente dos costumes e do caráter dos indivíduos, por que não havemos de procurar determinar qual é a mais perfeita de todas, embora os grosseiros e defeituosos governos vulgares pareçam servir os objetivos da sociedade, e embora o estabelecimento de um novo sistema de governo não seja tão fácil como a construção de um navio segundo um novo modelo? Este assunto é sem dúvida o mais merecedor de curiosidade de quantos a inteligência humana pode escolher. E quem sabe se, depois de resolvida esta controvérsia pelo universal consenso dos sábios e prudentes, não poderá surgir em qualquer época futura uma oportunidade para passar da teoria à prática, graças à dissolução de qualquer velho governo, ou mediante um acordo entre os homens para formar um novo, em qualquer distante região do mundo? Em qualquer caso, será sem dúvida vantajoso saber qual é a mais perfeita de todas, a fim de podermos levar qualquer Constituição ou forma de governo existente a aproximar-se dela o mais possível, por meio de alterações e inovações suaves, para não provocarem demasiadas perturbações na sociedade. Neste ensaio pretendo apenas ressuscitar este tema de especulação, portanto apresentarei minhas opiniões no menor número possível de palavras. Estou certo de que uma extensa dissertação sobre o assunto não seria facilmente aceita pelo público, o qual tende a considerar tais indagações tão inúteis quanto quiméricas. Todos os planos de governo que implicam uma grande reforma dos costumes da humanidade são puramente imaginários. São desta natureza a República de Platão e a Utopia de Sir Thomas More. A Oceana é o único modelo válido de república que foi até agora apresentado ao público. Os principais defeitos da Oceana parecem ser os seguintes. Primeiro, a rotação que propõe é inconveniente, pois expulsa periodicamente dos empregos públicos mesmo os homens mais aptos. Segundo, sua lei agrária é impraticável; os homens não tardariam a descobrir a arte, praticada na antiga Roma, de ocultar suas posses sob o nome de outras pessoas, até que finalmente o abuso se tornaria tão vulgar que desapareceria sequer a aparência de controle. Terceiro, a Oceana não oferece suficiente segurança para a liberdade, ou para a reparação das ofensas. O senado deve propor, e o povo deve consentir; assim, o senado não só possui direito de sanção mas também, o que tem muito mais importância, essa sanção precede o voto do povo. Se na Constituição inglesa a sanção real fosse dessa mesma natureza, se o rei tivesse poderes para impedir que qualquer projeto de lei chegasse ao Parlamento, ele seria um monarca absoluto. Como é precedido pelo voto das duas câmaras, sua sanção tem pouca importância: a diferença consiste apenas em dizer a mesma coisa de uma outra maneira. Quando um projeto popular já foi debatido no Parlamento, já chegou à maturidade, depois de estudados e avaliados seus inconvenientes e vantagens, se posteriormente é submetido à aprovação real, poucos príncipes se arriscarão a rejeitar o desejo unânime do povo. Mas se o rei tivesse o poder de esmagar em embrião um projeto que lhe desagradasse (como aconteceu durante algum tempo no Parlamento escocês, por intermédio dos lordes dos artigos), nem haveria equilíbrio algum no governo britânico, nem jamais as ofensas seriam reparadas; e é bem certo que o excesso de poder, em qualquer governo, se deve muito menos às novas leis do que à negligência em corrigir os abusos que frequentemente derivam das antigas. Muitas vezes os governos, diz Maquiavel, se veem obrigados a regressar a seus princípios originais. Parece portanto poder afirmar-se que na Oceana o senado detém todo o Poder Legislativo, coisa que Harrington reconheceria ser uma forma inadequada de governo, sobretudo depois de ser abolida a lei agrária. Eis uma forma de governo contra a qual, em teoria, não posso apresentar qualquer objeção importante. A Grã-Bretanha e a Irlanda (ou qualquer território de igual superfície) são divididas em cem condados, e cada condado em cem freguesias, perfazendo ao todo dez mil. Se o país que pretende transformar-se em república tem uma superfície menor, podemos diminuir o número de condados, mas sem nunca chegar abaixo de trinta. Se tem uma superfície maior, é preferível ampliar as freguesias, ou colocar mais freguesias em cada condado, a aumentar o número de condados. Todos os proprietários rurais do condado com renda de vinte libras por ano, assim como todos os proprietários de casa no valor de quinhentas libras, nas freguesias urbanas, se reúnem anualmente na igreja da freguesia para escolher, por eleição, um dos proprietários do condado como seu membro, ao qual chamaremos o representante do condado. Os cem representantes do condado se reúnem na capital do condado dois dias depois da eleição, para escolher por eleição, de entre eles, dez magistrados do condado e um senador. Haverá portanto, em todo o Estado, cem senadores, mil e cem magistrados e dez mil representantes dos condados, pois todos os senadores terão dignidade de magistrados, e todos os magistrados terão dignidade de representantes. Os senadores se reúnem na capital, sendo investidos de todo o Poder Executivo da república: o poder de decidir a paz e a guerra, de dar ordens aos generais, almirantes e embaixadores, em resumo, todas as prerrogativas do rei da Inglaterra, excetuando-se a da sanção. Os representantes se reúnem em seus respectivos condados, e detêm o Poder Legislativo do Estado, sendo todas as decisões tomadas pela maioria de condados; em caso de empate, caberá ao senado o voto de qualidade. Toda nova lei deve ser primeiramente discutida no senado; mesmo no caso de uma delas ser rejeitada, se dez senadores insistirem e protestarem, ela deverá ser submetida aos condados. O senado, se assim lhe aprouver, pode juntar ao exemplar da lei as razões que levaram à sua aprovação ou rejeição. Devido à dificuldade de reunir todos os representantes dos condados por ocasião de toda e qualquer lei, incluindo as menos importantes, o senado tem o direito de submeter a lei ou aos magistrados ou aos representantes dos condados. Mesmo nos casos em que uma lei lhes tenha sido submetida, os magistrados podem, se assim lhes aprouver, convocar os representantes e submeter o assunto a sua decisão. Quer a lei seja submetida pelo senado aos magistrados ou aos representantes dos condados, deve ser enviado um exemplar da lei e das razões do senado a todos os representantes, oito dias antes do dia escolhido para a reunião, a fim de poderem deliberar a seu respeito. E, mesmo que a decisão seja submetida pelo senado aos magistrados, se cinco representantes ordenarem aos magistrados que reúnam toda a corte dos representantes e submetam o assunto à decisão desta, eles devem obedecer. Ou os magistrados ou os representantes poderão entregar ao senador do condado qualquer lei que pretendam seja proposta ao senado; e, se cinco condados o exigirem, a lei, mesmo que seja recusada pelo senado, deve ser submetida ou aos magistrados ou aos representantes dos condados, tal como foi expressa pelos cinco condados. Quaisquer vinte condados, pelo voto de seus magistrados ou de seus representantes, podem expulsar qualquer homem dos cargos públicos pelo prazo de um ano; trinta condados, pelo prazo de três anos. O senado tem o direito de expulsar qualquer de seus próprios membros ou um grupo deles, que não poderão ser reeleitos nesse ano. O senado não pode expulsar duas vezes no mesmo ano o senador do mesmo condado. O senado cessante conserva seu poder durante as três semanas seguintes à eleição anual dos representantes dos condados. Depois disso todos os senadores se encerram em conclave, como os cardeais, e, mediante uma complicada votação, como a de Veneza ou a de Malta, escolhem os seguintes magistrados: um protetor, que representa a dignidade da república e preside ao senado; dois secretários de Estado; seis conselhos: um conselho de Estado, um conselho de religião e cultura, um conselho de comércio, um conselho de leis, um conselho de guerra e um conselho do almirantado, sendo cada um destes conselhos constituído por cinco pessoas; juntamente com seis comissários do tesouro e um primeiro comissário. Todos estes devem ser senadores. O senado nomeia também todos os embaixadores em países estrangeiros, os quais podem ou não ser senadores. O senado pode conservar qualquer um ou todos eles, mas deve reelegê-los todos os anos. O protetor e os dois secretários têm direito de presença e de voto nas reuniões do conselho de Estado. Este conselho está encarregado de toda a política exterior. O conselho de Estado tem direito de presença e de voto nas reuniões de todos os outros conselhos. O conselho de religião e cultura fiscaliza as universidades e o clero. Ode comércio fiscaliza tudo o que se relaciona com o intercâmbio comercial. O de leis fiscaliza todos os abusos da lei cometidos pelos magistrados inferiores, e estuda quais as melhorias que se podem fazer na lei municipal. O de guerra fiscaliza a milícia e sua disciplina, paióis, depósitos, etc., e quando a república está em guerra estuda as ordens a ser dadas aos generais. O conselho do almirantado tem os mesmos poderes em relação à marinha, juntamente com a nomeação dos capitães e de todos os oficiais subalternos. Nenhum destes conselhos pode dar ordens diretamente, a não ser quando esse direito lhe é concedido pelo senado. Em todos os outros casos deve comunicar tudo ao senado. Durante os intervalos entre as sessões do senado, qualquer dos conselhos pode convocá-lo para antes do dia marcado para sua reunião. Além destes conselhos ou cortes, há outra que é chamada a corte dos competidores, que é constituída da seguinte maneira: se qualquer dos candidatos ao cargo de senador obtiver mais de um terço de votos dos representantes, o candidato que obtiver mais votos a seguir ao senador eleito fica proibido durante um ano de ocupar qualquer cargo público, inclusive o de magistrado ou representante; mas toma seu lugar na corte dos competidores. Esta será pois uma corte que poderá às vezes ser composta de cem membros, e outras vezes não ter membro algum, sendo neste último caso abolida pelo prazo de um ano. A corte dos competidores não tem poder algum no Estado, tem apenas o direito de fiscalizar as contas públicas, e de acusar qualquer homem perante o senado. Se o senado absolver esse homem, a corte dos competidores pode, se assim lhe aprouver, apelar para o povo, quer para os magistrados quer para os representantes. Perante esse apelo, os magistrados ou os representantes se reúnem em dia marcado pela corte dos competidores, e escolhem três pessoas de cada condado, não podendo nenhuma delas ser senador. Estas, em número de trezentas, reúnem-se na capital e submetem a pessoa acusada a novo julgamento. A corte dos competidores tem o direito de propor leis ao senado; caso uma destas seja recusada, pode apelar para o povo, isto é, para os magistrados ou para os representantes, que a estudam em seus condados. Todo senador que for expulso do senado por votação da corte irá tomar lugar na corte dos competidores. O senado possui toda a autoridade judicial da Câmara dos Lordes, isto é, cabe-lhe julgar todos os recursos dos tribunais inferiores. É ele também que designa o lorde chanceler e todos os oficiais de justiça. Cada condado é uma espécie de república autônoma, e os representantes podem elaborar leis secundárias, as quais só passam a ter autoridade três meses depois de serem votadas. É enviada uma cópia da lei ao senado e a cada um dos outros condados. O senado ou qualquer dos condados, pode a qualquer momento anular uma lei secundária de outro condado. Os representantes possuem toda a autoridade dos juízes de paz ingleses em julgamentos, ordens de prisão, etc. Aos magistrados compete a designação de todos os oficiais da fazenda em cada condado. Todas as causas relativas à fazenda são julgadas em última instância pelos magistrados. Sancionam as contas de todos os funcionários, mas suas próprias contas são examinadas e sancionadas no fim do ano pelos representantes. Os magistrados nomeiam os reitores ou ministros de todas as paróquias. É instituído o governo presbiteriano, e o mais alto tribunal eclesiástico é uma assembleia ou sínodo de todos os presbíteros do condado. Os magistrados têm o direito de tirar qualquer causa a este tribunal decidindo-as eles mesmos. Os magistrados têm o direito de levar em juízo, destituir ou suspender qualquer presbítero. A milícia é organizada segundo o modelo da Suíça, sobre a qual, por ser bem conhecida, não insistiremos. É necessário apenas acrescentar que anualmente é levantado por rotação um exército de vinte mil homens, que é pago e acampa durante seis semanas no verão, a fim de que os serviços de acampamento não sejam inteiramente desconhecidos. Os magistrados nomeiam todos os coronéis e oficiais de patente inferior, e o senado todos os de patente superior. Em tempo de guerra, o general nomeia o coronel e os oficiais de patente inferior, e ocupa seu posto pelo prazo de um ano. Findo este, deve ser confirmado pelos magistrados do condado a que o regimento pertence. Os magistrados têm o direito de expulsar qualquer oficial do regimento do condado, e o senado pode fazer o mesmo a qualquer oficial em serviço. Se os magistrados não considerarem conveniente a confirmação da escolha do general, podem nomear outro oficial para o posto daquele que recusaram. Dentro de cada condado, todos os crimes são julgados pelos magistrados e por um júri. Mas o senado pode suspender qualquer julgamento e chamar a si a responsabilidade do mesmo. Qualquer condado pode enviar qualquer homem a julgamento pelo senado, por qualquer crime. Em casos de extrema emergência o protetor, os dois secretários, o conselho de Estado e outros cinco ou mais membros designados pelo senado podem receber poderes ditatoriais pelo prazo de seis meses. O protetor tem o direito de perdoar qualquer pessoa condenada pelos tribunais inferiores. Em tempo de guerra, nenhum oficial do exército que esteja no campo de batalha pode ocupar cargos civis do Estado. À capital, que chamaremos Londres, podem ser concedidos quatro condados; os representantes de cada um destes escolhem um senador e dez magistrados. A cidade terá portanto quatro senadores, quarenta e quatro magistrados e quatrocentos representantes. Os magistrados têm a mesma autoridade que nos condados. Os representantes têm também a mesma autoridade, mas nunca se reúnem em assembleia geral: cada um deposita seu voto em seu respectivo condado ou grupo de cem. Quando decretam uma lei secundária, a questão é resolvida pela maioria dos condados ou grupos. Em caso de empate, os magistrados têm voto de qualidade. Os magistrados escolhem o prefeito, o corregedor, o juiz municipal e os outros funcionários da cidade. Nenhum representante, magistrado ou senador da república recebe qualquer salário por suas funções. O protetor, os secretários, os membros dos conselhos e os embaixadores recebem salário. O primeiro ano de cada século é reservado à correção de todas as desigualdades que o tempo possa ter feito surgir no sistema representativo, o que deve ser feito pelo Legislativo. A razão destas normas poderá talvez ser explicada pelos seguintes aforismos políticos. As camadas inferiores do povo e os pequenos proprietários são suficientemente bons juízes de quem não esteja muito distante deles em dignidade e posição social, e portanto, em suas reuniões de freguesia, é provável que escolham o melhor ou aproximadamente o melhor representante; mas são totalmente incompetentes para as reuniões de condado e para eleger os mais altos funcionários da república. Sua ignorância dá aos grandes oportunidade para ludibria-los. Dez mil membros constituem uma base suficientemente ampla para qualquer governo livre, mesmo que não sejam eleitos anualmente. É certo que na Polônia os nobres são dez mil, e mesmo assim oprimem o povo, mas, como o poder permanece nas mãos das mesmas pessoas e famílias, eles são de certo modo uma nação diferente do povo. Além disso, nesse país os nobres encontram-se unidos em algumas poucas famílias. Todos os governos livres devem ser formados por dois conselhos, um menor e um maior: ou, por outras palavras, pelo senado e pelo povo. Ao povo, sem o senado, conforme observa Harrington, faltaria prudência; ao senado, sem o povo, faltaria honestidade. Uma grande assembleia de mil representantes do povo, por exemplo, se fosse autorizada a realizar debates, acabaria em desordem; se a tal não é autorizada, o senado tem direito de sanção sobre ela, e a pior espécie de sanção, a anterior à decisão. Eis portanto um inconveniente que até agora nenhum governo solucionou plenamente, mas é o mais fácil de solucionar deste mundo. Se o povo realiza debates, tudo é confusão; se não o faz, pode apenas aprovar, e neste caso é o senado que decide por ele. Se o povo for dividido em muitos corpos separados, poderá realizar debates com segurança, e evitam-se todos os inconvenientes. Diz o Cardeal de Retz que toda assembleia numerosa, seja qual for sua composição, não passa de populacho, cujos debates flutuam ao mínimo motivo; o que a experiência cotidiana confirma. Quando um membro se lembra de qualquer absurdo, logo o comunica a seu vizinho, e assim por diante até que todos estejam contaminados. Se este grande organismo for dividido não será provável, mesmo que todos os membros tenham apenas inteligência medíocre, que no conjunto prevaleça outra coisa que a razão. Afastados a influência e o exemplo, o bom senso sempre triunfará num grupo de pessoas. Há duas coisas que qualquer senado deve procurar evitar: a combinação e a divisão. A combinação é o mais perigoso dos dois inconvenientes, e contra este propomos as seguintes soluções. l. Os senadores dependerão estreitamente do povo por meio de eleições anuais, não por uma turba insensata como os eleitores ingleses, mas por homens de fortuna e de educação. 2. Ser-lhes-á concedido pouco poder; poderão dispor de poucos cargos, pois quase todos serão distribuídos pelos magistrados dos condados. 3. A corte dos competidores, sendo composta de homens que são rivais dos senadores e têm interesses muito semelhantes aos deles, procurará sempre sobrepor-se ao senado. A divisão do senado será evitada: 1. Pelo reduzido número de seus membros. 2. Como a facção provoca combinações baseadas na separação de interesses, ela será evitada mediante a dependência dos senadores em relação ao povo. 3. O senado terá o poder de expulsar qualquer membro faccioso. E certo que, caso do seu condado venha outro membro com o mesmo caráter, o senado não terá o direito de expulsá-lo. Nem seria indicado que assim fizesse, pois isso mostraria que esse caráter é próprio do povo, e é possível que tenha origem na má condução dos negócios públicos. 4. Num senado escolhido pelo povo de maneira tão regular, pode supor-se que quase todos os membros são capazes de ocupar qualquer cargo público. Seria portanto indicado que o senado tomasse certas decisões gerais em relação à distribuição dos cargos entre seus membros, decisões essas que não seriam aplicadas em ocasiões críticas, quando qualquer senador desse mostras de qualidades extraordinárias ou de uma extraordinária estupidez, mas que seriam suficientes para evitar intrigas e facciosismos, determinando claramente o modo de distribuição dos cargos. Como exemplo, tomemos uma decisão segundo a qual ninguém pode ocupar cargos antes de ter sido senador durante quatro anos; que ninguém a não ser os embaixadores pode ocupar um cargo em dois anos seguidos; que ninguém pode ser protetor duas vezes, etc. O senado de Veneza se governa por decisões semelhantes. Em política estrangeira, o interesse do senado quase nunca pode ser separado do povo; portanto, deve dar-se ao senado poder absoluto em relação a ela, pois de outro modo não poderá haver sigilo nem uma política aperfeiçoada. Além disso, nenhuma aliança pode ser celebrada sem dinheiro, e o senado é ainda suficientemente dependente. Para não referir que, sendo o Poder Legislativo sempre superior ao Executivo, os magistrados ou os representantes podem intervir sempre que acharem conveniente. O principal sustentáculo do governo britânico é a oposição dos interesses, mas tal fato, embora de maneira geral seja útil, alimenta intermináveis disputas partidárias. No plano acima apresentado, ele faz muito bem sem fazer mal algum. Os competidores não têm o direito de controlar o senado: têm apenas o de acusar e de apelar para o povo. De maneira semelhante, é necessário evitar a combinação e a divisão entre os mil magistrados. Isto é suficientemente conseguido mediante a separação de lugares e de interesses. Se isto não fosse suficiente, o fato de para sua eleição dependerem dos dez mil serviria ao mesmo fim. E isto não é tudo, pois os dez mil podem reassumir o poder sempre que lhes aprouver; e não apenas quando lhes aprouver, mas também quando isso aprouver a quaisquer cinco de cada centena, o que acontecerá logo que surja a primeira suspeita de um interesse separado. Os dez mil constituem um corpo demasiado grande quer para se unirem quer para se dividirem, a não ser quando se reúnem no mesmo local e caem sob a direção de líderes ambiciosos. Para não referir sua eleição anual, por todo o conjunto das pessoas de certa posição. Do ponto de vista interno, as pequenas repúblicas são os governos mais felizes do mundo, pois tudo está sujeito à vigilância dos governantes; mas podem ser subjugadas por qualquer grande força que venha do exterior. Este sistema parece reunir todas as vantagens dos grandes e dos pequenos Estados. Todas as leis dos condados podem ser anuladas tanto pelo senado como por outro condado, pois isso revela uma oposição de interesses, e neste caso nenhuma das partes deve decidir por si mesma. O problema deve ser submetido a todos, que decidirão melhor o que estiver mais de acordo com o interesse geral. Quanto ao clero e à milícia, as razões destas normas são evidentes. Se o clero não depender dos magistrados civis, e se não houver milícia, será inútil pensar que qualquer governo livre terá jamais segurança ou estabilidade. Em muitos governos, os magistrados inferiores têm como única remuneração a que lhes dá sua ambição, vaidade ou espírito público. Os salários dos juízes franceses são inferiores ao juro das quantias que pagam por seus cargos. Os burgomestres holandeses pouco mais lucro imediato auferem que os juízes de paz ingleses ou que os membros da antiga Câmara dos Comuns. A não ser que se suspeite que isso provocaria negligência na administração (o que pouco é de recear, levando em conta a natural ambição dos homens), os magistrados devem receber salários condignos. Os senadores têm acesso a tantos cargos honrosos e lucrativos, que seus serviços não precisam ser pagos. Poucos são os serviços que se exigem dos representantes. Quem reparar na semelhança do plano de governo acima apresentado com a república nas Províncias Unidas, sábio e reputado governo, será incapaz de duvidar de que ele seja praticável. As alterações que nosso sistema introduz parecem ser todas evidentemente para melhor. 1. A representação é mais equitativa. 2. O poder ilimitado dos burgomestres das cidades, que no Estado holandês dá origem a uma perfeita aristocracia, é corrigido por uma democracia bem dosada, confiando ao povo a eleição anual dos representantes dos condados. 3. É aqui eliminado o direito de sanção que todas as províncias e cidades têm sobre todo o conjunto da república holandesa, em relação às alianças, à paz e à guerra e à cobrança de impostos. 4. Em nosso plano os condados não são tão independentes uns dos outros, nem constituem corpos tão separados como as sete províncias, nas quais a desconfiança e inveja das províncias e cidades menores em relação às maiores, sobretudo a Holanda e Amsterdam, têm frequentemente perturbado o governo. 5. São confiados ao senado poderes mais amplos, embora de tipo mais seguro, do que os possuídos pelos Estados Gerais, e graças a talo primeiro pode ser mais eficiente, e mais sigiloso em suas decisões, do que ao último é possível. As principais alterações que poderiam ser feitas ao governo britânico, a fim de levá-la a coincidir com o mais perfeito modelo de monarquia limitada, parecem ser as seguintes. Primeiro, deve ser restabelecido o plano do Parlamento de Cromwell, tornando equitativa a representação e concedendo o direito de votar nas eleições dos condados apenas aos possuidores de propriedades no valor de duzentas libras. Segundo, que, sendo tal Câmara dos Comuns demasiado poderosa em comparação com uma fraca Câmara dos Lordes como a atual, devem ser afastados os nobres escoceses e os bispos; o número dos membros da Câmara Alta deve ser elevado para trezentos ou quatrocentos; seus lugares devem ser apenas vitalícios e não hereditários; deve ter o direito de eleger seus próprios membros; e nenhum dos membros da Câmara dos Comuns deve ter o direito de recusar um lugar que lhe seja oferecido. Por este meio, a Câmara dos Lordes seria formada inteiramente pelos homens de maior reputação, capacidade e interesse da nação, e todo e qualquer líder turbulento da Câmara dos Comuns poderia ser afastado desta e ligado pelo interesse à Câmara dos Nobres. Tal aristocracia constituiria uma excelente barreira tanto a favor da monarquia como contra ela. Atualmente, o equilíbrio de nosso governo depende em certa medida da capacidade e do comportamento do soberano, os quais são circunstâncias variáveis e incertas. Este plano de monarquia limitada, apesar de corrigido, parece estar ainda sujeito a três grandes inconvenientes. Primeiro, não elimina inteiramente, embora possa atenuar, os partidos da corte e do campo. Segundo, o caráter pessoal do rei terá ainda uma grande influência sobre o governo. Terceiro, a espada está nas mãos de uma única pessoa, a qual sempre negligenciará a disciplina da milícia, a fim de ter pretexto para manter um exército permanente. Terminaremos este assunto apontando a falsidade da opinião vulgar segundo a qual os grandes Estados, como a França ou a Grã-Bretanha, jamais poderão ser transformados em repúblicas, pois tal forma de governo só pode ser aplicada a cidades ou pequenos territórios. Parece provável dar-se o contrário. Embora a instituição de um governo republicano seja mais difícil num país muito extenso do que numa cidade, depois de consumada essa instituição se torna mais fácil, no primeiro caso, conservá-la firme e uniforme, sem tumultos nem facções. Para as regiões distantes de um grande Estado não é fácil participar em qualquer sistema de governo livre, pois facilmente adquirem estima e reverência por uma única pessoa que, graças a esta popularidade, pode tomar o poder e, obrigando os mais obstinados a submeter-se, instituir um governo monárquico. Por outro lado, uma cidade facilmente aceita o mesmo conceito de governo, a natural igualdade da propriedade favorece a liberdade e a proximidade das habitações permite aos cidadãos ajudarem-se mutuamente. Mesmo sob os príncipes absolutos, o governo subordinado das cidades é geralmente republicano, ao passo que o dos condados e províncias é monárquico. Mas as circunstâncias que facilitam a formação de repúblicas nas cidades são as mesmas que tornam sua constituição mais frágil e incerta. As democracias são turbulentas. Porque, por mais que o povo seja separado ou dividido em pequenas partes para as eleições, o fato de nas cidades habitarem próximos uns dos outros sempre fará que seja considerável a força das correntes populares. As aristocracias são mais eficazes para a manutenção da paz e da ordem, e por isso foram muito admiradas pelos autores antigos; mas são excessivamente opressivas e vigilantes. Num grande país que seja governado com magistral perícia, há oportunidade suficiente para aperfeiçoar a democracia, desde as camadas mais baixas do povo, que podem ser autorizadas a votar nas primeiras eleições, no plano mais baixo da república, até aos mais altos magistrados, que dirigem toda a vida política. Além disso, as diversas regiões do país são tão distantes e remotas, que se torna muito difícil, seja por intriga, preconceito ou paixão, induzi-Ias a tomar quaisquer medidas contrárias ao interesse público. Seria inútil investigar sé tal governo seria ou não imortal. Concordo com o poeta quando, sobre os infindáveis projetos da raça humana, fala do homem de sempre. O próprio mundo provavelmente não é imortal. Poderão surgir pragas de tal modo destruidoras, que façam mesmo de um governo perfeito uma presa fácil para seus vizinhos. Não sabemos em que medida o entusiasmo ou outros movimentos extraordinários do espírito humano poderão levar os homens a negligenciar toda ordem e bem público. Mesmo que se eliminem as diferenças de interesse, o favor ou inimizade pessoais podem fazer surgir caprichosas e incontáveis facções. Mesmo na mais aperfeiçoada máquina política pode surgir ferrugem nas molas, perturbando seus movimentos. Por último, a prática das grandes conquistas levará forçosamente à ruína qualquer governo livre; e os governos mais perfeitos mais depressa do que os imperfeitos, precisamente devido às vantagens que os primeiros apresentam sobre os últimos. E, embora tal Estado devesse aprovar uma lei fundamental contra as conquistas, mesmo assim as repúblicas têm ambições do mesmo modo que os indivíduos, e os interesses imediatos fazem os homens esquecer sua posteridade. Constitui incentivo bastante para os esforços dos homens o objetivo de fazer tal governo florescer durante muitas gerações. Sem pretender atribuir, a qualquer obra do homem aquela imortalidade que o Todo-Poderoso parece ter recusado a suas próprias criações. DOS PARTIDOS EM GERAL De todos os homens que se distinguiram por feitos memoráveis, o lugar de honra parece caber aos legisladores e fundadores de Estados, que deixaram um sistema de leis e instituições destinado a garantir a paz, a felicidade e a liberdade das gerações futuras. Talvez as benéficas invenções das artes e ciências exerçam mais ampla influência do que as mais sábias leis, cujos efeitos são limitados tanto no tempo como no espaço, mas as vantagens resultantes das primeiras não são tão ponderáveis como as que derivam das segundas. É certo que as ciências especulativas aperfeiçoam o espírito, mas deste beneficio apenas tiram proveito as poucas pessoas que dispõem de ócio para a elas se dedicarem. Quanto às artes práticas, que ampliam as comodidades e os prazeres da vida, todos sabem que a felicidade dos homens depende menos da abundância destes do que da paz e segurança de sua fruição, e estas bênçãos apenas podem provir de um bom governo. Para não referir o fato de que num Estado a virtude geral e sã moralidade, tão indispensáveis para a felicidade dos homens, nunca podem provir dos mais sutis preceitos da filosofia, ou sequer das mais severas prescrições da religião, mas devem resultar inteiramente de uma virtuosa educação da juventude, consequência de sábias leis e instituições. Devo portanto ousar discordar de Lorde Bacon neste particular, e considerar a antiguidade um pouco injusta em sua distribuição das honras, que fazia deuses de todos os inventores das artes úteis, como Ceres, Baco e Esculápio, e concedia aos legisladores, como Rômulo e Teseu, apenas a dignidade de semideuses e heróis. Assim como os legisladores e fundadores de Estados devem ser honrados e respeitados pelos homens, assim também devem ser detestados e odiados os fundadores de seitas e facções, pois a influência do espírito de facção é diretamente contrária à das leis. As facções subvertem o governo, tomam impotentes as leis e geram a mais feroz hostilidade entre os cidadãos do mesmo país, os quais devem dar uns aos outros mútua assistência e proteção. E o que deve tomar mais odiosos os fundadores de partidos é a dificuldade de extirpar essas ervas daninhas, depois de terem criado raízes num Estado. Elas se propagam naturalmente durante muitos séculos, e raramente deixam de provocar a completa dissolução do governo em que são semeadas. Além disso, são plantas que crescem com maior pujança nos solos mais ricos, e, embora os governos absolutos delas não estejam inteiramente livres, é forçoso confessar que elas nascem com maior facilidade e se propagam mais rapidamente nos governos livres, onde sempre contaminam o próprio Legislativo, que seria o único capaz, mediante a firme aplicação de recompensas e castigos, de erradicá-las. As facções podem dividir-se em pessoais e reais, isto é, em facções baseadas na amizade pessoal ou na hostilidade entre os membros de partidos opostos, e aquelas que assentam em certas diferenças reais de opinião ou de interesse. É evidente o bem fundado desta distinção, embora deva reconhecer-se que raramente se encontra um partido puro e sem mistura, quer de uma espécie quer de outra. Poucas vezes se vê dividir-se em facções um governo no qual não haja diferença alguma entre as concepções dos indivíduos que o constituem, seja ela real ou aparente, insignificante ou essencial, e naquelas facções que assentam nas diferenças mais reais e essenciais sempre se verifica uma ampla medida de hostilidade ou afeição pessoal. Mas, apesar destas misturas, é possível designar um partido como pessoal ou real, conforme o princípio que predomina e exerce maior influência. As facções pessoais surgem com mais facilidade nas pequenas repúblicas; nestas, até as zangas domésticas se transformam em questões de Estado; o amor, a vaidade ou a emulação, assim como a ambição e o ressentimento, qualquer paixão pode originar a divisão pública. Os Neri e os Bianchi, de Florença, os Fregosi e os Adorni, de Gênova, os Colonesi e os Orsini, da Roma moderna, constituíram partidos deste tipo. Os homens possuem tal propensão para se dividir em facções pessoais, que estas podem surgir da menor aparência de discordância real. Que se pode imaginar de mais insignificante do que a diferença entre a cor usada nas librés e a usada nas corridas de cavalos? Todavia, essa diferença deu origem às duas mais inveteradas facções do império grego, os Prasini e os Beneti, que jamais puseram fim a sua mútua hostilidade, até que arruinaram seu infeliz governo. Encontramos na história romana uma importante dissensão entre duas tribos, Pollia e Papiria, que se prolongou por cerca de trezentos anos, e se manifestava nos votos para todas as eleições de magistrados. Tão intensa era esta rivalidade, que conseguiu manter-se durante aquele grande período de tempo, apesar de não ter alastrado nem ter levado qualquer das outras tribos a participar da contenda. Se os homens não tivessem uma forte tendência para essas divisões, a indiferença do resto da nação certamente eliminaria esta insensata hostilidade, pois ela não poderia ser alimentada por novos benefícios e injúrias, pela geral simpatia e antipatia que nunca deixam de aparecer quando todo o Estado se encontra dilacerado entre duas facções iguais. Nada mais comum do que ver partidos, que tiveram origem numa discordância real, continuarem mesmo depois de desaparecer essa discordância. Uma vez inscritos em partidos opostos, os homens ganham afeição pelas pessoas a que estão unidos e hostilidade contra seus antagonistas, e muitas vezes transmitem estas paixões à posteridade. Já havia muito tempo que desaparecera a diferença real entre os guelfos e os gibelinos, na Itália, antes da extinção destes partidos. Os guelfos aderiram ao papa, e os gibelinos ao imperador; todavia, quando a família Sforza, que apesar de pertencer ao guelfos estava aliada ao imperador, foi expulsa de Milão pelo rei de França, com a ajuda de Jácomo Triulzio e dos gibelinos, o papa colaborou com estes últimos, que fizeram com o papa uma aliança contra o imperador. As guerras civis que irromperam há alguns anos no Marrocos entre os negros e os brancos, apenas por causa da cor de sua pele, tiveram origem em uma divertida diferença. Rimo-nos deles, mas creio que, bem vistas as coisas, nós oferecemos aos mouros muito mais motivo para eles nos ridicularizarem. Pois o que são todas as guerras religiosas que têm predominado nesta parte civilizada e culta do mundo? São sem dúvida mais absurdas do que as guerras civis dos mouros. A diferença da cor da pele é uma diferença bem visível e real, mas a controvérsia em tomo de um artigo de fé totalmente absurdo e ininteligível assenta em uma diferença que não é de opinião, mas de algumas frases e expressões, as quais um dos partidos aceita sem compreender, enquanto o outro as recusa de idêntica maneira. As facções reais podem dividir-se em facções de interesse, de princípio e de afeição. De todas as facções, são as primeiras as mais razoáveis e desculpáveis. Quando duas classes, como por exemplo a nobreza e o povo, possuem autoridade distinta num governo não muito rigorosamente equilibrado e organizado, elas naturalmente defendem interesses distintos; nem poderia razoavelmente esperar-se conduta diferente, tendo em conta o grau de egoísmo implantado na natureza humana. Para conseguir evitar esses partidos, é preciso que o legislador possua grande habilidade, e muitos filósofos são de opinião que este segredo, tal como a panaceia universal ou o moto contínuo, pode divertir os homens em teoria, mas jamais poderá ser aplicado na prática. É certo que nos governos despóticos as facções raramente se manifestam, mas nem por isso são menos reais, ou antes, são mais reais e mais perniciosas devido precisamente a esse motivo. As diversas classes, a nobreza e o povo, os soldados e os comerciantes, têm todas interesses distintos; mas a mais poderosa oprime a mais fraca impunemente e sem encontrar resistência, o que dá a esses governos uma aparência de tranquilidade. Na Inglaterra houve uma tentativa de divisão entre os proprietários e os comerciantes da nação, mas sem êxito. Os interesses desses dois grupos não são realmente distintos, nem jamais o serão, enquanto nossa dívida pública não aumentar a ponto de se tornar totalmente opressiva e intolerável. Os partidos de princípio, sobretudo os que assentam em princípios abstratos e especulativos, só apareceram nos tempos modernos, e são talvez o fenômeno mais extraordinário e inexplicável que jamais surgiu nas questões humanas. Quando princípios diferentes dão origem a comportamentos contrários, como acontece nos diferentes partidos políticos, o problema pode ser explicado mais facilmente. Quando alguém considera que o verdadeiro direito ao governo pertence a um determinado indivíduo ou família, dificilmente poderá concordar com um seu concidadão que pense ser outro indivíduo ou família o detentor desse direito. Cada um deles deseja, naturalmente, que o direito seja respeitado, de acordo com sua própria concepção do direito. Mas quando a diferença de princípio não é acompanhada por ações contrárias, e cada um pode seguir seu caminho sem interferir no do vizinho, como sucede em todas as controvérsias religiosas, qual é a insensatez, qual a fúria capaz de originar tão infelizes e fatais divisões? Dois homens viajando por uma estrada, um para leste e outro para oeste, poderão facilmente passar um pelo outro se o caminho for suficientemente largo; mas dois que discutem sobre princípios religiosos dificilmente poderão passar sem se chocarem, embora se possa pensar que, nesse caso, a estrada também seria bastante larga para que cada um pudesse seguir seu caminho sem interrupção. Mas a natureza do espírito humano é tal, que ele sempre se agarra a todo espírito que dele se aproxima; e, assim como é maravilhosamente fortalecido pela unanimidade de opiniões, assim também é chocado e perturbado por qualquer oposição. Daí a impetuosidade que a maioria dos homens manifesta em qualquer discussão, e daí sua impaciência perante qualquer oposição, mesmo em relação às opiniões mais especulativas e indiferentes. Este princípio, embora possa parecer insignificante, foi provavelmente a origem de todas as guerras e dissensões religiosas. Mas, como é um princípio universal da natureza humana, suas consequências não se teriam limitado a uma época e a uma seita religiosa sem o concurso de outras causas mais acidentais, as quais lhe conferem dimensões capazes de produzir a maior miséria e devastação. As religiões do mundo antigo surgiram, em sua maior parte, nas épocas desconhecidas do governo, quando os homens eram ainda bárbaros e ignorantes, quando tanto o príncipe como o camponês eram capazes de aceitar com uma fé cega qualquer lenda ou ficção religiosa que lhes apresentassem. O magistrado adotava a religião do povo e, interessando-se apaixonadamente pelos assuntos sagrados, naturalmente neles adquiria grande autoridade, e unia o poder eclesiástico ao civil. Mas quando apareceu a religião cristã, numa época em que na parte civilizada do mundo, que desprezava a nação onde surgira essa novidade, estavam já firmemente consolidados princípios a ela frontalmente opostos, não é de admirar que em tais circunstâncias ela haja sido pouco favorecida pelo magistrado civil, e que na nova seita o clero tenha podido monopolizar toda a autoridade. E tão mau uso ele fez desse poder, mesmo naquela época recuada, que talvez as primitivas perseguições possam em parte “Digo em parte porque é um erro muito comum supor que os antigos eram tão favoráveis à tolerância como os ingleses ou holandeses da atualidade. Entre os romanos, as leis contra a superstição externa eram tão antigas como as Doze Tábuas; e tanto os judeus como os cristãos eram às vezes por elas punidos, embora geralmente essas leis não fossem rigorosamente aplicadas. Imediatamente após a conquista da Gália, proibiram que fossem iniciados na religião dos druidas todos os que não fossem naturais do país, o que constituía uma forma de perseguição. Cerca de um século depois da conquista, o Imperador Cláudio eliminou completamente essa superstição através de leis penais, o que teria constituído uma gravíssima perseguição se anteriormente a imitação dos costumes romanos não tivesse já afastado os gauleses de seus antigos preconceitos. Suetônio, in Vila Claudii. Plínio atribui a Tibério a extinção das superstições druídicas, provavelmente devido ao fato de esse imperador ter tomado algumas medidas no sentido de restringi-las (Liv. XXX, cap. I). É mais um exemplo da habitual cautela e moderação dos romanos em tais casos, que é muito diferente de seu método violento e sanguinário de tratar os cristãos. Daí podermos alimentar a suspeita de que essas furiosas perseguições contra o cristianismo foram em certa medida devidas ao imprudente fervor e fanatismo dos primeiros propagadores dessa seita; e a história eclesiástica nos oferece muitas razões que confirmam esta suspeita. (Nota do Autor)” ser atribuídas à violência por ele incutida em seus seguidores. E, como os princípios do governo clerical continuaram sendo os mesmos, depois de o cristianismo ter passado a ser religião oficial, isso deu origem a um espírito de perseguição que a partir de então tem sido o veneno da sociedade humana e fonte das mais inveteradas facções em todos os governos. Portanto essas divisões podem ser, quanto ao povo, justamente consideradas facções de princípio, mas, quanto aos sacerdotes, que são os principais instigadores, elas são na realidade facções de interesse. Outra causa (além da autoridade do clero e da separação entre o poder eclesiástico e o poder civil) contribuiu para fazer do cristianismo um cenário de guerras e dissensões religiosas. As religiões que surgem em épocas totalmente ignorantes e bárbaras consistem sobretudo em lendas e ficções tradicionais, que podem variar conforme as seitas sem que sejam contrárias umas às outras; e mesmo quando elas são contrárias cada um adere à tradição de sua própria seita, sem grandes discussões ou disputas. Mas na época em que o cristianismo surgiu a filosofia estava já amplamente disseminada pelo mundo, e assim os apóstolos da nova seita se viram obrigados a elaborar um sistema de opiniões especulativas, a dividir com certo rigor seus artigos de fé e a explicar, comentar, refutar e defender com toda a sutileza de argumentação e ciência. Daí decorreu naturalmente grande veemência nas discussões, quando a religião cristã veio a cindir-se em novas divisões e heresias; e esta veemência ajudou os sacerdotes em sua política de provocar um mútuo ódio e antipatia entre seus iludidos seguidores. No mundo antigo as seitas filosóficas eram mais fervorosas do que os partidos religiosos, mas nos tempos modernos os partidos religiosos são mais furiosos e enraivecidos do que as mais cruéis facções que jamais tiveram origem no interesse ou na ambição. Mencionei os partidos de afeição como uma das espécies de partidos reais, ao lado dos de interesse e de princípio. Por partidos de afeição entendo aqueles que assentam na dedicação especial dos homens a certas famílias e indivíduos, pelos quais desejam ser governados. É frequente estas facções serem violentas, embora eu deva admitir que parece inexplicável os homens se dedicarem tão intensamente a pessoas que de modo algum conhecem, que talvez nunca tenham visto e das quais nunca receberam nem jamais podem esperar receber favor algum. Todavia, muitas vezes verificamos que isso acontece mesmo com homens que, em outras ocasiões, não dão mostras de grande generosidade de espírito, nem costumam deixar-se facilmente arrastar pela amizade para além de seu interesse pessoal. Temos tendência para considerar muito íntima a relação entre nós e nosso soberano. O esplendor da majestade e do poder confere importância à fortuna mesmo de uma única pessoa; e, se a boa natureza de um homem não lhe der este interesse imaginário, sua má natureza o fará, devido ao rancor e à oposição a pessoas cujas opiniões são diferentes das suas. DOS PARTIDOS DA GRÃ-BRETANHA Alguém que escolhesse o governo britânico como tema de especulação imediatamente veria nele uma fonte de divisões e de partidos que é quase impossível evitar, seja sob que administração for. O justo equilíbrio entre a parte republicana e a parte monárquica de nossa Constituição é efetivamente, em si mesmo, tão excessivamente delicado e incerto, que, quando as paixões e preconceitos dos homens se lhe vêm juntar, é impossível que deixem de surgir opiniões diferentes a seu respeito, mesmo entre as pessoas mais esclarecidas. Os homens de temperamento moderado, que são amantes da paz e da ordem e detestam a sedição e as guerras civis, sempre nutrirão sentimentos mais favoráveis à monarquia do que os homens de espírito ousado e generoso, que são amantes apaixonados da liberdade e para os quais não há mal pior do que a sujeição e a escravidão. E, embora todos os homens sensatos concordem de maneira geral em conservar nosso governo misto, entretanto, quando se discutem pormenores, alguns tendem para conceder à coroa mais poderes, a conferir-lhe maior influência e a precaver-se contra seus abusos com menos cuidado do que outros, que se mostram aterrorizados com as mais remotas tentativas de tirania e poder despótico. A própria natureza de nossa Constituição implica assim a existência de partidos de princípio que podem corretamente receber as designações de Partido da Corte e Partido do Campo. A força e violência de cada um destes partidos dependem grande mente do caráter da administração. É possível que uma administração seja tão má que atire a grande maioria para a oposição; uma boa administração fará que se aliem à corte muitos dos mais apaixonados amantes da liberdade. Por mais que a nação flutue entre esses partidos, porém, eles sempre subsistirão, enquanto formos governados por uma monarquia limitada. Mas, além desta diferença de princípio, aqueles partidos são grandemente fomentados por uma diferença de interesses, sem a qual dificilmente poderiam tomar-se perigosos ou violentos. A coroa naturalmente dará toda confiança e poder àqueles cujos princípios, verdadeiros ou fingidos, são mais favoráveis ao governo monárquico, e esta tentação naturalmente os levará a maiores extremos do que se apenas por seus princípios se guiassem. Seus antagonistas, desapontados em suas ambiciosas aspirações, aderem ao partido cujas opiniões tendem para uma maior desconfiança em relação ao poder real, e naturalmente levam essas opiniões a extremos maiores do que os que uma sã política justificaria. Assim a corte e o campo, autênticos frutos do governo britânico, são uma espécie de partidos mistos, influenciados ao mesmo tempo por princípios e por interesses. Os chefes das facções são geralmente guiados sobretudo pelo último desses motivos, e os membros inferiores pelo primeiro. Quanto aos partidos eclesiásticos, podemos observar que, em todas as épocas do mundo, os padres têm sido inimigos da liberdade, e não resta dúvida que esta sua uniforme conduta sempre assentou em razões permanentes de interesse e ambição. A liberdade de pensar e de exprimir o pensamento é sempre fatal ao poder sacerdotal, assim como às piedosas fraudes em que geralmente assenta; e, devido a uma infalível ligação que se verifica em todas as espécies de liberdade, este privilégio só pode ser gozado, ou pelo menos até agora só foi gozado sob governos livres. Portanto, é inevitável, numa Constituição como a da Grã-Bretanha, e enquanto as coisas permanecerem em sua situação natural, que o clero oficial pertença sempre ao Partido da Corte; ou que, pelo contrário, os dissidentes de toda espécie pertençam ao Partido do Campo, pois só através de nosso governo livre podem esperar conseguir aquela tolerância que necessitam. Todos os príncipes que ambicionaram o poder despótico souberam a importância que tinha ganhar o apoio do clero oficial, assim como o clero, por sua vez, sempre mostrou grande facilidade em aceitar os desígnios desses príncipes. Gustavo Vasa foi talvez o único monarca ambicioso que humilhou õ clero, e ao mesmo tempo impediu a liberdade. Mas o poder exorbitante dos bispos da Suécia, que nessa época ultrapassava o da própria coroa, foi, juntamente com suas ligações com uma família estrangeira, a razão da adoção de um sistema político tão invulgar. Esta observação, relativa à propensão dos padres para o governo de uma só pessoa, não se aplica apenas a uma única seita. O clero presbiteriano e calvinista da Holanda era declaradamente favorável à família de Orange, tal como os arminianos, que eram considerados hereges, eram favoráveis à facção Louvestein, e muito ciosos da liberdade. Mas, no caso de um príncipe poder escolher entre ambos, facilmente se compreende que ele preferirá a forma episcopal de governo à forma presbiteriana, tanto por causa da maior afinidade entre a monarquia e o episcopado como, conforme veremos, devido à facilidade que há nesse tipo de governo em dirigir o clero, através de seus superiores eclesiásticos. Se examinarmos o nascimento dos partidos na Inglaterra, durante a grande rebelião, poderemos observar que ele decorreu em conformidade com esta teoria geral, e que foi a forma de governo de então que os fez surgir, por uma influência regular e infalível. Antes dessa época, a Constituição inglesa se encontrava numa espécie de confusão, mas, apesar disso, de maneira a permitir que os súditos possuíssem muitos privilégios, os quais, embora não fossem rigorosamente definidos e garantidos pela lei, eram universalmente considerados, devido à longa duração da posse, como a eles pertencentes por direito de nascimento. Surgiu um príncipe ambicioso, ou melhor, mal orientado, que considerou todos esses privilégios como concessões de seus antecessores, as quais podia livremente revogar; e, de acordo com este princípio, durante vários anos agiu em flagrante violação da liberdade. Por fim, a necessidade o obrigou a convocar o Parlamento; o espírito da liberdade surgiu e se propagou; o príncipe, privado de todo e qualquer apoio, se viu obrigado a conceder tudo quanto lhe foi exigido; e seus inimigos, ciosos e implacáveis, não punham limites a suas pretensões. Começaram então aquelas contendas, nas quais não é de admirar que os homens desse tempo se tenham dividido entre vários partidos, pois mesmo atualmente o observador imparcial não é capaz de decidir quanto à justiça da disputa. Se as pretensões do Parlamento fossem aceitas, o equilíbrio da Constituição seria rompido, tornando o governo quase inteiramente republicano. Se não fossem aceitas, a nação continuaria talvez em perigo de ficar submetida a um poder absoluto, devido aos princípios estabelecidos e aos hábitos inveterados do rei, os quais se haviam claramente manifestado em todas as concessões que ele se vira obrigado a fazer a seu povo. Nessa ocasião tão delicada e incerta, os homens tenderam naturalmente para o lado que melhor se harmonizava com seus princípios habituais, declarando-se a favor do rei os mais apaixonados partidários da monarquia, e apoiando o Parlamento os mais zelosos defensores da liberdade. Como ambos os lados tinham aproximadamente as mesmas possibilidades de êxito, o interesse não exerceu grande influência na disputa, e assim os cabeças redondas e os cavaleiros foram simplesmente partidos de princípio, sem que nenhum deles repudiasse quer a monarquia quer a liberdade; mas o primeiro partido tendia mais para a parte republicana de nosso governo, e o segundo mais para a monárquica. Quanto a esse aspecto, podem ser considerados como os partidos da corte e do campo, levados a uma guerra civil por um infeliz concurso de circunstâncias e pelo espírito turbulento da época. Os republicanos e os partidários do poder absoluto estavam ocultos em ambos os partidos, constituindo apenas uma ínfima parte de cada um deles. O clero havia dado apoio aos arbitrários desígnios do rei, e em troca foi autorizado a perseguir seus adversários, aos quais chamava heréticos e cismáticos. O clero oficial era episcopal e o inconformista era presbiteriano, de modo que tudo contribuiu para lançar o primeiro, sem reservas, no partido do rei, e o último no do Parlamento. Todos conhecem o desenlace dessa contenda; foi fatal ao rei, em primeiro lugar, e mais tarde ao Parlamento. Depois de muitas perturbações e revoluções, a família real acabou finalmente por ser recolocada no trono, sendo estabelecido o antigo governo. O exemplo de seu pai não levou Carlos II a ser mais sensato: tomou as mesmas medidas, embora ao princípio de modo mais velado e cuidadoso. Surgiram novos partidos, com as designações de whig e tory, que desde então não mais deixaram de confundir e perturbar nosso governo. A determinação da natureza desses partidos é talvez um dos problemas mais difíceis que se podem encontrar, e constitui uma prova de que pode haver na história questões tão incertas como as que se encontram nas mais abstratas ciências. Observamos a conduta dos dois partidos, no decurso de setenta anos, numa ampla variedade de circunstâncias, senhores do poder e privados dele, durante a paz e durante a guerra; a todo momento encontramos pessoas que declaram pertencer a um ou outro lado, na sociedade, em nossos prazeres, em nossas ocupações sérias; nós próprios somos obrigados a de certo modo tomar partido; e, vivendo num país onde se goza da mais ampla liberdade, qualquer um pode declarar abertamente todos os seus sentimentos e opiniões; e apesar de tudo isto não somos capazes de dizer qual a natureza, quais as pretensões e os princípios das diferentes facções. Numa comparação dos partidos whig e tory com os dos cabeças redondas e cavaleiros, a diferença mais evidente que se nota entre eles reside nos princípios de obediência passiva e de direito irrevogável, dos quais poucas vezes se falava entre os cavaleiros, mas que se tornaram a doutrina universal e foram considerados como a verdadeira característica dos tories. Esses princípios, levados a suas mais óbvias consequências, implicam uma renúncia formal a todas as nossas liberdades e a defesa da monarquia absoluta, pois não pode haver coisa mais absurda que um poder limitado ao qual não se deve-resistir, mesmo quando ultrapassar seus limites. Mas como geralmente os mais racionais princípios constituem um contrapeso bem fraco para a paixão, não é de admirar ter-se verificado que esses absurdos princípios eram demasiado fracos para tal efeito. Como homens, os tories eram inimigos da opressão; e como ingleses eram inimigos do poder arbitrário. Seu amor à liberdade era talvez menos ardente que o de seus adversários, mas foi suficiente para fazê-las esquecer seus princípios gerais, quando se viram abertamente ameaçados pela subversão do antigo governo. Foram estes sentimentos que deram origem à revolução; um acontecimento de grande importância que foi o mais sólido fundamento da liberdade britânica. O exame do comportamento dos tories durante esse acontecimento e depois dele nos oferece uma visão clara da natureza desse partido. Em primeiro lugar, vemos que eles manifestaram sentimentos de autênticos ingleses em sua dedicação à liberdade e em sua firme resolução de não sacrificá-la a qualquer princípio abstrato ou a qualquer imaginário direito dos príncipes. Antes da revolução havia motivo para duvidar deste aspecto de seu caráter, devido às evidentes tendências dos princípios que defendiam sua cumplicidade com a corte, a qual parecia não fazer segredo de seus arbitrários desígnios. A revolução veio mostrar que, quanto a este aspecto, eles nada mais foram que um autêntico Partido da Corte, como seria de esperar num governo britânico: isto é, amantes da liberdade, mas ainda mais amantes da monarquia. Deve todavia confessar-se que eles levaram seus princípios monárquicos, também na prática mas sobretudo em teoria, mais longe do que aquilo que, fosse em que medida fosse, se poderia admitir num governo limitado. Em segundo lugar, nenhum de seus princípios ou inclinações contribuiu, completa ou decididamente. para o regime imposto pela revolução, ou para o que desde então tem vigorado. Este aspecto de seu caráter pode parecer oposto ao primeiro, pois qualquer outro regime, na situação em que o país se encontrava, provavelmente teria sido perigoso, ou mesmo fatal, para a liberdade. Mas é próprio do coração do homem conciliar as contradições, e esta contradição não é maior que a que existe entre a obediência passiva e a resistência empregada na revolução. Portanto, um tory pode ser definido em poucas palavras, desde a revolução, como um amante da monarquia, embora sem renunciar à liberdade; e um partidário da família Stuart. Tal como um whig pode ser definido como um amante da liberdade, embora sem renunciar à monarquia, e um partidário da consolidação da linha protestante. Estas diferentes opiniões a respeito da sucessão foram resultados acidentais mas naturais dos princípios dos partidos da Corte e do Campo, que são as autênticas divisões do governo britânico. É natural que a um amante apaixonado da monarquia desagrade toda e qualquer mudança na sucessão, por ter demasiado sabor a república; e é natural que um amante apaixonado da liberdade seja de opinião que todas as partes do governo devem estar subordinadas aos interesses da liberdade. Algumas pessoas que não chegam a afirmar que a verdadeira diferença entre os whigs e os tories desapareceu com a revolução parecem ter tendência para pensar que agora essa diferença foi anulada, e que a situação a tal ponto voltou a seu estado natural, que atualmente os únicos partidos que há entre nós são os da Corte e do Campo: isto é, homens que, por interesse ou por princípio, são partidários da monarquia ou da liberdade. Os tories foram durante tanto tempo obrigados a falar em estilo republicano, que parecem ter-se convertido a si mesmos com sua hipocrisia e ter adotado as opiniões, assim como a linguagem, de seus adversários. Há contudo na Inglaterra importantes remanescentes desse partido, com todos os seus velhos preconceitos; e uma prova de que a Corte e o Campo não são nossos únicos partidos é que quase todos os dissidentes estão do lado da corte, ao passo que o baixo clero, pelo menos, da igreja da Inglaterra, está ao lado da oposição. Isto é de molde a convencer-nos de que paira ainda sobre nossa Constituição certa tendência, certo peso extrínseco, que a desvia de seu curso natural e lança a confusão em nossos partidos. DA COALIZÃO DOS PARTIDOS Num governo livre talvez não seja possível, e nem sequer desejável, a abolição de todas as distinções de partido. Só são perigosos os partidos que defendem pontos de vista opostos a respeito dos aspectos essenciais do governo, a sucessão ao trono ou os privilégios mais importantes dos diversos membros da Constituição, relativamente aos quais não há lugar para qualquer compromisso ou acordo; a controvérsia pode, até, assumir caráter tão grave, que chegue a parecer justificar uma oposição armada às pretensões dos adversários. A animosidade que se verificou durante mais de um século entre os partidos ingleses teve esse caráter; por vezes redundou em guerra civil, deu origem a violentas revoluções e manteve permanentemente em perigo a paz e a tranquilidade da nação. Mas, dado que ultimamente se têm manifestado os mais fortes sintomas de um desejo universal de abolir essas distinções de partido, esta tendência para a coalizão abre as mais agradáveis perspectivas de felicidade futura, e deve ser cuidadosamente acalentada e promovida por todos os que amam seu país. O método mais eficaz de contribuir para esse tão desejável objetivo é evitar toda e qualquer injúria ou excessiva preponderância de um partido sobre outro, encorajar as opiniões moderadas, encontrar um justo meio termo em todas as disputas, persuadir cada um de que seu antagonista poderá algumas vezes ter razão, e manter certo equilíbrio nas censuras e louvores que dirigimos a ambos os lados. Os dois ensaios precedentes, a respeito do contrato social e da obediência passiva, foram calculados para atingir este fim relativamente às controvérsias filosóficas e práticas entre os partidos, e pretendem mostrar que quanto a esses assuntos nenhum dos lados tem tanta razão como se esforça por provar. Procuraremos manter a mesma moderação a respeito das disputas históricas entre os partidos, demonstrando que cada um deles tinha a seu favor argumentos plausíveis; que em ambos os lados havia homens sagazes, que pretendiam o bem de seu país; e que as animosidades que no passado se verificaram entre as facções tinham como único fundamento a estreiteza dos preconceitos ou a paixão do interesse. O partido popular, que mais tarde recebeu o nome de whig, poderia mediante especiosos argumentos justificar aquela oposição à coroa que esteve na origem de nossa atual Constituição livre. Embora se visse obrigado a reconhecer que se haviam uniformemente verificado precedentes em favor da prerrogativa durante muitos reinados anteriores ao de Carlos I, considerou não haver razão para continuar se submetendo a uma autoridade tão perigosa. Sua argumentação poderia ter sido a seguinte. Como os direitos da humanidade devem ser considerados eternamente sagrados, nenhuma decisão de tirania ou do poder arbitrário pode ter autoridade suficiente para aboli-los. A liberdade é uma bênção tão inestimável, que, sempre que surgir qualquer possibilidade de recuperá-la, a nação não deve hesitar em correr grandes riscos, sem se lamentar sequer com uma grande efusão de sangue ou dissipação do tesouro. Todas as instituições humanas, e o governo mais do que qualquer outra, estão em permanente transformação; os reis nunca deixam de aproveitar todas as oportunidades para aumentar suas prerrogativas e, se as circunstâncias favoráveis não forem também aproveitadas para aumentar e garantir os privilégios do povo, a humanidade estará para sempre condenada a um despotismo universal. O exemplo de todas as nações vizinhas prova que já não é seguro confiar à coroa as mesmas prerrogativas que ela anteriormente exercera, em épocas mais rudes e simples. E, embora se possa invocar o exemplo de muitos dos últimos reinados em favor de um poder real de certo modo arbitrário, há reinados mais antigos que oferecem exemplos de imposição à coroa de limitações mais rigorosas; e essas pretensões do Parlamento a que agora se chama inovações não são mais do que um restabelecimento dos justos direitos do povo. Longe de serem odiosas, estas concepções são indubitavelmente generosas e nobres; ao sucesso e preponderância delas deve o reino sua liberdade, e talvez seu saber, indústria, comércio e poder naval; é sobretudo graças a elas que a Inglaterra se distingue na sociedade das nações e pode pretender rivalizar com as mais livres e ilustres repúblicas da antiguidade. Todavia, como todas estas importantes consequências não poderiam razoavelmente ter sido previstas na época em que teve início a contenda, não faltavam aos realistas desse tempo argumentos especiosos em seu favor, mediante os quais pudessem justificar sua defesa das então estabelecidas prerrogativas do príncipe. Procuraremos expor o problema tal como a ele poderia ter-se colocado quando da reunião daquele Parlamento que, com sua violenta usurpação do poder real, deu origem à guerra civil. A única regra de governo, poderiam eles ter dito, que os homens conhecem e reconhecem, é o costume e a prática. A razão é um guia tão incerto, que sempre estará sujeita a dúvidas e controvérsias. Se alguma vez ela se tornasse predominante entre o povo, os homens sempre a teriam tomado como sua única regra de conduta; mesmo assim teriam continuado no primitivo e isolado estado de natureza, sem se submeterem ao governo civil, cuja base única é a autoridade e o precedente e não a pura razão. Desfazer esses laços seria romper todos os vínculos da sociedade civil, deixando todos com a liberdade de seguir seus interesses particulares, através dos expedientes que lhes forem ditados por seu apetite, disfarçado sob a aparência da razão. O próprio espírito de inovação é em si pernicioso, por mais favorável que por vezes possa parecer sua finalidade particular; verdade esta tão evidente, que o próprio partido popular dela tem consciência, disfarçando sua usurpação do poder real sob o plausível pretexto de recuperar as antigas liberdades do povo. Mas as atuais prerrogativas da coroa, mesmo que aceitemos todas as superstições daquele partido, foram incontestavelmente estabelecidas desde a subida ao trono da casa Tudor; período este que, abrangendo atualmente cento e sessenta anos, pode ser considerado suficiente para dar estabilidade a qualquer Constituição. No reinado do Imperador Adriano não teria sido ridículo falar da Constituição republicana como regra de governo? Ou supor que os antigos direitos do senado, dos cônsules e dos tribunos ainda tinham validade? Mas as atuais exigências dos monarcas ingleses são muito mais aceitáveis do que as dos imperadores romanos dessa época. A autoridade de Augusto era uma clara usurpação, baseada apenas na violência militar, e constitui na história de Roma uma época cujo caráter é evidente para qualquer leitor. Mas Henrique VII, se efetivamente, como alguns pretendem, ampliou o poder da coroa, fê-lo apenas por insensíveis aquisições de que o povo não deu conta, e mal foram notadas até pelos historiadores e pelos políticos. O novo governo, se acaso merece esta designação, é uma imperceptível transição a partir do primeiro; foi totalmente enxertado neste; seu título deriva inteiramente dessa raiz; e deve ser considerado apenas uma dessas revoluções graduais a que os negócios humanos sempre em qualquer nação estarão sujeitos. A casa Tudor, e depois dela a casa Stuart, exerceu apenas as prerrogativas que já haviam sido proclamadas e exerci das pelos Plantagenetas. De aspecto algum de sua autoridade se pode dizer que tenha sido uma inovação. A única diferença é talvez que os antigos reis só exerciam esses poderes espaçadamente, não podendo, devido à oposição de seus barões, transformá-los em regra fixa da administração. Mas a única conclusão que se pode tirar desse fato é que esses tempos recuados eram mais turbulentos e sediciosos, e que mais tarde, felizmente, a autoridade real, a Constituição e as leis passaram a ser predominantes. Sob que pretexto vem agora o partido popular falar em recuperar a antiga Constituição? O primitivo controle sobre os reis não competia aos comuns e sim aos barões; o povo não tinha autoridade alguma, e tinha até pouca ou nenhuma liberdade, até ao momento em que a coroa, suprimindo esses facciosos tiranos, impôs a aplicação das leis e obrigou todos os súditos a respeitarem os direitos, privilégios e propriedades uns dos outros. Se devemos voltar à bárbara e feudal antiga Constituição, que os primeiros a dar o exemplo sejam esses cavalheiros que atualmente se comportam com tamanha insolência para com seu soberano. Que eles façam a corte a um barão vizinho para que ele os aceite como seus vassalos e que, sujeitando-se a essa escravidão, adquiram certa proteção pessoal, juntamente com o poder de exercer a rapina e a opressão sobre os escravos e vilãos que são seus inferiores. Era esta a condição dos comuns, no tempo de seus antepassados mais remotos. Mas até quando deveremos remontar, no recurso às antigas constituições e governos? Houve uma Constituição ainda mais antiga que aquela que esses inovadores tanto fingem invocar. Nessa época não havia Magna Carta; mesmo os barões poucos privilégios regularmente estabelecidos possuíam; e a Câmara dos Comuns provavelmente não tinha existência. É ridículo ouvir os comuns, ao mesmo tempo que por usurpação assumam todo o poder do governo, falarem do restabelecimento das antigas instituições. Acaso não se sabe que, embora os representantes recebessem pagamento de seus constituintes, ser membro da Câmara Baixa era sempre considerado um fardo, e a isenção desse cargo um privilégio? Poderão eles persuadir-nos de que o poder, que é a mais cobiçada de todas as aquisições humanas, comparados com a qual mesmo a reputação, o prazer e a riqueza são menos prezados, poderia jamais ser considerado um fardo por qualquer homem? As propriedades nos últimos tempos adquiridas pelos comuns, diz-se, lhes dão direito a mais poder do que seus antepassados desfrutavam. Mas a que se deve esse aumento de suas propriedades, senão a um aumento de sua liberdade e de sua segurança? Devem reconhecer que seus antepassados, no tempo em que o poder da coroa era limitado pelos barões sediciosos, efetivamente gozavam de menos liberdade do que a que eles próprios alcançaram depois que o soberano passou a dominar; devem gozar essa liberdade com moderação, sem perdê-la por causa de novas e exorbitantes exigências e de transformarem-na em pretexto para infindáveis inovações. A verdadeira regra de governo é a prática estabelecida em cada época. É a que tem mais autoridade, por ser recente; é também a mais conhecida, pela mesma razão. Quem deu tanta certeza a esses tribunos de que os Plantagenetas não praticaram atos de tão alta autoridade como os Tudors? Dizem eles que os historiadores não lhes fazem referência; mas os historiadores observam idêntico silêncio relativamente aos principais casos em que os Tudors exercem a prerrogativa. Sempre que qualquer poder ou prerrogativa está plena e indubitavelmente estabelecido, seu exercício é considerado coisa natural, e facilmente escapa à atenção da história e dos anais. Se não tivéssemos outros monumentos do reinado de Isabel senão às que foram conservados por Camden, embora este seja o mais copioso, judicioso e exato de nossos historiadores, ignoraríamos totalmente as máximas mais importantes de seu governo. Acaso não foi o atual governo monárquico, em todos os seus aspectos, autorizado pelos legisladores, recomendado pelos sacerdotes, reconhecido pelos políticos, aceito, ou melhor, apaixonadamente amado pelo povo em geral, tudo isto durante um período de pelo menos cento e sessenta anos, e até a pouco sem que se ouvisse o menor murmúrio de controvérsia? Com certeza esta aceitação geral, durante tanto tempo, deve ser suficiente para tornar válida e legítima qualquer Constituição. Se, como se pretende, é no povo que todo poder tem sua origem, aqui temos seu consentimento, nos termos mais plenos e amplos que se pode desejar ou imaginar. Mas o fato de ser seu consentimento que dá fundamento ao governo não deve levar o povo a pretender que graças a isso tem o direito de derrubá-lo e subvertê-lo a seu bel-prazer. Essas exigências sediciosas e arrogantes nunca têm fim: o poder da coroa passa a ser abertamente atacado; a nobreza se encontra também evidentemente em perigo; depressa se lhe seguirá a pequena nobreza; depois serão os líderes populares, que passarão a constituir a pequena nobreza, que ficarão expostos ao perigo; e o próprio povo, tendo-se tornado incapaz de governo civil, não sendo mais contido por autoridade alguma, se verá obrigado a aceitar, para bem da paz, em vez de seus monarcas legítimos e moderados, uma série de tiranos militares e despóticos. Estas consequências são tanto mais de recear quanto o atual furor popular, embora seja acobertado por pretensões de liberdade civil, é na realidade incitado pelo fanatismo da religião; que é o princípio mais cego, mais violento e ingovernável de quantos podem influenciar a natureza humana. A violência popular é sempre temível, seja qual for o motivo de onde deriva; mas dela forçosamente resultarão as mais funestas consequências, sempre que tiver origem em um princípio que se furta a qualquer controle pela lei, pela razão ou pela autoridade dos homens. São estes os argumentos com que cada um dos partidos poderia justificar a conduta de seus predecessores durante aquela grande crise. Esse acontecimento, se acaso pode ser aceito como uma razão mostrou que os argumentos do partido popular tinham melhor fundamento; mas antes disso, de acordo com as máximas estabeleci das dos legisladores e dos políticos, talvez as concepções dos realistas tenham parecido mais sólidas, mais seguras e mais legítimas. Mas não há dúvida que, quanto maior for a moderação com que agora nos dedicarmos a representar os acontecimentos do passado, mais perto estaremos de conseguir uma plena coalizão dos partidos e uma completa aceitação de nosso atual regime. Qualquer regime tem tudo a ganhar com a moderação; só o facciosismo é capaz de derrubar um poder estabelecido; e um facciosismo exagerado por parte dos amigos pode fazer surgir entre os antagonistas idêntico espírito. A passagem de uma oposição moderada ao regime a sua completa aceitação faz-se de maneira fácil e insensível. Há inúmeros argumentos inatacáveis que deveriam convencer o partido dos descontentes a concordar inteiramente com o estado atual da Constituição. Descobrem eles agora que o espírito da liberdade civil, embora ao princípio estivesse ligado ao fanatismo religioso, soube limpar-se dessa contaminação e surgir com um novo aspecto, mais autêntico e atraente; amigo da tolerância e favorável a todos os sentimentos generosos que fazem honra à natureza humana. Podem observar que as exigências populares souberam deter-se dentro de limites adequados e, depois de restringir as excessivas exigências da prerrogativa, souberam apesar disso conservar o devido respeito pela monarquia, a nobreza e todas as antigas instituições. Devem acima de tudo ter consciência de que o próprio princípio que fazia a força de seu partido, e do qual este tirava sua principal autoridade, agora o abandonou e se passou para seus antagonistas. O plano da liberdade está estabelecido; seus bons efeitos foram verificados pela experiência; ganhou estabilidade com o longo período de tempo que atravessou; e quem quer que tentasse derrubá-lo, para voltar ao governo anterior ou à família deposta, ficaria por sua vez exposto, além de outras acusações mais graves, a ser acusado de facciosismo e espírito de inovação. Devia pensar, quando pesquisa a história dos acontecimentos do passado, que esses direitos da coroa já de há muito desapareceram, e também que a tirania, a violência e a opressão a que muitas vezes deram origem são males contra os quais felizmente a liberdade garantida pela Constituição agora finalmente protege o povo. Estas reflexões constituem, para a defesa de nossa liberdade e privilégios, melhor garantia do que negar, contra a mais clara evidência dos fatos, que esses poderes reais jamais tenham existido. Não há maneira mais eficaz de trair uma causa do que acentuar um argumento no ponto errado e, defendendo uma posição insustentável, permitir que o adversário alcance o sucesso e a vitória. DA SUPERSTIÇÃO E DO ENTUSIASMO Que a corrupção das melhores coisas produz as piores é uma máxima que se tornou corrente, e que é fácil provar através, entre outros exemplos, dos perniciosos efeitos da superstição e do entusiasmo, formas corruptas da verdadeira religião. Estas duas espécies de falsa religião, embora sejam ambas perniciosas, são todavia muito diferentes, e até de natureza contrária. O espírito humano está sujeito a certos temores e apreensões incompreensíveis, que podem derivar da situação infeliz dos negócios particulares ou públicos, da falta de saúde, de um temperamento sombrio e melancólico, ou do concurso de todas essas circunstâncias. Esse estado de espírito leva a recear uma infinidade de males desconhecidos, atribuídos a agentes desconhecidos, e, quando faltam reais objetos de terror, a alma, movida por seus preconceitos e tendências predominantes, inventa objetos imaginários, aos quais atribui um poder e uma malevolência sem limites. Como esses inimigos são completamente invisíveis e desconhecidos, os métodos usados para aplacá-los são igualmente incompreensíveis, consistindo em cerimônias, proibições, mortificações, sacrifícios, oferendas e toda espécie de práticas, por mais absurdas ou frívolas que sejam capazes de serem aconselhadas pela loucura ou pela patifaria a uma cega e atemorizada credulidade. A fraqueza, o medo, a melancolia, juntamente com a ignorância, são, portanto, a verdadeira fonte da Superstição. Mas o espírito do homem é também sujeito a uma incompreensível exaltação e presunção, derivada do sucesso e da prosperidade, da abundância de saúde, da robustez do temperamento ou de um caráter ousado e confiante. Nesse estado de espírito, a imaginação fica cheia de concepções grandiosas mas confusas, às quais nenhuma beleza ou prazer sublunar pode corresponder. Tudo o que é mortal e perecível se desvanece, como se não merecesse a menor atenção. E a imaginação age sem freio nas invisíveis regiões do mundo dos espíritos, onde a alma tem a liberdade de dar largas às fantasias que melhor calharem a seu gosto e disposição do momento. Daí deriva uma série de arrebatamentos, de transportes e de surpreendentes voos da fantasia, sendo tais arrebatamentos ainda mais aumentados, pela confiança e presunção, devido a serem inteiramente incompreensíveis, e por parecerem estar muito além do alcance de nossas faculdades normais, sendo atribuídos à inspiração imediata daquele Ser Divino que é objeto de devoção. Dentro de pouco tempo, a pessoa inspirada passa a considerar-se distinguida pelo favoritismo da Divindade e, uma vez consumado esse frenesi que é o apogeu do entusiasmo, passa-se a consagrar toda espécie de capricho. A razão humana, e mesmo a moral, são rejeitadas como guias falaciosos, e o enlouquecido fanático se entrega, cegamente e sem reservas, às supostas inspirações do espírito e à iluminação pelo além. A esperança, o orgulho, a presunção, uma cálida imaginação, juntamente com a ignorância, são, portanto, a verdadeira fonte do Entusiasmo. Estas duas espécies de falsa religião podem dar ocasião a muitas especulações, mas de momento vou limitar-me a algumas reflexões sobre a diversidade de sua influência no governo e na sociedade. Minha primeira reflexão é a seguinte: Que a superstição é favorável ao poder sacerdotal, e que o entusiasmo não lhe é menos contrário, ou antes, o é mais ainda do que a sã razão e filosofia. Como a superstição assenta no medo, na tristeza e na depressão do espírito, ela representa o homem a si mesmo em cores tão desprezíveis, que ele aparece a seus próprios olhos como indigno de se aproximar da divina presença, e naturalmente recorre a qualquer outra pessoa, a santidade de cuja vida, ou talvez cuja impudência e astúcia, fizeram ser considerada como mais favorecida pela Divindade. É a ele que a pessoa supersticiosa confia suas devoções, é a seu cuidado que ela deixa suas orações, petições e sacrifícios, esperando que por este meio seus apelos sejam ouvidos por sua incensada Divindade. É aqui que têm origem os padres, que podem justamente ser considerados como a invenção de uma timorata e abjeta superstição, que nunca confia em si mesma e não ousa oferecer suas próprias devoções, e ignorantemente julga recomendar-se à Divindade através da mediação de seus supostos servos e amigos. Dado que a superstição é um ingrediente de importância considerável em quase todas as religiões, mesmo as mais fanáticas, sendo a filosofia a única capaz de subjugar inteiramente esses terrores incompreensíveis, temos como consequência que em quase todas as seitas religiosas se verifica a presença de padres. E, quanto maior for a mistura de superstição, mais alta será a autoridade do sacerdócio. Por outro lado, verifica-se que todos os entusiastas têm sido livres do jugo dos eclesiásticos, e sempre exprimiram a maior independência em sua devoção, desprezando os rituais, as cerimônias e as tradições. Os quacres são os mais egrégios, embora ao mesmo tempo os mais inocentes entusiastas que jamais se conheceram, e são talvez a única seita que nunca permitiu a existência de padres. Os independentes são, dentre todos os sectários ingleses, os que mais se aproximam dos quacres em fanatismo e em independência do domínio sacerdotal. Os presbiterianos vêm logo em seguida, a igual distância quanto a ambos os aspectos. Em resumo, esta observação assenta na experiência, e pode também assentar na razão, se pensarmos que o entusiasmo, dado que deriva de um presunçoso orgulho e confiança, se considera suficientemente qualificado para aproximar-se da Divindade sem qualquer mediador humano. Suas arrebatadas devoções são tão fervorosas, que ele chega a imaginar que efetivamente se aproxima dela através da contemplação e do discurso interior, o que o leva a pôr de lado todos aqueles rituais e cerimônias exteriores para os quais o auxílio dos padres parece tão indispensável aos olhos de seus supersticiosos seguidores. O fanático se consagra a si mesmo, e atribui a sua própria pessoa um caráter sagrado muito superior ao que os rituais e as instituições cerimoniais podem conferir a qualquer outra. Minha segunda reflexão a respeito destas espécies de falsa religião é que as religiões que partilham do entusiasmo são, no momento em que surgem, muito mais violentas e furiosas do que as que partilham da superstição, mas dentro de pouco tempo tornam-se mais suaves e moderadas. A violência desta espécie de religião, quando é excitada pela novidade e animada pela oposição que encontra, pode verificar-se em numerosos exemplos: os anabatistas na Alemanha, os camisards na França, os niveladores e outros fanáticos na Inglaterra e os covenanters na Escócia. Como o entusiasmo assenta na vivacidade de espírito e numa presunçosa ousadia de caráter, leva naturalmente às decisões mais extremas, sobretudo quando atinge aquele ponto em que inspira ao iludido fanático a convicção de que recebe iluminações divinas, e o maior desprezo pelas regras estabelecidas da razão, da moral e da prudência. É assim que o entusiasmo produz as mais cruéis desordens na sociedade. Mas sua fúria é como a das tempestades e trovoadas, e extingue-se em pouco tempo, deixando a atmosfera mais calma e serena do que estava antes. Depois que se gasta a primeira chama do entusiasmo, em todas as seitas fanáticas, os homens naturalmente caem no maior desleixo e na maior frieza em questões sagradas, pois não existe entre eles nenhum grupo organizado, dotado de suficiente autoridade, cujo interesse seja a manutenção do espírito religioso. Não há rituais, nem cerimônias, nem proibições sagradas que possam passar a fazer parte da vida cotidiana, evitando que os sagrados princípios caiam no esquecimento. Pelo contrário, a superstição vai-se insinuando de maneira gradual e insensível, tornando mansos e submissos os homens, e é facilmente aceita pelo magistrado, pois parece inofensiva para o povo. Até que finalmente o padre, depois de ver firmemente estabelecida sua autoridade, se transforma num tirano e perturbador da sociedade humana, por meio de suas intermináveis discussões, perseguições e guerras religiosas. Não foi tão suavemente que a Igreja Católica romana foi avançando em sua conquista do poder? E em que lúgubres convulsões não lançou ela a Europa, a fim de conservar esse poder? Por outro lado nossos sectários, que dantes eram uns beatos extremamente perigosos, transformaram-se agora em pensadores extremamente livres, e os quacres parecem estar-se quase identificando ao único grupo de deístas que há no universo, os literati, os discípulos de Confúcio na China. Minha terceira observação a este respeito é que a superstição é inimiga da liberdade civil, e o entusiasmo é seu aliado. Como a superstição geme sob o jugo dos padres, e o entusiasmo tende a destruir todo poder eclesiástico, está suficientemente explicada a presente observação. Para não referir que o entusiasmo, como é a enfermidade própria dos temperamentos ambiciosos e ousados, é naturalmente acompanhado pelo espírito de liberdade, ao passo que a superstição, pelo contrário, torna mansos e abjetos os homens, preparando-os para a escravidão. A história da Inglaterra nos ensina que, durante as guerras civis, os independentes e os deistas, embora houvesse entre eles uma oposição extrema quanto aos princípios religiosos, apesar disso eram unidos em seus princípios políticos, e eram igualmente apaixonados pela república. E desde a origem dos whigs e dos tories os dirigentes dos whigs têm sido sempre ou deístas ou latitudinários confessos em seus princípios, ou seja, partidários da tolerância e indiferentes a toda e qualquer seita particular de cristãos. Ao mesmo tempo, os sectários, que apresentam sempre uma forte dose de entusiasmo, colaboraram sempre e sem exceção com aquele partido em defesa da liberdade civil. A semelhança de suas superstições manteve durante muito tempo unidos os tories do alto clero e os católicos romanos, em defesa do direito de prerrogativa e do poder real, embora a experiência do espírito tolerante dos whigs pareça ultimamente haver reconciliado os católicos com aquele partido. Há entre os molinistas e os jansenistas da França mil e uma disputas ininteligíveis, que não são merecedoras da reflexão das pessoas inteligentes. Mas o aspecto que sobretudo distingue essas duas seitas e o único que merece atenção, é a diferença no espírito de sua religião. Os molinistas, orientados pelos jesuítas, são extremamente dedicados à superstição, rígidos observadores dos rituais e cerimônias exteriores, e altamente devotados à autoridade dos padres e à tradição. Os jansenistas são entusiastas e zelosos promotores de uma apaixonada devoção e da vida interior, sendo pouco influenciados pela autoridade, e, numa só palavra, são só meio católicos. As consequências são exatamente conformes ao raciocínio precedente. Os jesuítas são os tiranos do povo e os escravos da corte, ao passo que os jansenistas conservam vivas as pequenas centelhas de amor à liberdade que é possível encontrar na nação francesa. DA ORIGEM E PROGRESSO DAS ARTES E CIÊNCIAS Nada requer maior precisão, nas investigações dos assuntos humanos, do que distinguir exatamente o que é devido à sorte e aquilo que provém de causas; tampouco haverá assunto no qual um autor esteja mais exposto a enganar-se com falsas sutilezas e refinamentos. Dizer que um evento deriva da sorte corta caminho a qualquer investigação mais remota a seu respeito e deixa-o no mesmo estado de ignorância do resto da humanidade. Mas quando o evento, calcula-se, deriva de causas certas e estáveis, pode o escritor então exibir a sua inteira ingenuidade atribuindo-lhe essas causas; e, como um homem de alguma sutileza, que nunca está perdido no tema, aproveita então a oportunidade que lhe é ensejada para folhear os seus livros e mostrar toda a extensão do seu saber, observando aquilo que escapa ao homem vulgar e ignorante. Separar aquilo que pertence ao acaso daquilo que é causalidade dependerá em cada caso particular da sagacidade de cada um. Mas se eu tivesse que expor uma norma geral para auxiliamos a aplicar a distinção entre acaso e causalidade, seria a seguinte: Aquilo que dependa de poucas pessoas é, em grande medida, devido ao acaso, ao segredo ou a causas desconhecidas; aquilo que surja de um grande número pode, por via de regra, ser analisado através de causas determinadas e conhecidas. Podem-se dar duas razões naturais para tal regra. Primeira, se se supuser que uma balança tem uma inclinação, se bem que pequena, para um lado particular, tal inclinação, embora não transpareça nas primeiras oscilações e tentativas, acabará prevalecendo e fará pender a balança inteiramente para aquele lado. Do mesmo modo, quando algumas causas propiciam uma inclinação particular ou determinada paixão, em determinado tempo e entre certo povo, embora saibamos que um grande número de pessoas lhe pode escapar e ser dominado por paixões pessoais, contudo, é certo que a multidão será atingida pela afecção comum que a governará em todas as ações. Segundo, estes princípios que são criados para atuarem sobre a multidão são sempre de natureza mais grosseira e obstinada, menos sujeitos a mudança e menos influenciáveis pela fantasia e extravagância pessoais que aqueles que pertencem somente a uns poucos. Estes são tão refinados e delicados, que o menor incidente na saúde, educação ou fortuna duma pessoa é suficiente para alterar-lhes o curso e adiar sua ação; tampouco é possível reduzi-los a umas poucas máximas e observações. Do fato de que tenham agido em certa época não se segue que voltem a fazê-lo; mesmo que todas as circunstâncias gerais sejam as mesmas, em ambos os casos. Julgar a partir desta norma as revoluções internas e graduais dum Estado vem a ser um assunto muito mais digno de estudo que as revoluções violentas e estrangeiras, que normalmente são levadas a efeito por pessoas Isoladas e que são mais influenciadas por teimosia, loucura ou capricho do que por interesses e paixões universais. A crise dos nobres (lords) e a ascensão dos burgueses (commons) na Inglaterra, após os estatutos da cessão de propriedade e do aumento do comércio e da indústria, são mais facilmente analisadas através de princípios gerais que a crise da monarquia espanhola ou o florescimento da monarquia francesa depois de Carlos V. Tivessem Henrique IV, o Cardeal Richelieu e Luís XIV sido espanhóis, e Filipe II, III, IV e Carlos II sido franceses e a história das duas nações teria sido inteiramente diversa. Pela mesma razão é mais fácil analisar o surgimento e progresso do comércio em qualquer reino que não o do saber; e o Estado que se tivesse devotado ao encorajamento do primeiro estaria mais seguro de obter êxito que aquele que cultivasse o segundo. A avareza ou o desejo do ganho é uma paixão universal que age em todos os tempos e lugares e sobre todas as pessoas: mas a curiosidade ou o amor do conhecimento tem influência limitada e requer juventude, ócio, educação, gênio e exemplo para apoderar-se duma pessoa. Não se quer ser produtor de livros embora existam compradores: mas frequentemente leitores existirão sem que existam autores. Grande número de gentes, pobreza e liberdade geraram o comércio da Holanda: estudo e aplicação raramente produziram escritores notáveis. Podemos, portanto, concluir que não há assunto no qual se deva proceder com mais cautela que ao traçar a história das artes e das ciências; a fim de não assinalar causas que nunca existiram e reduzir aquilo que é apenas contingente a princípios estáveis e universais. Os que cultivam as ciências em qualquer Estado são sempre poucos; a paixão, que os governa, limitada; o gosto e juízo, delicados e facilmente pervertidos; e sua aplicação é facilmente perturbada ao menor incidente. A sorte, por causa disso, ou causas secretas e desconhecidas, devem ter uma grande influência na origem e progresso das artes refinadas. Mas há um motivo que me induz a não atribuir completamente o assunto à sorte. Embora as pessoas, que cultivam as ciências com êxito tão admirável, de modo a atrair a admiração da posteridade, sejam sempre poucas em todas as nações e épocas, é impossível que uma parte do mesmo espírito e gênio não exista anteriormente difuso entre o povo, donde surgirão esses eminentes escritores de forma a produzir neles, desde a mais recuada infância, gosto e discernimento. A massa donde são extraídos espíritos tão refinados não pode ser inteiramente insípida. Existe um Deus dentro de nós, diz Ovídio, que respira aquele divino fogo pelo qual somos alimentados. Em todas as épocas os poetas atribuíram este título à inspiração. Nada há, contudo, de sobrenatural no caso. O fogo dos poetas não é aceso no céu. Percorre a terra, passa dum coração a outro e arde mais brilhantemente onde os materiais estão melhor preparados, e com mais felicidade arranjados. A questão, portanto, respeitante à origem e progresso das artes e ciências não versa sobre o gosto, gênio e espírito de uns poucos, mas envolve todo um povo; e pode, portanto, ser analisada em alguma medida por princípios e causas gerais. Garanto que alguém que fosse pôr-se a investigar por que um poeta como Homero, por exemplo, existiu em tal lugar e tempo lançar-se-ia de ponta-cabeça e fantasias e nunca poderia tratar de tal assunto sem uma infinidade de sutilezas e refinamentos. Pode também querer dar a razão por que generais como Fábio e Cipião viveram em Roma em certa época e por que Fábio veio ao mundo antes de Cipião. Para fatos assim só a justificativa de Horácio: Scit gentus, natale comes, qui temperat astrum, Naturae Deus humanae, mortalis in unum - - Quodque caput, vultu mutabilis, albus et ater. Mas estou convencido de que em muitos casos há boas razões para dar que explicam por que uma nação é mais delicada e instruída em certa época que outra nação vizinha. Aliás, trata-se dum assunto tão curioso, que seria uma pena ter de abandoná-lo por completo, até sabermos se seria suscetível de raciocínio e reduzível a quaisquer princípios gerais. O meu primeiro reparo neste importante ponto é que é impossível surgirem as artes e ciências, nos começos, em qualquer povo, a não ser que se viva na bênção dum governo livre. Nas primeiras idades do mundo, quando os homens eram ainda bárbaros e primitivos, não tinham outra segurança contra a violência mútua e a injustiça que a escolha de alguns soberanos, poucos ou muitos, em quem depositavam confiança implícita sem se proporcionarem segurança através de leis ou instituições políticas contra a violência ou injustiça dos tais soberanos. Estando a autoridade centrada numa única pessoa, e tendo a nação, ao aumentar tanto por conquista quanto por reprodução normal, chegado a grande número, o monarca teve como impossível ser ele próprio o executor de todo o trabalho do governo e delegou a sua autoridade a magistrados inferiores, que preservam a paz e a ordem nos seus distritos. Como a experiência e a educação não refinaram os juízos humanos de maneira considerável, o príncipe, ele próprio absoluto, além de não cuidar de restringir a autoridade de cada um dos seus ministros delega-lha por inteiro, e eles exercem-na sobre qualquer pessoa. Todas as leis gerais têm inconvenientes quando aplicadas aos casos particulares; e são necessárias grande penetração e experiência para perceber que, por um lado, estes inconvenientes são em menor número que os resultantes dos poderes discricionários dos magistrados, e, por outro lado, quais são as leis que possuem menos inconvenientes. Este é um assunto tão difícil, que os homens puderam realizar alguns progressos mesmo nas sublimes artes da poesia e da eloquência, nas quais a rapidez do gênio e da imaginação auxiliam seus avanços, antes de conseguirem chegar a qualquer aperfeiçoamento de maior monta nas leis municipais, terreno onde só jurisprudência frequente e observação diligente podem servir de ensino. Não se vá, contudo, supor que um monarca bárbaro, irrefreado e inculto nunca consiga chegar a legislador ou pense em reprimir o seu bashaws em cada província, ou até o cádi em cada aldeia. Sabe-se que o falecido czar, embora agisse com nobre propósito e se encantasse com as ciências européias, professava também estima pela política turca; aprovava vivamente as decisões sumárias dos julgamentos praticados nessa monarquia bárbara, onde os juízes não se acham tolhidos por quaisquer métodos, fórmulas ou leis. Não percebia quão danoso se tornava tal costume a seus propósitos de educar o povo. O poder arbitrário é, em todos os casos, de algum modo aviltante e opressivo; mas é além disso ruinoso e intolerável quando de pequeno alcance; e torna-se ainda pior quando a pessoa que o detém sabe que o tempo de sua autoridade é limitado e incerto. Habet subjectos tanquam suos; viles, ut alienos. Governa seus súditos com plena autoridade como se fossem coisa sua; e com negligência ou tirania, se de outrem. Um povo governado de tal modo é um povo de escravos no pleno sentido da palavra; e é impossível que aspire a qualquer espécie de finura, gosto ou razão. Arriscam-se apenas a pretender gozar as primeiras necessidades da vida na abundância e segurança. Esperar, então, que as artes e ciências rebentem numa monarquia é pôr-se à espera duma contradição. Antes de ocorrerem estes aperfeiçoamentos, o monarca é ignorante, sem qualquer instrução; e sem possuir conhecimento que o faça sensível à necessidade de reger o seu governo por leis gerais, delega todo o seu poder aos magistrados inferiores. Uma política bárbara como esta envilece o povo e impede para sempre quaisquer melhoras. Caso tenha sido possível que, antes de a ciência ter sido conhecida no mundo, um monarca possuísse sabedoria bastante para ser um legislador e governar seu povo pela lei, e não pela vontade arbitrária dos súditos seus amigos, então é razoável supor que essa espécie de governo tenha sido o viveiro primordial das artes e ciências. Mas tal hipótese dificilmente pode ser aceita como consistente ou racional. Pode ocorrer que uma república em seus começos seja sustentada por tão poucas leis quanto uma monarquia bárbara e dê uma autoridade ilimitada a seus magistrados ou juízes. Mas, além do fato de que eleições frequentes pelo povo servem de vigilância considerável à autoridade, é quase impossível que com o decorrer do tempo não surja a necessidade de diminuir o poder dos magistrados a fim de preservar a liberdade e assim se dê origem a leis e estatutos gerais. Os cônsules romanos durante algum tempo decidiam tudo, sem estarem adstritos a quaisquer estatutos positivos, até que o povo, suportando com impaciência tal jugo, criou os decénviros, que promulgaram as Doze Tábuas; um corpo de leis que, embora não fossem em volume iguais a uma lei do Parlamento na Inglaterra, foram, contudo, em grande parte as leis que regeram a propriedade e as penas por muitas gerações naquela famosa república. Eram suficientes por si sós, e com as formas de um governo livre, para proteger as vidas e haveres dos cidadãos, para livrar um homem do domínio de outro e para proteger a todos da violência de seus concidadãos. Em tal situação, as ciências podem despontar e florescer: mas nunca naquela cena de opressão e escravidão que são as monarquias bárbaras, onde o povo é oprimido pelos magistrados e estes não são tolhidos por qualquer lei ou estatuto. Desde que se manifeste um despotismo desta natureza, põe-se efetivamente paradeiro a qualquer progresso e impede-se aos homens de chegarem ao saber, que é um requisito para instruí-los das vantagens advenientes de uma política melhor e de uma autoridade mais moderada. Eis então as vantagens dos Estados livres. Embora uma república seja bárbara, inevitavelmente chega à lei, mesmo antes que a humanidade alcance progressos em outros saberes. Da lei vem a segurança, da segurança, curiosidade, e da curiosidade, conhecimento. Os últimos degraus deste progresso podem ser acidentais; mas os primeiros são, contudo, necessários. Uma república desprovida de leis não pode durar. Pelo contrário, num governo monárquico a lei não surge necessariamente das formas do governo. A monarquia, quando absoluta, contém alguma coisa que é até repugnante à lei. Somente uma grande sabedoria e reflexão as pode reconciliar. Mas tal grau de sabedoria é difícil achar, anteriormente aos progressos e descobertas levados a cabo pela razão humana. Tais progressos requerem curiosidade, segurança e lei. O arranque, portanto, das artes e ciências nunca será achado nos governos despóticos. Há outras causas que desencorajam o surgimento das ciências nos governos do despotismo - eu tomo a falta de leis e a delegação de plenos poderes a todo e qualquer insignificante magistrado como sendo as principais. A eloquência brota mais naturalmente nos governos populares; também a emulação em todas as tarefas ali deve ser mais animada e vivida: o gênio e a capacidade têm campo mais aberto e maior possibilidade de carreira. Tais causas tomam os governos livres a única creche adequada para as artes e ciências. A observação que farei a seguir acerca do assunto em pauta é que nada é mais favorável ao surgimento da educação e instrução que uma vizinhança de Estados independentes ligados pelo comércio e pela política. A emulação que naturalmente surge entre estes Estados vizinhos é uma fonte óbvia de progresso; mas aquilo em que insistirei especialmente é que tais territórios limitados constituem um travão ao poder e à autoridade. Extensos governos, onde uma única pessoa tem grande influência, depressa se tornam absolutos; mas os pequenos tornam-se naturalmente comunidades. Um grande governo está ligado em grau variável à tirania; cada ato de violência é realizado em certo ponto, e, estando afastado do resto, não é noticiado nem desperta contra si violência. Além disso, embora a totalidade dos súditos possa estar descontente, é possível a um governo absoluto manter a obediência através de uma pequena habilidade que é o fato de que cada parcela dos súditos, ignorante daquilo que as outras parcelas pensam, sempre terá receio de iniciar sozinha qualquer revolução ou insurreição. Isto para não falar já da reverência supersticiosa pelos príncipes que a humanidade sempre apresenta quando o soberano não é acessível e que os súditos, não o vendo com frequência, não podem constatar com seus próprios olhos as reais fraquezas do soberano. Os grandes Estados fazem grandes despesas na pompa inerente à majestade; trata-se duma maneira de fascinar os homens e que contribui também para escravizá-los. Num pequeno governo, qualquer ato de opressão é imediatamente conhecido de todos: os murmúrios e descontentamentos provocados são facilmente comunicados e a imaginação atinge o máximo porque os súditos não estão em condições de perceber em tais regimes que há uma larga distância entre eles e o soberano. "Ninguém", disse o Príncipe Conde, "é herói para o seu criado de quarto”. De fato, admiração e intimidade são completamente incompatíveis para qualquer criatura mortal. Dormir e amar chegaram para convencer Alexandre de que ele não era Deus. Mas acredito que aqueles que o rodeavam no dia-a-dia podiam facilmente, a partir das fraquezas sem-número a que estava sujeito, dar-lhe conta de sua natureza mortal. Assim as divisões em pequenos Estados são favoráveis à instrução ao deterem o progresso da autoridade bem como do poder. Por vezes, a reputação exerce nos homens um fascínio tão forte quanto a soberania e é igualmente destruidora da liberdade de pensamento e da crítica. Mas, desde que haja Estados vizinhos que mantenham grandes relações de artes e comércio, o ciúme mútuo impede-os de aceitar muito apressadamente o modelo do outro nas artes e no saber, o que faz com que se examine cada obra cuidadosamente. O contágio da opinião popular não se espalha tão facilmente de um lado para outro. Receberá rapidamente uma crítica em algum Estado onde não se ache estar de acordo com os preconceitos reinantes. E só a natureza e a razão, ou, pelo menos, aquilo que carregue em si grande semelhança, têm força para romper seu próprio caminho através de todos os obstáculos, e são capazes de unir as nações mais rivais na estima e admiração. A Grécia era um enxame de pequenos principados que depressa se tornaram repúblicas, e, estando unidos pela vizinhança e pelos laços da mesma língua e interesse comum, travaram as mais íntimas relações comerciais e culturais. Para tal concorreu um clima feliz, solo fértil, uma língua harmoniosa e compreensiva; de tal modo, que todas as circunstâncias nesse povo grego parecem favorecer o surgimento das artes e ciências. Cada cidade teve seus artistas e filósofos que recusaram os das cidades vizinhas: as suas disputas e debates aguçaram os engenhos; uma grande variedade de temas se apresentava para ajuizamento, e cada um pretendia a preferência dos demais - e as ciências não enfezadas pela autoridade foram capazes de cometimentos que ainda hoje provocam admiração. Depois que a Igreja católica romana ou cristã se espalhou por todo o mundo civilizado e aumentou a cultura dos tempos; e, desde que se constituiu num grande Estado unido sob uma única cabeça, imediatamente todas estas seitas desapareceram e a filosofia peripatética foi a única admitida em todas as escolas para uma total depravação de qualquer espécie de educação. Mas a humanidade tendo com o decorrer do tempo repelido esta situação afrontosa, as coisas voltaram à situação anterior, e a Europa constitui no presente uma cópia aumentada do modelo que a Grécia foi no passado em miniatura. Vimos a vantagem desta situação em muitas ocasiões. Que é que fez com que a filosofia cartesiana, à qual a nação francesa aderiu em tão larga escala no fim do século passado, fosse posta em questão senão a oposição levantada por outras nações da Europa que cedo descobriram os pontos fracos dessa filosofia? O exame mais severo que a teoria de Newton sofreu vem não de seus compatriotas, mas de estrangeiros; e, se acaso for capaz de triunfar dos obstáculos com que atualmente se defronta, passará vitoriosa para a posteridade. Os ingleses tomaram consciência da escandalosa licenciosidade do seu palco olhando o exemplo da moral e decência francesas. Os franceses estão convencidos de que seu teatro se tomou de algum modo afeminado por causa de muito amor e galantaria; e introduziram um gosto mais masculinizado a partir do exemplo de países vizinhos. Na China parece existir um grande depósito de polidez e ciência, do qual se podem esperar com razão coisas mais perfeitas e acabadas do que aquilo que até agora nos tem sido dado a conhecer. Mas o fato é que a China é um vasto império, falando uma língua só, tendo uma só lei, e com os mesmos costumes. A autoridade de um mestre como Confúcio foi facilmente propagada de um canto a outro do império. Ninguém resistiu à corrente da opinião popular. E a posteridade não foi suficientemente corajosa para contestar o que os antepassados haviam aceitado. Tal parece ser uma das razões por que as ciências progrediram tão pouco nesse poderoso império. “Se se perguntar como conseguimos conciliar os princípios precedentes com a felicidade, as riquezas e a boa política dos chineses, que desde sempre foram governados por um só monarca c dificilmente lerão ideia do que é governo livre, responderei que, embora o governo chinês seja uma monarquia pura, não é, propriamente falando, absoluta. Tal fato deriva duma peculiaridade da situação do país: não possui vizinhos, a não ser os tártaros, dos quais parece estar defendido pela famosa Muralha e por um maior contingente habitacional. Por causa disso, a disciplina militar foi sempre muito negligenciada e as forças mais importantes entre os chineses são apenas milícias da pior espécie e não adequadas para suprimir qualquer revolta em país tão populoso. (Nota do Autor)” Se olharmos para a face do globo das quatro partes do mundo, a Europa é a mais dividida por mares, rios e montanhas; e entre os países da Europa é a Grécia o mais dividido. Assim se explica que tais regiões se tenham naturalmente separado em diversos governos distintos. E que as ciências tenham surgido na Grécia e que a Europa tenha sido desde então sua pátria mais constante. Inclino-me por vezes a pensar que interrupções efetuadas em certos períodos culturais, desde que não efetuadas através da destruição de textos antigos e relatos históricos, seriam favoráveis às artes e ciências ao quebrarem o progresso da autoridade e ao destronarem os usurpadores tirânicos da razão humana. Neste sentido têm a mesma influência que as interrupções nos governos políticos das sociedades. Repare-se na cega submissão dos filósofos antigos aos mestres tradicionais e ficar-se-á convencido da pouca utilidade dessa secular e servil filosofia. Até mesmo os ecléticos que surgem na era de Augusto, não obstante professarem a escolha daquilo que lhes agradava em cada corrente, eram, assim mesmo, no geral, tão escravos e dependentes quanto seus iguais, uma vez que buscavam a verdade não na natureza, mas nas diversas escolas filosóficas, não importando o acharem que a verdade estava dispersa e não unificada num corpo único. Na renascença cultural, os estoicos e epicuristas, platônicos e pitagóricos, nunca puderam ganhar para si qualquer crédito ou autoridade, e com sua derrocada puderam ao menos concorrer para evitar nos homens essa cega submissão às novas seitas triunfantes então. A terceira observação que farei acerca do surgimento e progresso das artes e ciências é que, embora o viveiro próprio de tais plantas nobres seja um Estado livre, podem contudo ser transplantadas para qualquer governo; e que uma república é mais favorável ao crescimento das ciências, e uma monarquia civilizada, ao das artes. Firmar um grande Estado, seja ele monárquico ou republicano, em leis gerais, é obra de tanta dificuldade, que nenhum engenho humano, mesmo compreensivo, é capaz, somente através da força da razão e reflexão, de levá-la a cabo. Os avisos de muitos devem concorrer para tal tarefa: a experiência deve conduzir seu trabalho; o tempo deve acrescentar-lhe a perfeição e o sentimento das inconveniências deve corrigir os erros que inevitavelmente ocorrem nas primeiras tentativas e experiências. Assim surge a impossibilidade de que tal empreendimento deva começar e continuar sob uma monarquia; pois a monarquia é aquela forma de governo que não tem outro segredo ou política que a de delegar poderes ilimitados a cada governante ou magistrado e de subdividir as pessoas em múltiplas classes e ordens de escravidão. Em tal situação, nada de novo se pode esperar nas ciências, nas artes liberais, leis e muito pouco também nas artes manuais e manufaturas. A mesma barbárie e ignorância com que o governo principia projeta-se na posteridade e não se lhe pode pôr um termo através dos esforços ou ingenuidade de tais infelizes servos. Mas, embora a lei, fonte da segurança e felicidade, desponte tarde em todos os regimes e seja o produto lento da ordem e da liberdade, não é preservada com a mesma dificuldade com que surge; quando deita raiz é planta rija que dificilmente perecerá na cultura doente dos homens ou no rigor das estações. As artes do luxo, e ainda mais as belas-artes, perdem-se facilmente; dependem de um gosto e sentimento refinados; são apreciadas por uma minoria cujo ócio, fortuna e gênio a habilitam para tais requintes. Mas aquilo que é útil ao comum dos mortais, uma vez descoberto, dificilmente passa ao esquecimento, a não ser pela total subversão social, invasões bárbaras, capazes de obliterar quaisquer vestígios das primeiras artes e civilização. A imitação também é capaz de transportar as artes mais úteis e grosseiras de um clima para outro e fazer com que seus progressos precedam os das artes superiores, embora seu início e a propagação tenham sido posteriores. Destas causas vieram as monarquias civilizadas; nelas, as artes da governança, que foram primeiro inventadas nos Estados livres, são preservadas para vantagem mútua e segurança do soberano e súdito. Mesmo perfeita, a forma monárquica pode parecer a alguns políticos como devendo todas as suas qualidades à república; nem tampouco será possível que um total despotismo, próprio de um povo bárbaro, possa por si próprio aperfeiçoar e elevar-se. Deve extrair suas leis e métodos, instituições, e por conseguinte sua estabilidade e ordem, dos governos livres. Tais vantagens constituem coisas que só a república pode produzir. O enorme despotismo de uma monarquia bárbara, ao penetrar em todos os recantos do governo e da administração, impede para sempre que tais progressos se manifestem. Numa monarquia civilizada só o príncipe é ilimitado em autoridade, só ele em pessoa possui o poder, que não é limitado por nada a não ser o costume, o exemplo e a consciência do seu próprio interesse. Todos os ministros e magistrados, mesmo importantes, devem submeter-se à lei, que governa a sociedade como um todo, e devem exercer a autoridade a si delegada segundo esteja prescrito pelos regulamentos. As pessoas dependem apenas do seu soberano para a defesa de sua propriedade. Este acha-se tão longínquo e tão isento de ciúmes privados ou interesses pessoais, que tal dependência mal é percebida. E assim surge uma espécie de governo à qual podemos dar o nome de tirania, se usarmos uma linguagem bombástica, mas que, de fato, através de uma justa e prudente administração, poderá proporcionar uma segurança tolerável aos cidadãos e preencher adequadamente a maior parte das finalidades da sociedade política. Embora tanto na monarquia culta como na república as gentes gozem em segurança seus haveres, aqueles que em ambas as formas de governo ocupam os cargos supremos têm grandes honras e vantagens, que despertam a ambição e a avareza da humanidade. A única diferença reside no fato de que numa república os candidatos aos postos precisam olhar para os de baixo para obterem votos; numa monarquia levantam os olhos para obterem os favores e boas graças dos grandes. Para se ser bem sucedido no primeiro modo é necessário a uma pessoa ser útil de alguma forma, pela indústria, capacidade ou conhecimento; para prosperar, no segundo modo, requer-se que a pessoa se tome agradável por seu espírito, afabilidade ou educação. Um grande gênio realiza-se melhor nas repúblicas; um gosto refinado, nas monarquias. E consequentemente as ciências dão-se melhor na forma republicana e as belas-artes na forma monárquica. Isto para não mencionar que as monarquias, recebendo a sua principal fonte de estabilidade da reverente superstição endereçada aos padres e príncipes, diminuíram a liberdade de pensamento no que toca à religião e à política e consequentemente à metafísica e à moral. Juntas formam, é claro, os ramos mais importantes da ciência. A matemática e a filosofia natural, que são as que restam, ficam assim prejudicadas pela metade. Entre as artes da sociedade, nenhuma agrada tanto quanto a gentileza mútua ou civilidade, que nos leva a sujeitar nossos gostos aos do outro e a curvar e esmagar essa presunção e arrogância tão próprias do espírito humano. Um indivíduo de boa Índole, bem educado, pratica tal gentileza com qualquer um, sem premeditação nem interesse. Mas para tomar absolutamente coletiva tal qualidade é necessário assisti-Ia com alguma motivação que seja geral. Se o poder, como sucede nas repúblicas, sai do povo para os poderosos, tais refinamentos de delicadeza não são muito usados, uma vez que todo o Estado se acha ao mesmo nível e cada um se acha independente do parceiro. O povo tem autoridade pelos seus votos; os poderosos, pela superioridade de seu cargo. Agora, numa monarquia culta é diferente; há um longo uso de dependência do príncipe e do camponês que, embora não seja forte a ponto de tomar precária a propriedade, é, contudo, suficiente para provocar em todos uma inclinação a agradar seus superiores e a tomá-los como modelos. A delicadeza dos modos, então, surgirá mais naturalmente nas monarquias e nas cortes e, onde ela esteja, estejamos certos que nenhuma arte liberal será negligenciada ou desdenhada. As repúblicas na Europa são apontadas atualmente como tendo falta de maneiras. As boas maneiras de um suíço civilizado na Holanda é expressão que designa rusticidade entre os franceses. De algum modo, os ingleses são alvos da mesma crítica, não obstante sua instrução e gênio. E se os venezianos são exceção à regra, devem-no talvez ao estar em contato com outros italianos cujos governos promovem um tipo de dependência social mais que suficiente para civilizar suas maneiras. É difícil fazer qualquer espécie de juízo a respeito dos refinamentos das antigas repúblicas neste particular. Mas acho-me disposto a suspeitar de que as artes da convivência não estiveram tão perto da perfeição quanto o escrever e a composição. A baixeza dos oradores antigos em diversas ocasiões é bastante chocante e difícil de acreditar. A vaidade é também agressiva nos autores desta época, tanto como a licenciosidade e imodéstia de estilo: Quicumque impudicus, adulter, ganeo, manu, ventre, pene, bona patria laceraverat, diz Salústio numa de suas passagens mais graves e moralistas. Namfuit ante Helenam Cunnus teterrima belli Causa é uma expressão de Horácio ao traçar a origem do bem e do mal. Ovídio e Lucrécio são quase tão licenciosos em seu estilo quanto Lorde Rochester; isto, embora eles sejam verdadeiros cavalheiros e excelentes escritores, e Rochester, ao viver nas corrupções da corte a que pertencia, tenha abandonado toda vergonha e decência. Juvenal recomenda modéstia com grande zelo; mas oferece muito mau exemplo, se levarmos em linha de conta a impudência de suas expressões. Também estou inclinado a afirmar que entre os antigos não havia muita delicadeza de educação, ou seja, aquela deferência e respeito que somos obrigados a manifestar às pessoas com quem conversamos. Cícero era o cavalheiro por excelência de sua época; mas fico às vezes boquiaberto pela maneira chocante por que apresenta Ático, um amigo, em seus diálogos. Este romano instruído e virtuoso, cuja dignidade não era inferior à de ninguém em Roma, embora fosse um simples cidadão, é mostrado nos diálogos de Cícero sob uma luz mais digna de piedade que o amigo de Filaleto nos nossos diálogos modernos. É um humilde admirador do orador, elogia-o muito e recebe ainda por cima suas explicações, como um aluno receberia aulas do mestre-escola. Mesmo Catão é tratado assim de cima nos diálogos De Finibus. Um dos detalhes mais curiosos de um diálogo da antiguidade é relatado por Políbio; é quando Filipe, rei da Macedônia, príncipe de espírito e talento, encontra Tito Flamínio, um dos romanos mais delicados, como sabemos por Plutarco, acompanhado por embaixadores de quase todas as cidades gregas. O embaixador da Etólia diz de repente ao rei que Flarnínio fala como uma mulher ou um louco; isso é evidente, mesmo para um cego, responde o rei. Tudo isto não passou os limites, a conferência decorreu normalmente. Flarnínio divertiu-se muito com o humor dos gregos. No fim, Filipe desejou um pouco de tempo para conferenciar com seus amigos, que não estavam presentes à reunião; então o general romano, desejoso de dar também uma amostra do seu humor, como diz Plutarco, disse-lhe que talvez a razão por que não tinha nenhum de seus amigos com ele era porque os tinha assassinado todos; e assim era de fato. Esta série de rudezas não provocadas não é condenada pelo historiador, nem causou qualquer ressentimento em Filipe, a não ser um sorriso sardônico, melhor dizendo, um arreganhar de dentes; e não o impediu de prosseguir a conferência no dia seguinte. Plutarco menciona esta ironia entre os ditos de espírito de Flarnínio. O Cardeal Wolsey pedia desculpa pela sua insolência em dizer Ego et rex meus, eu e meu rei, porque, segundo ele, tal expressão estava de acordo com o espírito do latim e que um romano sempre se nomeava antes da pessoa de quem ou a quem falava. Mas isto parece ser um desejo de educação entre tal povo. Os antigos estabeleceram a regra de que a pessoa de maior peso deve ser mencionada em primeiro lugar; e assim é, pois sabemos que houve uma disputa motivada pelo fato de um poeta, ao celebrar uma vitória dos romanos aliados aos etólios sobre os macedônios, ter mencionado os gregos em primeiro lugar. Lívia desgostou Tibério quando colocou seu nome antes do dele numa inscrição. Nenhuma vantagem neste mundo existe pura. Da mesma forma que modernamente a polidez degenera frequentemente em afetação e peraltice, hipocrisia e insinceridade, assim a simplicidade dos antigos se volve em rusticidade e abuso, aviltamento e obscenidade. Se a superior educação pertence aos tempos modernos, as noções de galantaria, produto natural de cortes e monarquias, devem ser apontadas como causa deste refinamento. Ninguém se opõe a considerar esta invenção como moderna. Mas alguns dos mais zelosos partidários dos antigos afirmam-na como afetada e ridícula, e mais digna de censura que elogio por pertencer aos modernos. É razoável examinar aqui tal questão. A natureza implantou em todas as criaturas vivas a afeição entre os sexos, a qual mesmo entre os animais mais ferozes e rapaces não fica limitada à satisfação do apetite corporal, mas gera amizade e simpatia mútua que acompanham todo o curso de suas vidas. Mesmo naquelas espécies em que a natureza limita tal apetite a uma estação e a um único objeto, e forma uma espécie de casamento entre um único macho e fêmea, mesmo aí é visível a complacência e benevolência que suaviza e estende mais longe as afecções dos dois sexos. Não será tal afecção no homem muito maior, uma vez que a limitação do apetite não é natural mas derivada acidentalmente de algum encanto específico do amor, ou surge da reflexão na dúvida e na conveniência? Nada, portanto, procede menos da afetação que a paixão da galantaria. Ela é natural no mais alto grau. A arte e a educação nas cortes mais elegantes não a alteram mais do que a outras paixões igualmente louváveis. Apenas dirigem o espírito com mais vigor em sua direção; refinam-no; dão-lhe polimento; e conferem-lhe graça e expressão. Mas, além de natural, a galantaria é generosa. Para corrigir vícios que nos levam a ferir os outros existe a moral, que é objeto da educação comum. Onde tal objetivo não possa ser atingido, não subsiste sociedade humana. Para tornar a conversação e as relações espirituais mais fáceis e agradáveis é que as boas maneiras foram inventadas e levaram adiante esse objetivo. Onde quer que a natureza tenha dado ao espírito a propensão para algum vício, ou paixão desagradável aos outros, o comportamento refinado ensinou os homens a lutarem contra o lado oposto, e preservarem em toda a conduta a aparência de sentimentos diferentes daqueles para os quais estão naturalmente inclinados. Assim, quando egoístas e orgulhosos, querendo passar por cima dos outros, um homem educado ensinar-nos-á a comportar-nos com deferência para com os outros e a dissimular a superioridade em todos os casos. Igualmente, quando a situação de uma pessoa dá azo a suspeita, é mister, segundo as boas maneiras, evitá-la, exibindo sentimentos contrários às suspeitas e desconfiança que se possam originar. Os velhos sabem de suas doenças, e lamentam-se da juventude; os jovens bem educados devem por isso redobrar de deferência para com os mais velhos. Os estranhos e estrangeiros não têm proteção: é por isso que recebem as maiores cortesias e têm o lugar principal em qualquer reunião. Um homem é soberano em sua própria família e, de certa forma, os convidados estão sujeitos à sua autoridade; assim é a pessoa ínfima na reunião, atenta aos desejos de todos; e atribuindo-se todo o trabalho, de forma a ser gentil com todos, mas mesmo assim não de maneira demasiado ostensiva para não constranger os convidados. A galantaria não é senão um exemplo da mesma atenção generosa. Como a natureza concedeu ao homem superioridade sobre a mulher, dando-lhe maior fortaleza de corpo e espírito, é para aliviar tanto quanto possível tal superioridade, através da generosidade da conduta e por uma deferência estudada, que o homem usa complacência para todas as opiniões e inclinações da mulher. As nações bárbaras ampliam a superioridade reduzindo suas mulheres à mais abjeta escravidão, mantendo-as presas, batendo-lhes, vendendo-as ou matando-as. Mas numa sociedade civilizada o sexo masculino descobre sua autoridade numa conduta que, não sendo menos evidente, é mais generosa; pela civilidade, respeito, complacência, numa palavra, pela galantaria. Numa boa sociedade não se pergunta quem é o dono da festa? O homem que se senta no pior lugar, que serve a todos afadigadamente, é ele certamente. Podemos, ou condenar todos estes exemplos de generosidade como afetados e hipócritas, ou admitir os restantes como galantaria. Os antigos moscovitas desposavam suas mulheres com um chicote em vez de um anel. O povo em questão, em sua casa, tomava sempre primazia sobre os estrangeiros, mesmo embaixadores. Estes dois exemplos de sua generosidade e delicadeza são do mesmo estofo. A galantaria não é menos compatível com a sabedoria e prudência, que com a natureza e a generosidade; e, uma vez posta sob leis adequadas, contribui mais do que qualquer outra invenção para o divertimento e melhoria da juventude de ambos os sexos. Entre todas as espécies animais, a natureza encontrou no amor entre os sexos a sua mais doce e melhor alegria. Mas a satisfação do apetite corpóreo não é suficiente por si própria para gratificar a mente; e até entre os animais verificamos que brincam e folgam, o que, com outras expressões de felicidade, constitui a maior parte de sua diversão. Nos seres racionais devemos levar em conta o espírito. Se roubarmos à festa toda a guarnição da razão, discurso, simpatia, amizade e alegria, o que fica dificilmente será digno de ser aceito, segundo a norma daquilo que é verdadeiramente elegante e luxuoso. Que melhor escola de maneiras do que a companhia de mulheres virtuosas? - onde o propósito mútuo de agradar serve para polir o espírito insensivelmente, onde o exemplo da suavidade e modéstia femininas se comunica a seus admiradores e onde a delicadeza própria a seu sexo põe cada um de sobreaviso, para não ofender ou molestar a decência. Nos antigos, o sexo fraco era considerado doméstico; não fazia nem parte da boa sociedade. Tal é talvez o motivo por que os antigos não nos deixaram uma única peça de espírito que seja excelente (exceção talvez para o Banquete de Xenofonte e para os Diálogos de Luciano), embora muitas de suas composições sérias sejam inimitáveis. Horácio condena as grosseiras zombarias e os gracejos frios de Plauto: mas, embora seja o mais fácil, agradável e judicioso escritor do mundo, é o seu talento para o ridículo notável ou refinado? Trata-se, sim, de um aperfeiçoamento que as artes superiores receberam da galantaria e das cortes, onde surgiu pela primeira vez. Mas, para abandonar esta digressão, enunciarei uma quarta observação sobre o tema: Quando as artes e ciências chegam à perfeição em qualquer Estado, a partir desse momento naturalmente ou, antes, necessariamente entram em declínio e raramente ou nunca voltam a ser o que eram nessa nação, não revivem onde floresceram. À primeira vista, pode confessar-se que esta máxima, embora conforme à experiência, pode ser estimada como contrária à razão. Se o gênio natural da humanidade fosse o mesmo em todas as épocas e em quase todos os países (o que parece ser verdade), ajudaria muito ao progresso e educação desse gênio o estar na posse de padrões para cada arte, que regulassem o gosto e fixassem os objetos da imitação. Os modelos que nos foram deixados pelos antigos deram origem a todas as artes há cerca de duzentos anos e contribuíram possivelmente para seu progresso em cada país europeu. Por que não aconteceu assim durante o reinado de Trajano e seus sucessores, quando esses padrões estavam quase intatos e eram ainda admirados e estudados pelo mundo todo? Ainda no tempo do Imperador Justiniano os gregos referiam-se a Homero dizendo simplesmente o Poeta, os romanos mencionavam assim Virgílio. Ainda existe grande admiração por tais gênios divinos, embora durante séculos não tenha aparecido um poeta que tenha pretendido imitá-los, Um homem de talento, em seus começos, desconhece-se e é desconhecido pelos outros; é só depois de muitas tentativas, algumas coroadas de êxito, que ele começa a suspeitar-se igual às sumidades admiradas pela humanidade. Se a sua nação possuir já muitos modelos de eloquência comparará seus juvenis ensaios com eles; se a disparidade for muito grande, não tentará mais, e, desencorajado, não mais procurará rivalizar com aqueles modelos que tanto admira. A emulação nobre é a origem de toda a excelência. Admiração e modéstia extinguem-na. E ninguém é tão dado a um excesso de admiração e modéstia como o gênio. A seguir à emulação, o maior encorajamento vem do elogio e da glória. Um escritor anima-se com nova força quando escuta os aplausos do mundo por suas primeiras obras; e, estimulado, atinge um clímax de perfeição que o espanta a ele e aos leitores. Mas, quando os postos de honra estão todos ocupados, todos os ensaios são recebidos friamente pelo público, ao serem comparados com produções que são em si mesmas mais excelentes e já têm a vantagem de uma reputação estabelecida. Se Moliêre e Corneille trouxessem agora para o palco as suas primeiras peças, que foram tão bem recebidas, desencorajaria os jovens poetas ver o desdém e a indiferença do público. Só a ignorância da idade pode admitir o Prince of Tyre; mas é a isso que devemos The Moor: se Every Man in His Humour tivesse sido rejeitado, nunca teríamos tido Volpone. Talvez não seja vantagem para nenhuma nação importar artes de seus vizinhos que tenham atingido grande perfeição. Isso extingue a emulação e estanca o ardor da juventude. Muitos modelos que foram trazidos da Itália à Inglaterra fizeram com que a pintura estagnasse em lugar de propiciar inspiração aos nossos artistas. O mesmo aconteceu com Roma em relação à Grécia. A multidão de produções delicadas em língua francesa dispersas por toda a Alemanha e pelo norte impediu que tais nações cultivassem seu próprio idioma e mantém-nas dependentes dos vizinhos com relação a tais artes. É verdade que os antigos nos deixaram modelos de todas as formas literárias absolutamente dignos de admiração. Mas, além do fato que foram escritos em línguas só acessíveis aos instruídos, além disso, dizia eu, não há comparação entre o espírito daquela época e o atual. Tivesse Waller nascido em Roma durante o reinado de Tibério e as suas primícias literárias teriam sido desprezadas, se postas em paralelo com as acabadíssimas odes de Horácio. Mas nesta ilha a fama do poeta romano em nada diminui o valor do poeta inglês. Demo-nos por amplamente satisfeitos se o nosso clima e língua puderem produzir uma tênue cópia e tão excelente original. Em suma, as artes e as ciências, como certas plantas, requerem terra fresca; e por rica que uma terra seja, e mesmo que cuidada com esmero, uma vez exaurida, nunca mais produzirá nada de tal espécie que seja perfeito e acabado. DA ELOQUÊNCIA Quem contempla as diferentes épocas e revoluções por que passou a humanidade, tais como a história no-las apresenta, encontra-se perante um espetáculo cheio de encanto e variedade, e vê com surpresa como os usos, costumes e opiniões da espécie humana são suscetíveis de tão prodigiosas mudanças, em diferentes períodos de tempo. Pode todavia assinalar-se que na história política se verifica uma uniformidade muito superior à da história do saber e da ciência, e que as guerras, as negociações e a política de uma época se assemelham às de uma outra mais do que o gosto, o gênio e os princípios especulativos. O interesse e a ambição, a honra e a vergonha, a amizade e a hostilidade, a gratidão e a vingança são os motores primeiros de todas as disputas políticas, e essas paixões são de natureza extremamente obstinada e intratável, quando comparadas com os sentimentos e com o intelecto, que facilmente variam conforme a educação e o exemplo. Os godos eram muito mais inferiores aos romanos em gosto e em ciência do que em coragem e virtude. Mas, para não comparar nações tão acentuadamente diferentes, pode assinalar-se que mesmo este último período do saber humano é, sob muitos aspectos, de caráter oposto ao antigo, e que, se somos superiores em filosofia, continuamos sendo, não obstante todo o nosso refinamento, muito inferiores em eloquência. Nos tempos antigos, de nenhuma obra de gênio se exigiam tão grandes qualidades e capacidade como da arte de falar em público. E alguns autores eminentes declararam que mesmo o talento de um grande poeta ou filósofo era de natureza inferior ao necessário para tal empreendimento. A Grécia e Roma produziram, cada uma, apenas um orador consumado, e, por mais merecedores de elogios que os outros oradores célebres pudessem ter sido, mesmo assim eram considerados muito inferiores a esses grandes modelos de eloquência. É de assinalar que os críticos antigos a custo conseguiam encontrar, em qualquer época, dois oradores que merecessem ser considerados exatamente da mesma estirpe e possuidores do mesmo grau de mérito. Calvo, Cêlio, Cúrio, Hortênsio, César sucederam-se uns aos outros - mas o maior dessa época era inferior a Cícero, o mais eloquente orador que Roma jamais conheceu. No entanto, os críticos de gosto mais apurado, em sua apreciação tanto do orador romano como do grego, declaram que ambos superavam todos os exemplos de eloquência jamais conhecidos, mas que estavam longe de atingir a perfeição de sua arte, que era infinita, e não apenas estava além do que as forças humanas podiam atingir, mas se encontrava também além do que a imaginação humana podia conceber. O próprio Cícero se declara insatisfeito com suas realizações; mais, mesmo com as de Demóstenes. A tal ponto meu ouvido é ambicioso e apto, desejando sempre algo de imenso e infinito. De todas as nações cultas e civilizadas, apenas a Inglaterra tem um governo popular, ou uma Constituição que admita assembleias suficientemente numerosas para poderem cair sob o domínio da eloquência. Mas de que pode a Inglaterra vangloriar-se quanto a este aspecto? Quando enumeramos os grandes homens de que nosso país pode orgulhar-se, exaltamos nossos poetas e filósofos; mas que oradores são jamais referidos? E onde podem encontrar-se os monumentos de seu gênio? Sem dúvida podem encontrar-se, em nossa história, os nomes de muitos que contribuíram efetivamente para as decisões de nosso Parlamento. Mas nem eles nem outros se deram ao cuidado de conservar seus discursos, e a autoridade de que desfrutavam parece ter-se devido mais a sua experiência, sabedoria ou poder do que a seu talento oratório. Temos atualmente, nas duas câmaras, mais de meia dúzia de oradores que na opinião do público atingiram muito aproximadamente o mesmo nível de eloquência, e ninguém pretende que algum deles seja superior aos outros. Isto me parece de certo modo constituir prova de que nenhum deles, em sua arte, foi muito além da simples mediania, e que o tipo de eloquência a que aspiram não permite o exercício das mais sublimes faculdades do espírito, podendo facilmente ser consegui da por quem possua um talento normal e um pouco de dedicação. Há em Londres uma centena de marceneiros capazes de fabricar igualmente bem uma mesa ou uma cadeira, mas nenhum poeta é capaz de escrever versos com um espírito e uma elegância comparáveis aos de Pope. Diz-se que, quando Demóstenes ia discursar, todos os homens cultos da Grécia de todos os lados acorriam a Atenas, como se fossem assistir ao espetáculo mais famoso do mundo. Em Londres vê-se gente circulando pelo tribunal de petições ao mesmo tempo que nas duas câmaras transcorre o mais importante debate. E para muitos nem toda a eloquência de nossos mais reputados oradores é capaz de compensar suficientemente a perda de seus tostões. Muita gente sente mais curiosidade quando o velho Cibber vai atuar do que quando o primeiro-ministro vai defender-se de uma moção a favor de sua demissão ou impedimento. Mesmo quem não conheça os nobres vestígios dos antigos oradores é capaz de julgar, a partir de uns poucos exemplos, que o estilo de sua eloquência era infinitamente mais sublime do que aquele a que aspiram os oradores modernos. Como pareceria absurdo que um de nossos moderados e tranquilos oradores fizesse uso de uma apóstrofe como aquela, tão celebrada por Quintiliano e Longino, onde Demóstenes nobremente justificava a desastrosa batalha de Queronéia, prorrompendo: Não, meus concidadãos, não: não haveis falhado. Juro-o pelos manes daqueles heróis que lutaram pela mesma causa nas planícies de Maratona e Plateia. Quem poderia hoje suportar uma figura tão ousada e poética como a empregada por Cícero, após descrever nos termos mais trágicos a crucificação de um cidadão romano? - Descrevesse eu os horrores de tal cena não a cidadãos romanos, nem a aliados de nosso Estado, nem àqueles que alguma vez ouviram o nome do povo romano, e nem mesmo a homens, mas a bestas; ou então, indo mais longe, se na mais desolada solidão dirigisse minha voz aos rochedos e às montanhas, ainda assim certamente eu veria essas rudes e inanimadas partes da natureza serem transportadas de horror e de indignação perante a narrativa de tão infame ação. Que auréola de eloquência não deveria envolver tais frases para torná-las atraentes, levando-as a impressionar os ouvintes? E que nobre arte e sublime talento é preciso para chegar, através de uma exata gradação, a um sentimento tão ousado e excessivo - para inflamar o auditório a ponto de levá-lo a acompanhar o orador em tão violentas paixões e tão elevadas concepções, escondendo, sob uma torrente de eloquência, o artifício mediante o qual tudo isto é efetuado! Mesmo que esses sentimentos nos pareçam excessivos, e talvez com razão o possam parecer, servir-nos-ão ao menos para dar-nos uma ideia do estilo da eloquência antiga, onde tão empoladas expressões não eram rejeitadas como inteiramente monstruosas e gigantescas. A veemência dos oradores antigos na ação era equiparável a esta veemência de pensamento e expressão. A supplosio pedis, o bater com os pés, era um dos gestos mais habituais e mais moderados que empregavam. Embora seja hoje considerado gesto demasiado violento, seja para o senado, o tribunal ou o púlpito, e se admita apenas no teatro, para acompanhar as mais violentas das paixões aí representadas. Haveria certa dificuldade em determinar a causa a que pode atribuir-se tão acentuado declínio da eloquência nas épocas posteriores. Pode talvez dizer-se que em todos os tempos o gênio da humanidade permanece o mesmo. Os modernos se dedicaram, com grande empenho e sucesso, a todas as outras artes e ciências, e há uma nação civilizada que possui um governo popular, circunstância que parece indispensável para o pleno desenvolvimento desses nobres talentos. Mas, não obstante todas estas vantagens, são bem mesquinhos nossos progressos em eloquência, comparados com os que fizemos em outras áreas do saber. Deveremos concluir que as tendências da eloquência antiga são inadequadas para nossa época, e não devem ser imitadas pelos oradores modernos? Sejam quais forem as razões usadas para provar isto, estou convencido de que seu exame mostrará que são incorretas e insatisfatórias. Primeiro, poderia dizer-se que nos tempos antigos, durante o período mais florescente do saber grego e romano, as leis municipais, em todos os Estados, eram muito poucas e simples, e a decisão das causas jurídicas dependia em grande medida da equidade e do bom senso dos juízes. O estudo das leis não era então uma ocupação laboriosa, exigindo a servidão de uma vida inteira para levá-lo a cabo, de maneira incompatível com qualquer outro estudo e profissão. Entre os romanos, todos os grandes estadistas e generais eram juristas. E Cícero declara, para mostrar com que facilidade se adquiria essa ciência, que em meio a todas as suas ocupações conseguiria ainda, nuns poucos dias, tomar-se um jurista consumado. Ora, quando um litigante se dirige à equidade de seus juízes, tem muito maior oportunidade de dar largas a sua eloquência do que quando se vê obrigado a tirar seus argumentos de leis, estatutos e precedentes totalmente rigorosos. No primeiro caso é possível levar em conta grande número de circunstâncias, tecer numerosas considerações de ordem pessoal, e mesmo as preferências e o favoritismo, que cabe ao orador conciliar, através de sua arte e eloquência, podem ser disfarçados sob a aparência da equidade. Mas como seria possível a um jurista moderno encontrar oportunidade para deixar suas laboriosas ocupações a fim de ir colher as flores do Parnaso? E que ocasião terá ele de usá-las, no meio dos rígidos e sutis argumentos, objeções e respostas que é obrigado a empregar? Mesmo o mais genial orador, se pretendesse advogar perante o chanceler, depois de um mês de estudo das leis, conseguiria apenas cobrir-se de ridículo. Estou pronto a conceder que esta circunstância da multiplicidade e complexidade das leis contribui nos tempos modernos para desencorajar a eloquência, mas sustento que ela é incapaz de dar inteiramente conta da decadência dessa nobre arte. Pode ter contribuído para banir a oratória de Westrninster Hall, mas não de qualquer das casas do Parlamento. Entre os atenienses, os areopagitas proibiam expressamente todos os fascínios da eloquência, e houve quem afirmasse que nos discursos gregos escritos em forma judiciária não se encontra um estilo tão ousado e retórico como o que aparece nos discursos romanos. Mas a que grau não levavam os atenienses sua eloquência no governo deliberativo, onde se discutiam os assuntos de Estado e onde os temas em debate eram a liberdade, a felicidade e a honra da república? Disputas desta natureza elevam o gênio da eloquência acima de qualquer outro, levando-a a atingir sua máxima intensidade - e tais disputas são muito frequentes nesta nação. Segundo, poderia pretender-se que o declínio da eloquência se deve ao superior bom senso dos modernos, que rejeitam desdenhosamente todos esses truques retóricos destinados a seduzir os juízes, recusando admitir tudo quanto não seja a mais sólida argumentação em todo debate deliberativo. Se um homem é acusado de assassínio, o fato precisa ser apoiado em testemunhos e provas, e a punição do criminoso será posteriormente determinada pelas leis. Seria ridículo descrever em tons carregados o horror e a crueldade da ação, ou apresentar a família do morto e, a um sinal, fazê-los lançar-se aos pés dos juízes, implorando justiça entre lágrimas e lamentos. Mais ridículo ainda seria usar um retrato que representasse a sanguinária ação, a fim de comover os juízes com a exibição de tão trágico espetáculo, embora saibamos que esse artifício foi algumas vezes utilizado pelos litigantes de antanho. Mas, se o elemento patético for expurgado dos discursos públicos, os oradores ficarão simplesmente limitados à eloquência moderna, isto é, ao bom senso, traduzido em expressão própria. Talvez possa admitir-se que nossos costumes modernos, ou nosso superior bom senso, como se preferir, devem tornar nossos oradores mais cautelosos e reservados do que os antigos, ao tentarem incendiar as paixões ou exaltar a imaginação de seu público, mas não vejo razão para que isso os leve a desesperar completamente de ver coroada de êxito tal tentativa. É uma razão para fazê-los reforçar sua arte, não para abandoná-la inteiramente. Também os oradores antigos parecem ter-se posto em guarda contra este rigor de seu público, mas foi de maneira diferente que se precaveram contra ele. Lançavam sobre os ouvintes tal torrente de sublime e patético, que não lhes davam oportunidade para perceber o artifício com que eram iludidos. Ou melhor, vistas as coisas corretamente, não eram iludidos por artifício algum. O orador, pela força de seu próprio gênio e eloquência, era o primeiro a deixar-se inflamar de cólera, indignação, piedade ou tristeza, e depois transmitia ao auditório esses impetuosos movimentos. Haverá alguém que pretenda ser dotado de mais bom senso do que Júlio César? E no entanto esse grande conquistador, como sabemos, foi a tal ponto seduzido pelo fascínio da eloquência de Cícero, que se viu de certo modo obrigado a modificar a decisão já tornada, absolvendo um criminoso que antes do discurso daquele orador, tencionava condenar. Bem sei que algumas objeções podem ser feitas, apesar de seu imenso sucesso, a algumas passagens do orador romano, É demasiado florido e retórico, suas figuras são demasiado visíveis e palpáveis, as divisões de seu discurso são tiradas sobretudo das regras das escolas, e nem sempre seu talento desdenha o artifício de um trocadilho, uma rima ou uma aliteração, O orador grego dirigia-se a um público muito menos culto do que o senado ou os juízes de Roma. O mais ínfimo vulgo de Atenas era o árbitro soberano de sua eloquência. “Eram os oradores que determinavam o gosto do povo ateniense, não o povo o dos oradores. Górgias Leontino recebia dele ampla aceitação, até ao momento em que tiveram contato com um estilo superior. As figuras de seu discurso, diz-nos Diodoro Sículo, suas antíteses, suas isískeles, suas homoiotelênton, que hoje são desprezadas, tinham grande efeito sobre o público. Liv. XII, pagina 106, Ex Editione Rhod. E portanto em vão que os oradores modernos apresentam o gosto de seus ouvintes como desculpa de suas medíocres realizações. Seria dar mostras de um estranho preconceito em favor da antiguidade não reconhecer a superioridade natural, em gosto e em discernimento, de um Parlamento britânico sobre uma multidão ateniense. (Nota do Autor) E mesmo assim seu estilo era mais casto e austero que o do outro orador, Pudesse esse estilo ser copiado, teria um infalível sucesso perante uma assembleia moderna. É uma rápida harmonia, rigorosamente ajustada ao sentido; é um raciocínio veemente, sem qualquer aparência de artifício; é o desdém, a cólera, a ousadia, a liberdade, tudo envolvido numa incessante corrente de argumentação. De todos os produtos humanos, os discursos de Demóstenes oferecem-nos o modelo que mais se aproxima da perfeição. Terceiro, poderia pretender-se que as desordens dos governos da antiguidade, Juntamente com os enormes crimes de que frequentemente os cidadãos se tornavam culpados, proporcionavam à eloquência um material muito mais abundante do que é possível encontrar entre os modernos. Sem Verres e Catilina não teria havido um Cícero. Mas é evidente que este motivo não pode ter grande peso, Seria fácil encontrar um Filipe nos tempos modernos; mas onde poderá encontrar-se um Demóstenes? Que resta então senão atribuir a culpa à falta de gênio, ou de critério, de nossos oradores, que, ou se viram incapacitados de atingir o nível da eloquência antiga, ou rejeitaram tais esforços como inadequados ao espírito das assembleias modernas? Se fossem coroadas de êxito algumas tentativas dessa natureza, talvez o gênio da nação fosse despertado, incentivando a emulação entre os jovens e habituando nossos ouvidos a uma elocução mais sublime e mais patética do que aquela que até agora lhes foi oferecida. Certamente há qualquer coisa de acidental na maneira como as artes, em todas as nações, surgem e se desenvolvem. Duvido que seja possível encontrar uma explicação satisfatória do fato de a Roma antiga, apesar de ter recebido todo o requinte da cultura grega, ter adquirido apenas a capacidade de apreciar a escultura, a pintura e a arquitetura, sem ter chegado à prática dessas artes - ao passo que a Roma moderna foi incentivada por meia dúzia de restos achados entre as ruínas da antiguidade, produzindo artistas da mais alta eminência e distinção. Se no decurso das guerras civis, quando a liberdade começava a ser plenamente instituída e as assembleias populares começavam a participar de todos os aspectos mais fundamentais do governo, houvesse surgido um talento oratório tão consumado como era o de Waller para a poesia, estou convencido de que tão ilustre exemplo teria imprimido à eloquência britânica uma direção completamente diferente, levando-nos a atingir a perfeição do modelo antigo. Nesse caso, nossos oradores teriam honrado seu país tanto como nossos poetas, geômetras e filósofos, e teriam surgido Cíceros britânicos, do mesmo modo que tivemos Arquimedes e Virgílios britânicos. Raramente ou mesmo nunca acontece, quando em qualquer povo predomina um falso gosto em poesia ou eloquência, que este continue sendo preferido ao verdadeiro, depois de bem comparar e refletir. Tal predomínio geralmente deriva apenas da ignorância do verdadeiro, e da falta de modelos perfeitos, capazes de permitir aos homens uma justa compreensão e uma apreciação mais refinada daqueles produtos do gênio. Quando estes aparecem, depressa reúnem em seu favor todos os sufrágios, conquistando, graças a suas naturais e poderosas qualidades, a preferência e a admiração mesmo dos mais preconceituosos. Não há homem onde não se encontrem os princípios de toda paixão e de todo sentimento. Quando adequadamente despertados, tais princípios adquirem vida e aquecem o coração, produzindo aquela satisfação pela qual se distingue entre uma obra de gênio e as belezas adulteradas que surgem de um fútil espírito e de uma caprichosa fantasia. E se esta observação é verdadeira com respeito a todas as belas-artes, deve ser especialmente verdadeira com respeito à eloquência - pois esta se destina meramente ao público em geral, não pode sob nenhum pretexto apelar do povo para juízes mais sofisticados, e está obrigada a submeter-se ao veredicto público, sem reservas nem limitações. Se após comparação alguém for considerado o maior orador por um auditório comum, sem dúvida esse alguém deve ser considerado tal pelos homens de ciência e de erudição. E, mesmo que um orador medíocre consiga impor-se durante muito tempo, sendo considerado inteiramente perfeito pelo vulgo, que se deixa satisfazer por suas realizações e jamais é capaz de ver seus defeitos, mesmo assim, quando aparece um autêntico gênio, este imediatamente atrai a atenção de todos, passando a ser considerado superior a seu rival. Ora, se julgarmos segundo esta regra, a eloquência antiga, isto é, a eloquência sublime e apaixonada, cor responde a um gosto muito mais acertado do que a argumentativa e racional eloquência moderna. E, desde que devidamente usada, sempre terá sobre os homens maior influência e autoridade. Estamos satisfeitos com nossa mediocridade porque nunca tivemos experiência de coisa melhor, mas os antigos tinham experiência dos dois tipos, e depois de compararem deram preferência àquele de que nos deixaram tão ilustres modelos. Porque, se não estou em erro, a eloquência moderna é do mesmo estilo ou da mesma espécie daquela que os críticos antigos denominavam eloquência ática, isto é, calma, elegante e sutil, que instruía a razão mais do que afetava as paixões, e nunca erguia o tom acima da argumentação e do discurso comum. Era assim a eloquência de Lísias entre os gregos, e de Calvo entre os romanos. Estes eram apreciados em seu tempo, mas quando comparados com Demóstenes e Cícero, eram eclipsados como uma vela sob os raios do sol do meio-dia. Estes últimos oradores eram dotados da mesma elegância, sutileza e capacidade de argumentação que os primeiros, mas o que acima de tudo os tomava admiráveis era aquele elemento patético e sublime que, em ocasiões adequadas, introduziam em seu discurso, e através do qual dominavam a opinião de seu público. Mal chegamos a ter na Inglaterra, pelo menos entre nossos oradores públicos, algum exemplo desta espécie de eloquência. Entre nossos escritores tivemos alguns exemplos que foram coroados de grande êxito e são de molde a mostrar a nossos jovens mais ambiciosos que é possível alcançar uma glória igualou superior, se tentarem fazer renascer a eloquência antiga. As produções de Lorde Boligbroke, com todos os seus defeitos de argumentação, método e exatidão, têm uma força e uma energia que nossos oradores mal procuram sequer alcançar, apesar de ser evidente que esse estilo elevado é muito mais próprio num orador do que num escritor, e capaz de um sucesso mais rápido e mais surpreendente. Nesse caso ele é secundado pelo fascínio da voz e da ação, os movimentos são mutuamente comunicados entre o orador e o auditório, e a própria visão de uma grande assembleia, atenta ao discurso de um só homem, deve inspirar-lhe uma elevação toda especial, suficiente para conferir propriedade às mais intensas figuras e expressões. É certo que existe um forte preconceito contra os discursos preparados, e é impossível fugir ao ridículo quando se repete um discurso como um estudante repete sua lição, sem levar em conta nada do que se adiantou no curso do debate. Mas qual é a necessidade de cair nesse absurdo? Todo orador público deve conhecer antecipadamente o problema que vai ser discutido. Pode compor todos os argumentos, objeções e respostas, do modo que julgar mais próprio para seu discurso. Se surgir alguma coisa nova, far-lhe-á face com sua invenção, e não será muito visível a diferença entre suas composições preparadas e suas improvisações. O espírito continua naturalmente com o mesmo ímpeto ou força que adquiriu em seu movimento, tal como um barco, uma vez impelido pelos remos, continua em seu curso durante algum tempo, depois de suspenso o impulso original. Vou terminar este assunto salientando que, mesmo que nossos oradores não quisessem dar mais elevação a seu estilo, nem pretendessem rivalizar com os antigos, poderiam corrigir um defeito capital de seus discursos, sem se afastarem do composto ar de raciocínio e argumentação a que limitam sua ambição. Sua pretensão de sempre improvisarem os discursos levou-os a rejeitar toda ordem e método, qualidades tão necessárias à argumentação, sem as quais dificilmente é possível introduzir no espírito uma inteira convicção. Não é que sejam de recomendar muitas divisões num discurso público, a não ser que o assunto as imponha com toda a evidência. Mas é fácil, sem esta formalidade, obedecer a um método, e tornar este método evidente para os ouvintes, que ficarão infinitamente encantados ao verem os argumentos surgir naturalmente uns dos outros, e serão persuadidos de modo muito mais eficaz do que o seriam pelas mais fortes razões, se estas fossem alinhadas de maneira confusa. DA TRAGÉDIA É aparentemente impossível dar conta do prazer que os espectadores de uma tragédia bem escrita recebem da tristeza, do terror, da ansiedade e de outras paixões que em s mesmas são incômodas e desagradáveis. Quanto mais são comovidos e afetados, mais se deliciam com o espetáculo e, assim que as paixões desagradáveis cessam sua influência, a peça chega ao fim. O máximo que uma composição deste tipo pode admitir é uma única cena de completa alegria, contentamento e segurança, e é quase certo tratar-se sempre da cena final. Se na textura da peça forem introduzidas quaisquer cenas de satisfação, estas produzem apenas pálidas luzes de prazer, incluídas unicamente a título de variedade, e a fim de mergulhar os atores numa aflição mais profunda, por meio desse contraste e da decepção daí resultante. Toda a arte do poeta é usada para despertar e manter a compaixão e a indignação, a ansiedade e o ressentimento de seu público. Sentem prazer na mesma proporção em que se afligem, e nunca são tão felizes como quando soltam soluços, lágrimas e gritos para dar vazão a seu desgosto e aliviar seu coração dilatado pela mais terna simpatia e compaixão. Os poucos críticos que possuem algumas luzes de filosofia notaram a existência deste fenômeno singular e esforçaram-se por dele dar conta. O Abade Dubos, em suas reflexões sobre a poesia e a pintura, sustenta que de maneira geral nada é mais desagradável ao espírito do que o lânguido e desinteressado estado de indolência no qual ele se deixa cair quando lhe retiram toda espécie de paixão e ocupação. Para fugir a esta penosa situação, lança mão de todo empreendimento ou diversão possível: trabalho, jogo, espetáculos, execuções, tudo o que seja capaz de despertar as paixões e afastar de si mesmo a atenção do espírito humano. Não importa qual seja a paixão: quer seja desagradável, entristecedora, melancólica ou desordenada, é sempre melhor do que aquele insípido langor que é consequência de uma perfeita tranquilidade e repouso. É impossível deixar de aceitar que esta explicação é pelo menos parcialmente satisfatória. Pode observar-se que, quando há diversas mesas de jogo, todos correm para aquela onde está o jogo mais forte, mesmo que nela não se encontrem os melhores jogadores. O espetáculo, real ou pelo menos imaginário, das intensas paixões resultantes de grandes perdas ou ganhos afeta o espectador por simpatia, oferece-lhe alguns toques das mesmas paixões e serve-lhe momentaneamente de distração. Faz que o tempo passe mais facilmente, e dá certo alívio àquela opressão que geralmente aflige os homens, quando inteiramente abandonados a seus próprios pensamentos e meditações. Os mentirosos vulgares sempre exageram, em suas narrações, toda espécie de perigos, dores, aflições, doenças, mortes, crimes e crueldades, do mesmo modo que a alegria, a beleza, a jovialidade e a magnificência. É um absurdo segredo que eles têm para agradar a seus interlocutores, captar sua atenção e prendê-los a essas narrativas fantásticas através das paixões e emoções que despertam. Todavia, há certa dificuldade em aplicar ao presente assunto esta solução, de maneira plena e completa, por mais engenhosa e satisfatória que possa parecer. É inegável que os mesmos objetos de aflição que nos agradam numa tragédia, se estivessem realmente perante nós, provocariam o mais indisfarçável desagrado, embora na peça constituam a cura mais eficaz do langor e da indolência. Monsieur Fontenelle parece ter tido consciência desta dificuldade, e consequentemente procurou outra solução para o fenômeno, ou pelo menos apresenta certa contribuição nova à teoria acima referida. "O prazer e a dor", diz ele, "que são dois sentimentos em si mesmos tão diferentes, não diferem tanto quanto a suas causas. O exemplo das cócegas mostra bem que o movimento do prazer, quando levado demasiado longe, se transforma em dor, e que o movimento da dor, quando um pouco atenuado, se transforma em prazer. É daí que deriva a existência de algo como uma tristeza suave a agradável: é uma dor enfraquecida e diminuída. O coração gosta naturalmente de ser comovido e afetado. Aceita bem os objetos melancólicos, e mesmo os desastrosos e lamentáveis, desde que sejam suavizados pela mesma circunstância. É inegável que no teatro a representação tem quase o efeito da realidade, e no entanto não chega a ter completamente esse efeito. Por mais arrebatado que se seja pelo espetáculo, por maior que seja o domínio dos sentidos e da imaginação sobre a razão, continua persistindo no fundo uma certa ideia da falsidade de tudo quanto se vê. Esta ideia, embora fraca e disfarçada, é suficiente para diminuir a dor que sofremos com os infortúnios daqueles que amamos, e para reduzir essa aflição a um grau tal, que se transforma em prazer. Choramos pelas desgraças de um herói a que somos afeiçoados. No mesmo instante nos consolamos, refletindo que se trata apenas de uma ficção. E é precisamente essa mistura de sentimentos que constitui uma tristeza agradável, e provoca lágrimas que nos deliciam. Mas, como a aflição causada pelos objetos exteriores e sensíveis é mais forte do que o consolo derivado da reflexão interior, são os efeitos e sintomas da tristeza que devem predominar nessa composição." Esta solução parece exata e convincente, mas talvez precise de mais uma nova contribuição, para torná-la capaz de explicar cabalmente o fenômeno aqui examinado. Todas as paixões despertadas pela eloquência são agradáveis ao mais alto grau, do mesmo modo que as provocadas pela pintura e pelo teatro. Os epílogos de Cícero, sobretudo quanto a este aspecto, fazem as delícias de todo leitor de bom gosto, e é difícil ler alguns deles sem sentir a maior simpatia e tristeza. Seu mérito como orador depende indubitavelmente, em grande medida, de seu sucesso neste particular. As lágrimas que fazia jorrar dos olhos de seus juízes e de todo auditório passavam a constituir então o prazer mais delicioso, e exprimiam a maior satisfação como orador. A patética descrição do massacre dos capitães sicilianos por Verres é uma obra-prima do gênero, mas estou certo de que ninguém pretenderia encontrar qualquer distração no contato direto com uma cena melancólica dessa natureza. E no discurso a tristeza não era suavizada pela ficção, porque o público estava convencido da realidade de todos os pormenores. O que há então que neste caso é capaz de extrair prazer do próprio peito do desagrado, por assim dizer, e um prazer que conserva ainda todos os traços e sintomas exteriores da aflição e da tristeza? Minha resposta é que esse extraordinário efeito deriva daquela mesma eloquência com que a cena melancólica é representada. O gênio necessário para pintar objetos de maneira viva, a arte de reunir todas as circunstâncias patéticas, o discernimento empregado em dispô-las; o exercício desses nobres talentos, juntamente com a força da expressão e a beleza das peças de oratória, difundem no auditório a mais alta satisfação e excitam os mais deliciosos movimentos. Por este meio, não apenas o desagrado das paixões melancólicas é superado e apagado por um elemento mais forte e de espécie contrária, mas todo o impulso dessas paixões é transformado em prazer, ampliando o deleite que a eloquência desperta em nós. A mesma força de oratória aplicada a um objeto desinteressante não nos agradaria nem metade, ou melhor, pareceria inteiramente ridícula, e o espírito, perdido numa absoluta calma e indiferença, não apreciaria qualquer dessas belezas da imaginação ou da expressão, que juntas à paixão lhe ofereciam tão requintada diversão. O impulso ou veemência que deriva da tristeza, da compaixão, da indignação, recebe uma nova direção dos sentimentos de beleza. Constituindo a emoção predominante, estes últimos apoderam-se de todo o espírito e convertem as primeiras em si mesmos, ou pelo menos tingem-nas com tal intensidade, que modificam inteiramente sua natureza. E a alma, sendo ao mesmo tempo despertada pela paixão e fascinada pela eloquência, sente no conjunto um forte movimento que é plenamente delicioso. O mesmo princípio opera também na tragédia, com mais um aspecto, que a tragédia é uma imitação, e a imitação é sempre agradável em si mesma. Esta circunstância contribui ainda mais para suavizar os movimentos da paixão, e transforma tudo o que é sentido num uniforme e intenso prazer. Os objetos capazes de inspirar o maior terror e aflição são agradáveis na pintura, e mais agradáveis do que os mais belos objetos, que parecem calmos e indiferentes. “Os pintores não hesitam em representar a aflição e a tristeza, do mesmo modo que qualquer outra paixão. Mas não parecem insistir nestas melancólicas afeições tanto como os poetas, que, embora se dediquem a copiar todos os movimentos do coração humano, deixam passar muito rapidamente os sentimentos agradáveis. O pintor representa apenas um instante e, se esse instante for suficientemente apaixonante, não poderá deixar de afetar e de deliciar o espectador. Mas nada é capaz de possibilitar ao poeta certa variedade de cenas, incidentes e sentimentos, exceto a aflição, o terror e a ansiedade. A alegria e satisfação totais são acompanhadas de segurança, e não deixam lugar para a ação. (Nota do Autor)” A afecção, despertando o espírito, produz uma grande intensidade e veemência, que é inteiramente transformada em prazer pela força do movimento dominante. É assim que a ficção da tragédia suaviza a paixão, mediante a infusão de um novo sentimento, e não apenas através do enfraquecimento ou diminuição da tristeza. É possível ir enfraquecendo gradualmente uma tristeza real até fazê-la desaparecer inteiramente, mas em nenhuma dessas gradações ela chegará a provocar prazer, a não ser talvez por acidente, a um homem mergulhado em letárgica indolência, a quem ela vá despertar desse lânguido estado. Para confirmar esta teoria, bastará apresentar outros exemplos em que o movimento subordinado se transforma no dominante e vem dar força a este, embora seja de natureza diferente e por vezes até contrária. A novidade desperta naturalmente o espírito, do mesmo modo que atrai a atenção, e os movimentos que provoca são sempre transformados em qualquer paixão pertencente ao objeto, vindo acrescentar a esta sua força. Quer um acontecimento provoque alegria ou tristeza, orgulho ou vergonha, raiva ou boa vontade, é inevitável que produza uma afecção intensa, sempre que é novo e inabitual. E, embora a novidade seja em si mesma agradável, intensifica tanto as paixões dolorosas quanto as agradáveis. Se tivermos intenção de comover uma pessoa ao máximo com a narração de qualquer acontecimento, o melhor método para intensificar a comoção consistirá em demorar habilmente a informá-la do fato, começando por excitar sua curiosidade e impaciência, antes de a deixar conhecer o segredo. É este o artifício utilizado por lago na famosa cena de Shakespeare, e todo espectador tem consciência de que o ciúme de Otelo recebe uma força adicional desta impaciência anterior, e que a paixão subordinada prontamente se transforma na predominante. As dificuldades intensificam paixões de toda a espécie e, despertando nossa atenção e excitando nossos poderes ativos, produzem uma emoção que vai alimentar a afecção dominante. Em geral, os pais amam mais profundamente os filhos cuja constituição ou cujo corpo enfermiço e doente deu origem a mais sofrimento, perturbação e ansiedade ao criá-los. Neste caso, o sentimento ou afecção agradável recebe força dos sentimentos de desagrado. Nada torna um amigo mais querido para nós do que o desgosto por sua morte. O prazer de sua companhia não possui influência tão poderosa. O ciúme é uma paixão dolorosa, mas sem certa dose dele a agradável afecção do amor tem dificuldade em conservar-se com sua plena força e violência. A ausência é também uma grande fonte de lamentações entre os amantes, e provoca neles o maior desagrado. No entanto, nada é mais favorável a sua mútua paixão do que pequenos intervalos desse tipo. E, se os grandes intervalos muitas vezes são fatais, é apenas porque, com o tempo, a tal ponto os homens se habituam a eles, que deixam de provocar desagrado. O ciúme e a ausência no amor constituem o dolce peccante dos italianos, que eles consideram tão essencial para todo prazer. Há uma penetrante observação de Plínio, o Velho, que serve de ilustração ao princípio em que aqui se insiste. É coisa muito notável, diz ele, que as últimas obras dos artistas célebres, por eles deixadas inacabadas, são sempre as mais estimadas, tais como a Íris de Aristides, as Tindâridas de Nicâmaco, a Medéia de Timânaco ou a Vênus de Apeles. Estas chegam a ser mais consideradas do que as produções acabadas. As linhas interrompidas da peça e a ideia semiformada do pintor são cuidadosamente estudadas, e o próprio desgosto que sentimos por aquela mão curiosa que foi detida pela morte dá uma contribuição adicional a nosso prazer. Estes exemplos (e muitos poderiam ser citados) são suficientes para nos permitir certa compreensão da analogia da natureza, e para mostrar-nos que o prazer provocado pelos poetas, oradores e músicos, despertando em nós o desgosto, a tristeza, a indignação, a compaixão, não é tão extraordinário e paradoxal como à primeira vista pode parecer. A força da imaginação, a energia da expressão, o poder dos números, os encantos da imitação, tudo isto constitui, naturalmente e por si mesmo, uma delícia para o espírito. E, quando o objeto apresentado capta também alguma afecção, o prazer aumenta ainda mais em nós, mediante a transformação deste movimento subordinado naquele que é predominante. A paixão, todavia, talvez possa naturalmente, e quando excitada pela simples presença de um objeto real, ser dolorosa. Mas é de tal modo suavizada, amaciada e amolecida, quando são as belas-artes que a despertam, que proporciona a mais elevada espécie de entretenimento. Em confirmação deste raciocínio, pode observar-se que, quando os movimentos da imaginação não predominam sobre os da paixão, ocorre o efeito contrário. Pois os primeiros, passando agora a ser subordinados, são transformados nos segundos, e aumentam ainda mais a dor e a aflição de quem sofre. Quem poderia jamais considerar uma boa maneira de confortar um pai inconsolável, exagerar, com toda a força da elocução, a perda irreparável que ele sofreu com a morte de seu filho preferido? Quanto maior for o poder de imaginação e expressão utilizado, mais se aumentará seu desespero e sua aflição. A vergonha, confusão e terror de Verres indubitavelmente aumentaram proporcionalmente à nobre eloquência e veemência de Cícero, e do mesmo modo sua dor e seu desagrado. As primeiras paixões eram demasiado fortes para o prazer derivado das belezas da elocução, e agiram, embora segundo o mesmo princípio, de maneira contrária à simpatia, compaixão e indignação do auditório. Lorde Clarendon, ao aproximar-se da catástrofe do partido realista, considerou que nesse momento sua narração deveria tornar-se infinitamente desagradável, e passou por cima da morte do rei, sem nos descrever uma única das circunstâncias que a acompanharam. Considerou-a uma cena demasiado horrível para ser contemplada com qualquer espécie de satisfação, ou mesmo com o máximo de dor e de aversão. Ele próprio, do mesmo modo que os leitores dessa época, estava demasiado interessado nos acontecimentos, e sentia dor com acontecimentos que um historiador ou um leitor de outra época encararia como extremamente patéticos e interessantes, e portanto extremamente agradáveis. É possível que uma ação representada numa tragédia seja excessivamente sanguinolenta e atroz. Ela pode provocar tais movimentos de horror, que seja impossível suavizá-los e transformá-los em prazer, e a energia expressiva mais intensa conferida a descrições desta natureza serve apenas para aumentar o desagrado. É esse o caso da ação representada na Madrasta Ambiciosa, onde um homem venerável, levado ao extremo da fúria e do desespero, corre para uma coluna e, batendo nela com sua cabeça, enche-a toda com miolos e sangue misturados. O teatro inglês abunda excessivamente nessas imagens chocantes. Mesmo os mais vulgares sentimentos de compaixão precisam ser suavizados por alguma afecção agradável, a fim de proporcionar ao público uma satisfação completa. O mero sofrimento da virtude gemedora, sob a triunfante tirania e opressão do vício, constitui um espetáculo desagradável, e é cuidadosamente evitado por todos os mestres do palco. Para que o público vá embora inteiramente contente e satisfeito, é preciso que a virtude se transforme num nobre e corajoso desespero, ou que o vício receba o devido castigo. Sob este aspecto, a maioria dos pintores parece ter sido muito infeliz em seus temas. Como trabalhavam muito para igrejas e conventos, representaram sobretudo cenas horríveis, como martírios e crucificações, onde só aparecem torturas, feridas, execuções e sofrimento passivo, sem qualquer ação ou afecção. Quando seu pincel se afastava desta espectral mitologia, geralmente recorriam a Ovídio, cujas ficções, embora apaixonadas e agradáveis, mal chegam a ser suficientemente naturais ou verossímeis para serem utilizadas na pintura. A mesma inversão daquele princípio em que aqui se insiste se verifica na vida cotidiana, e não apenas nos efeitos da oratória e da poesia. Se a paixão subordinada for intensificada a ponto de se tornar dominante, ela absorve aquela afecção que anteriormente alimentava e incrementava. O excesso de ciúme leva à extinção do amor, o excesso de dificuldades torna-nos indiferentes, e o excesso de doença e enfermidade provoca o desagrado de um pai egoísta e insensível. Que pode haver de mais desagradável do que as lúgubres, tristes e desastrosas estórias que as pessoas melancólicas contam a seus companheiros? Como nesse caso é só a paixão desagradável que é despertada, sem que seja acompanhada de qualquer espécie de vivacidade, de gênio ou de eloquência, ela comunica um puro desagrado, e nada vem suavizá-la e transformá-la em prazer e satisfação. DO PADRÃO DO GOSTO É demasiado óbvia para deixar de ser notada por todos a extrema variedade de gostos que há no mundo, assim como de opiniões. Mesmo os homens de parcos conhecimentos são capazes de notar as diferenças de gosto dentro do estreito círculo de suas relações, inclusive entre pessoas que foram educadas sob o mesmo governo e em quem desde cedo foram inculcados os mesmos preconceitos. Mas os que são capazes de uma visão mais ampla, e conhecem nações distantes e épocas remotas, ainda mais se surpreendem com essa grande inconsistência e contraditoriedade. Temos tendência para chamar bárbaro tudo o que se afasta muito de nosso gosto e de nossas concepções, mas depressa vemos que esse epíteto ou censura também pode ser-nos aplicado. E mesmo o mais arrogante e convicto acaba por sentir-se abalado, ao observar em todos os lados uma idêntica segurança, passando a ter escrúpulos, em meio a tal contrariedade de sentimentos, de pronunciar-se positivamente em seu próprio favor. Se por um lado esta variedade de gostos é evidente para o observador mais descuidado, por outro lado uma atenta investigação mostrará que ela ainda é maior na realidade do que na aparência. Muitas vezes os sentimentos dos homens divergem a respeito da beleza e da deformidade de toda a espécie, inclusive quando seu discurso geral é o mesmo. Em todas as línguas há certos termos que implicam censura, e outros aprovação, e todos os homens que usam a mesma língua precisam concordar na aplicação que dão a esses termos. Todas as vozes se unem para aplaudir a elegância, a propriedade, o espírito e a simplicidade no escrever, e para censurar o estilo bombástico, a afetação, a frieza e o falso brilhantismo. Mas, quando os críticos discutem os casos particulares, esta aparente unanimidade se desvanece, e descobre-se que atribuíam sentidos muito diferentes a suas expressões. Em todas as questões de opinião e de ciência se dá o caso contrário: as divergências entre as pessoas surgem mais vezes a respeito de generalidades do que de casos particulares, e são mais aparentes do que reais. Em geral basta uma explicação dos termos para pôr fim à controvérsia, e o contendores descobrem com surpresa que estavam discutindo, quando no fundo concordavam em suas conclusões. Aqueles para quem a moral depende mais do sentimento do que da razão tendem a englobar a ética na primeira observação, sustentando que em todas as questões respeitantes à conduta e aos costumes as diferenças entre os homens são maiores na realidade do que à primeira vista podem parecer. É óbvio, sem dúvida, que os autores de todas as nações e de todas as épocas concordam em aplaudir a justiça, o humanitarismo, a magnanimidade, a prudência, a veracidade, e em censurar as qualidades opostas a estas. Mesmo entre os poetas e outros autores cujas composições se destinam sobretudo a agradar à imaginação, se verifica, desde Homero até Fénelon, a defesa dos mesmos preceitos morais e a concessão do aplauso ou da censura às mesmas virtudes e vícios. Geralmente esta extrema unanimidade é atribuída à influência da simples razão, que em todos os casos inspira aos homens os mesmos sentimentos, evitando essas controvérsias a que tanto estão sujeitas as ciências abstratas. Na medida em que esta unanimidade é real, é forçoso considerar satisfatória esta explicação, mas é preciso reconhecer também que uma parte dessa aparente harmonia em moral talvez possa ser explicada a partir da própria natureza da linguagem. A palavra virtude, que é equivalente em todas as línguas, implica aprovação, do mesmo modo que vício implica censura. E ninguém poderia, sem a mais óbvia e grosseira impropriedade, ligar a ideia de censura a um termo que geralmente é entendido num bom sentido, ou evocar a ideia de aplauso quando o idioma exige a de desaprovação. Os preceitos gerais de Homero, na medida em que ele os formula, nunca serão objeto de controvérsia, mas é evidente que, quando desenha cenas concretas de costumes e representa o heroísmo de Aquiles e a prudência de Ulisses, mistura um grau muito maior de ferocidade ao primeiro, e de astúcia e fraude ao segundo, do que Fénelon poderia admitir. Na obra do poeta grego, o sábio Ulisses parece deliciar-se com suas mentiras e ficções, usando-as muitas vezes sem qualquer necessidade, e mesmo sem qualquer vantagem. Mas seu filho, mais escrupuloso, na obra do épico francês, prefere expor-se aos mais iminentes perigos a desviar-se do caminho da mais rigorosa fidelidade à verdade. Os admiradores e seguidores do Corão insistem nos excelentes preceitos morais que se encontram dispersos por essa obra caótica e absurda. Mas deve supor-se que as palavras árabes correspondentes a termos como equidade, justiça, temperança, mesquinhez, caridade, no uso constante dessa língua, eram sempre tomadas num bom sentido. E que seria dar mostras da maior ignorância, não da moral, mas da linguagem, usá-las com um significado diferente do aplauso e da aprovação. Mas como podemos saber se o pretenso profeta conseguiu realmente chegar a uma justa concepção da moral? Concentremo-nos em sua narração, e logo veremos que dá seu aplauso a instâncias como a traição, a desumanidade, a crueldade, a vingança e a beatice, que são inteiramente incompatíveis com a sociedade civilizada. Essa obra não parece ter seguido qualquer regra fixa de direito, e cada ação só é condenada ou elogiada na medida em que é benéfica ou prejudicial para os verdadeiros crentes. É inegavelmente muito pequeno o mérito de estabelecer em ética autênticos preceitos gerais. Quem recomenda quaisquer virtudes morais na realidade não faz mais do que o que está implicado nos próprios termos. As pessoas que inventaram a palavra caridade, e a usaram em um bom sentido, contribuíram de maneira muito mais clara e muito mais eficaz para inculcar o preceito sê caridoso do que qualquer pretenso legislador ou profeta que incluísse essa máxima em seus escritos. De entre todas as expressões, são aquelas que implicam, juntamente com seu outro significado, certo grau de censura ou aprovação as que menos se encontram sujeitas a ser pervertidas ou erradamente compreendidas. É natural que procuremos encontrar um padrão de gosto, uma regra capaz de conciliar as diversas opiniões dos homens, pelo menos uma decisão reconhecida, aprovando uma opinião e condenando outra. Há uma espécie de filosofia que impede toda esperança de sucesso nessa tentativa, concluindo pela impossibilidade de se vir jamais a atingir qualquer padrão do gosto. Diz ela que há uma diferença muito grande entre o julgamento e o sentimento. O sentimento está sempre certo - porque o sentimento não tem outro referente senão ele mesmo, e é sempre real, quando alguém tem consciência dele. Mas nem todas as determinações do entendimento são certas, porque têm como referente alguma coisa além delas mesmas, a saber, os fatos reais, e nem sempre são conformes a esse padrão. Entre mil e uma opiniões que pessoas diferentes podem ter a respeito do mesmo assunto, há uma e apenas uma que é justa e verdadeira - e a única dificuldade é encontrá-la e confirmá-la. Pelo contrário, os mil e um sentimentos diferentes despertados pelo mesmo objeto são todos certos, porque nenhum sentimento representa o que realmente está no objeto. Ele se limita a assinalar certa conformidade ou relação entre o objeto e os órgãos ou faculdades do espírito, e, se essa conformidade realmente não existisse, o sentimento jamais poderia ter ocorrido. A beleza não é uma qualidade das próprias coisas, existe apenas no espírito que as contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente. É possível até uma pessoa encontrar deformidade onde outra vê apenas beleza, e todo indivíduo deve aquiescer a seu próprio sentimento, sem ter a pretensão de regular o dos outros. Procurar estabelecer uma beleza real, ou uma deformidade real, é uma investigação tão infrutífera como procurar determinar uma doçura real ou um amargor real. Conforme a disposição dos órgãos do corpo, o mesmo objeto tanto pode ser doce como amargo, e o provérbio popular afirma com muita razão que gostos não se discutem. É muito natural, e mesmo absolutamente necessário, aplicar este axioma ao gosto mental, além do gosto corpóreo, e assim o senso comum, que tão frequentemente diverge da filosofia, sobretudo da filosofia cética, ao menos num caso está de acordo em proferir idêntica decisão. Mas, apesar do fato de este axioma se ter transformado em provérbio, parecendo assim ter recebido a sanção do senso comum, é inegável haver um tipo de senso comum que se lhe opõe, ou pelo menos tem a função de modificá-lo e restringi-lo. Quem quer que afirmasse a igualdade de gênio e elegância de Ogilby e Milton, ou de Bunyan e Addison, não seria considerado defensor de menor extravagância do que se afirmasse que o montículo feito por uma toupeira é mais alto do que o rochedo de Tenerife, ou que um charco é mais vasto do que o oceano. Embora se possam encontrar pessoas que dão preferência aos primeiros autores, ninguém dá importância a esse gosto, e não temos qualquer escrúpulo em afirmar que a opinião desses pretensos críticos é absurda e ridícula. Nesse momento esquece-se inteiramente o princípio da natural igualdade dos gostos que, embora seja admitido em alguns casos, quando os objetos parecem estar quase em igualdade, assume o aspecto de um extravagante paradoxo, ou antes, de um evidente absurdo, quando se comparam objetos tão desproporcionados. É evidente que nenhuma das regras da composição é estabelecida por raciocínio a priori ou pode ser confundida com uma conclusão abstrata do entendimento, através da comparação daquelas tendências e relações de ideias que são eternas e imutáveis. Seu fundamento é o mesmo que o de todas as ciências práticas, isto é, a experiência. E elas não passam de observações gerais, relativas ao que universalmente se verificou agradar em todos os países e em todas as épocas. Muitas das belezas da poesia, e mesmo da eloquência, assentam na falsidade e na ficção, em hipérboles, metáforas e no abuso ou perversão dos termos em relação a seu significado natural. Eliminar as investi das da imaginação, reduzindo toda expressão a uma verdade e uma exatidão geométricas, seria inteiramente contrário às leis da crítica. Porque o resultado seria a produção do tipo de obra que a experiência universal mostrou ser o mais insípido e desagradável. No entanto, embora a poesia jamais possa submeter-se à exata verdade, mesmo assim ela deve ser limitada pelas regras da arte, descobertas pelo autor através de seu gênio ou da observação. Se alguns autores negligentes ou irregulares conseguiram agradar, não foi graças a suas transgressões das regras e da ordem; foi porque, apesar dessas transgressões, suas obras possuíam outras belezas, que estavam de acordo com a justa crítica. E a força dessas belezas foi capaz de sobrepujar a censura, dando ao espírito uma satisfação superior ao desagrado proveniente de seus defeitos. Não é graças a suas monstruosas improváveis ficções que Ariosto nos agrada, nem a sua bizarra mistura do estilo cômico e do estilo sério, nem à falta de coerência de suas estórias, nem às constantes interrupções de sua narrativa. Ele nos fascina com a força e a clareza de suas expressões, com a prontidão e variedade de suas invenções e com a naturalidade de seus retratos das paixões, sobretudo as de tipo amoroso e alegre. Por mais que seus defeitos possam diminuir nossa satisfação, nunca são capazes de destruí-Ia inteiramente. Se nosso prazer realmente derivasse daqueles aspectos de seu poema que consideramos defeitos, isso não constituiria uma objeção contra a crítica em geral, seria apenas uma objeção contra determinadas regras da crítica que pretendem definir certas características como defeitos, e apresentá-las como universalmente condenáveis. Se se verifica que elas agradam, elas não podem ser defeitos, por mais que o prazer delas derivado seja inesperado e incompreensível. Mas, embora todas as regras gerais da arte assentem unicamente na experiência e na observação dos sentimentos comuns da natureza humana, não devemos supor que, em todos os casos, os homens sintam de maneira conforme a essas regras. Estas emoções mais sutis do espírito são de natureza extremamente delicada e frágil, e precisam do concurso de grande número de circunstâncias favoráveis para fazê-las funcionar de maneira fácil e exata, segundo seus princípios gerais e estabelecidos. O menor dano exterior causado a essas pequenas molas, ou a menor desordem interna, é o bastante para perturbar seu movimento, e confundir a operação do mecanismo inteiro. Se quisermos proceder a um experimento desta natureza e avaliar a força de qualquer beleza ou deformidade, precisamos escolher com cuidado o momento e lugar adequados, e colocar a fantasia na situação e disposição devidas. Uma perfeita serenidade de espírito, concentração do pensamento, a devida atenção ao objeto: se faltar qualquer destas circunstâncias, nosso experimento será falacioso e seremos incapazes de avaliar a católica e universal beleza. A relação que a natureza estabeleceu entre a forma e o sentimento será pelo menos mais obscura, e será preciso grande discernimento para identificá-la e analisá-la. Seremos capazes de determinar sua influência, não a partir da operação de cada beleza particular, mas a partir da duradoura admiração provocada por aquelas obras que sobreviveram a todos os caprichos da moda, a todos os erros da ignorância e da inveja. O mesmo Homero que agradava a Atenas e Roma há dois mil anos é ainda admirado em Paris e Londres. Todas as diferenças de clima, governo, religião e linguagem foram incapazes de obscurecer sua glória. A autoridade ou o preconceito são capazes de dar uma voga temporária a um mau poeta ou orador, mas sua reputação jamais poderá ser duradoura ou geral. Quando suas composições forem examinadas pela posteridade ou por estrangeiros, o encanto estará dissipado, e seus defeitos aparecerão em suas verdadeiras cores. Pelo contrário, no caso de um verdadeiro gênio, quanto mais suas obras durarem, mais amplo será seu sucesso, e mais sincera a admiração que despertam. Dentro de um círculo restrito há demasiado lugar para a inveja e o ciúme, e até a familiaridade com sua pessoa pode diminuir o aplauso devido a suas obras. Quando desaparecem estes obstáculos, as belezas que naturalmente estão destinadas a provocar sentimentos agradáveis manifestam imediatamente sua energia. E sempre, enquanto o mundo durar, conservarão sua autoridade sobre os espíritos humanos. Vemos portanto que, em meio a toda variedade e capricho do gosto, há certos princípios gerais de aprovação ou de censura, cuja influência um olhar cuidadoso pode verificar em todas as operações do espírito. Há determinadas formas ou qualidades que, devido à estrutura original da constituição interna do espírito, estão destinadas a agradar, e outras a desagradar. Se em algum caso particular elas deixam de ter efeito, é devido a qualquer evidente deficiência ou imperfeição do órgão. Um homem cheio de febre não pretende que seu paladar seja capaz de distinguir os sabores, nem outro com um ataque de icterícia teria a pretensão de pronunciar um veredicto a respeito de cores. Para todas as criaturas há um estado de saúde e um estado de enfermidade, e só do primeiro podemos esperar receber um verdadeiro padrão do gosto e do sentimento. Se, no estado saudável do órgão, se verificar uma uniformidade completa ou considerável nas opiniões dos homens, podemos daí derivar uma ideia da perfeita beleza. Da mesma maneira que a aparência dos objetos à luz do dia, aos olhos das pessoas saudáveis, é chamada sua cor verdadeira e real, mesmo que se reconheça que a cor é simplesmente um fantasma dos sentidos. São muitos e frequentes os defeitos dos órgãos internos que evitam ou enfraquecem a influência daqueles princípios gerais de que depende nosso sentimento da beleza ou da deformidade. Embora alguns objetos estejam naturalmente destinados a provocar prazer, devido à estrutura do espírito, não é de esperar que em todos os indivíduos o prazer seja igualmente sentido. Podem ocorrer determinados incidentes e situações que, ou lançam sobre os objetos uma falsa luz, ou impedem a luz verdadeira de levar à imaginação o devido sentimento e percepção. Uma causa evidente em razão da qual muitos não experimentam o devido sentimento de beleza é a falta daquela delicadeza da imaginação que é necessária para se ser sensível àquelas emoções mais sutis. Toda a gente pretende ter esta delicadeza, todos falam dela, e procuram tomá-la como padrão de toda espécie de gosto e sentimento. Mas como neste ensaio nossa intenção é misturar algumas luzes de entendimento com as impressões do sentimento, será adequado oferecer uma definição da delicadeza mais rigorosa do que as até agora tentadas. E, para não extrair nossa filosofia de uma fonte excessivamente profunda, recorreremos a um conhecido episódio do Dom Quixote. É com muita razão, diz Sancho ao escudeiro de nariz comprido, que pretendo ser bom apreciador de vinho: é uma qualidade hereditária em nossa família. Dois de meus parentes foram uma vez chamados a dar sua opinião sobre um barril de vinho que era de esperar fosse excelente, pois era velho e de boa colheita. Um deles prova o vinho, examina-o, e depois de madura reflexão declara que ele seria bom, não fora um ligeiro gosto a couro que nele encontrava. O outro, depois de empregar as mesmas precauções, dá também um veredicto favorável ao vinho, com a única reserva de um sabor a ferro que facilmente podia nele distinguir. Não podes imaginar como ambos foram ridicularizados por seu juízo. Mas quem riu por último? Ao esvaziar o barril, achou-se no fundo uma velha chave com uma correia de couro amarrada. A grande semelhança entre o gosto mental e o corpóreo facilmente nos permitirá aplicar esta estória. Embora seja inegável que a beleza e a deformidade, mais do que a doçura e o amargor, não são qualidades dos objetos, e pertencem inteiramente ao sentimento, interno ou externo, é preciso reconhecer que há nos objetos certas qualidades que estão por natureza destinadas a produzir esses peculiares sentimentos. Ora, como essas qualidades podem estar presentes em pequeno grau, ou podem misturar-se e confundir-se umas com as outras, acontece muitas vezes que o gosto não é afetado por essas diminutas qualidades, ou é incapaz de distinguir entre os diversos sabores, em meio à desordem em que eles se apresentam. Quando os órgãos são tão finos que não deixam escapar nada, e ao mesmo tempo são suficientemente apurados para distinguir todos os ingredientes da composição, dizemos que há uma delicadeza de gosto, quer empreguemos estes termos em sentido literal ou em sentido metafórico. Portanto, podemos aqui aplicar as regras gerais da beleza, pois elas são tiradas de modelos estabelecidos e da observação do que agrada ou desagrada, quando apresentado isoladamente e em alto grau. Se as mesmas qualidades, numa composição contínua e em menor grau, não afetam os órgãos com um sensível deleite ou desagrado, excluímos a pessoa de toda pretensão a esta delicadeza. Estabelecer essas regras gerais, esses padrões reconhecidos da composição, é como achar a chave com correia de couro que justificou o veredicto dos parentes de Sancho e confundiu os pretensos juízes que os haviam condenado. Mesmo que o barril nunca tivesse sido esvaziado, o gosto dos primeiros seria igualmente delicado, e o dos segundos igualmente lânguido e embotado. Mas teria sido mais difícil provar a superioridade do primeiro, convencendo todos os presentes. De maneira semelhante, mesmo que as belezas literárias nunca tivessem sido metodicamente reduzidas a princípios gerais, e nunca tivessem sido definidos certos modelos de reconhecida excelência, mesmo assim continuariam a existir diferentes graus de gosto, e o veredicto de uns continuaria sendo preferível ao de outros. Mas não seria tão fácil reduzir o mau crítico ao silêncio, pois ele poderia continuar insistindo em sua opinião pessoal, recusando submeter-se a seu antagonista. Mas quando podemos apresentar-lhe um princípio artístico reconhecido, quando ilustramos esse princípio com exemplos cujas operações, segundo seu próprio gosto pessoal, ele reconhece serem conformes ao princípio, quando provamos que o mesmo princípio pode ser aplicado ao presente caso, no qual ele não conseguiu perceber ou sentir sua influência, então ele é forçado a concluir que o defeito está nele mesmo, e que carece da delicadeza necessária para torná-lo sensível a todas as belezas e a todas as deficiências, em qualquer composição ou discurso. A capacidade de perceber da maneira mais exata os objetos mais diminutos, sem permitir que nada escape à atenção e à observação, é reconhecida como a perfeição de cada um dos sentidos e faculdades. Quanto menores são os objetos que o olhar pode captar, mais sensível é o órgão, e mais elaborada é sua constituição e composição. Não é com sabores fortes que se põe à prova um bom paladar, mas com uma mistura de pequenos ingredientes, procurando ver se somos sensíveis a cada uma das partes, apesar de serem Íntimas e de estarem confundidas com o resto. De maneira semelhante, a rápida e aguda percepção da beleza deve ser a perfeição de nosso gosto mental, e nenhum homem pode sentir-se satisfeito consigo mesmo se suspeitar que lhe passou despercebida qualquer excelência ou deficiência de um discurso. Neste caso verifica-se a união entre a perfeição do homem e a perfeição do sentido ou sentimento. Em muitas ocasiões, uma grande delicadeza de paladar pode ser um grave inconveniente tanto para o possuidor como para os seus amigos, mas a delicadeza do gosto pelo espírito ou pela beleza será sempre uma qualidade desejável, porque é a fonte de todos os mais finos e inocentes prazeres de que é suscetível a natureza humana. Opinião esta em que concordam os sentimentos de todos os homens. Sempre que mostramos possuir delicadeza de gosto somos recebidos com aprovação, e a melhor maneira de mostrá-la é apelar para os modelos e princípios que foram estabelecidos pelo consentimento e experiência uniforme de todas as nações e de todas as épocas. Embora haja, quanto a esta delicadeza, uma grande diferença natural entre uma pessoa e outra, nada contribui mais para aumentar e aperfeiçoar este talento do que a prática de uma das artes e o frequente exame e contemplação de uma espécie determinada de beleza. Da primeira vez que qualquer espécie de objeto se apresenta ao olhar ou à imaginação, o sentimento que provoca é obscuro e confuso, e o espírito se sente em grande medida incapaz de pronunciar-se quanto a seus méritos e defeitos. O gosto não consegue perceber as várias excelências do objeto, e muito menos consegue distinguir o caráter particular de cada excelência e determinar sua qualidade e seu grau. O máximo que pode esperar-se é que declare de uma maneira geral que o conjunto é belo ou disforme, e é natural que mesmo esta opinião só seja formulada, por uma pessoa com tanta falta de prática, com a maior hesitação ou reserva. Mas se a deixarem adquirir experiência desses objetos seu sentimento se tornará mais exato e mais sutil. Não apenas perceberá as belezas e defeitos de cada parte, como também assinalará o caráter distinto de cada qualidade e proferirá a aprovação ou censura adequada. Toda a sua contemplação dos objetos é acompanhada por um sentimento claro e distinto, e é capaz de distinguir o próprio grau ou tipo de aprovação ou desprazer que cada parte está naturalmente destinada a provocar. Dissipa-se aquela névoa que antes parecia pairar sobre o objeto. O órgão adquire maior perfeição em suas operações, e torna-se capaz de pronunciar-se, sem perigo de erros, sobre os méritos de qualquer produção. Numa palavra, a mesma competência e destreza que a prática dá à execução de qualquer trabalho é também adquirida pelos mesmos meios, para sua apreciação. A prática é tão importante para o discernimento da beleza, que, para nos tornarmos capazes de julgar qualquer obra importante, será até necessário examinarmos mais do que uma vez cada produção individual, estudando-a sob diversos aspectos com a maior atenção e deliberação. A primeira visão de qualquer obra é sempre acompanhada por uma palpitação ou confusão do pensamento, que perturba o autêntico sentimento de beleza. Não se distingue bem a relação entre as partes, não se identificam os verdadeiros caracteres do estilo, e as diversas perfeições e defeitos parecem envolvidas numa espécie de confusão, apresentando-se à imaginação de maneira indistinta. E isto sem lembrar que há certa espécie de beleza, florida e superficial, que começa por agradar mas depois, verificada sua incompatibilidade com a justa expressão da razão ou da paixão, logo torna insensível o gosto, passando a ser rejeitada com desdém, ou pelo menos considerada de valor muito inferior. É impossível prosseguir na prática da contemplação de qualquer espécie de beleza sem frequentemente ser-se obrigado a estabelecer comparações entre os diversos tipos ou graus de excelência, calculando a proporção existente entre eles. Quem nunca teve oportunidade de comparar os diversos tipos de beleza indubitavelmente se encontra completamente incapacitado de dar opinião a respeito de qualquer objeto que lhe seja apresentado. Só através da comparação podemos determinar os epítetos da aprovação ou da censura, aprendendo a decidir sobre o devido grau de cada um. A pintura mais grosseira possui certo lustro das cores e exatidão da imitação que até certo ponto são belezas capazes de encher o espírito de um camponês ou de um índio com a maior admiração. As mais vulgares baladas não são inteiramente destituídas de certa força ou harmonia, e só quem está familiarizado com belezas superiores poderá considerar dissonante seu ritmo, ou desinteressantes suas letras. Uma grande inferioridade de beleza produz desagrado às pessoas familiarizadas com a mais alta perfeição nesse mesmo domínio, e por essa razão é considerada uma deformidade. Do mesmo modo que naturalmente consideramos o mais acabado objeto que conhecemos como representando o pináculo da perfeição, e merecedor do mais intenso aplauso. Só quem está habituado a ver, examinar e ponderar as diversas produções que foram admiradas em diferentes épocas e nações é capaz de avaliar os méritos de uma obra submetida a sua apreciação, apontando seu devido lugar entre as obras de gênio. Mas, para poder exercer mais plenamente sua função, o crítico deve conservar seu espírito acima de todo preconceito, nada levando em consideração a não ser o próprio objeto submetido a sua apreciação. Toda a obra de arte, a fim de produzir sobre o espírito o devido efeito, deve ser encarada de um determinado ponto de vista, e não pode ser plenamente apreciada por pessoas cuja situação, real ou imaginária, não seja conforme à que é exigida pela obra. Um orador que se dirige a um auditório particular, precisa levar em conta suas inclinações, interesses, opiniões, paixões e preconceitos peculiares, senão será em vão que esperará comandar suas decisões e incendiar suas afecções. Mesmo que esse público tenha contra ele alguma prevenção, por mais disparatada que esta seja, ele não deve minimizar esta desvantagem, e antes de entrar no assunto deve esforçar-se por cair em suas boas graças e conquistar sua afeição. O crítico de uma época ou de uma nação diferente, que pretenda analisar esse discurso, deve levar em conta todas essas circunstâncias, e deve colocar-se na mesma situação que esse auditório para chegar a um juízo correto sobre a obra. De maneira semelhante, quando qualquer obra é dirigida ao público, mesmo que eu sinta amizade ou inimizade pelo autor, devo distanciar-me dessa situação e, considerando-me a mim mesmo como um homem em geral, fazer o possível por esquecer meu ser individual e minhas circunstâncias peculiares. Uma pessoa influenciada pelos preconceitos não preenche estas condições, persevera obstinadamente em sua posição natural, sem colocar-se naquele ponto de vista que é suposto pela obra. Se esta se dirige a pessoas de uma época ou de uma nação diferente, essa pessoa deixa de levar em conta suas concepções e preconceitos peculiares e, cheia dos costumes de sua própria época e seu próprio país, apressadamente condena o que parecia admirável aos olhos daqueles aos quais se destinava o discurso. Se a obra se destinar ao público, essa pessoa nunca conseguirá ampliar suficientemente sua compreensão, nem suficientemente esquecer seu interesse como amigo ou inimigo, como rival ou comentador. E assim sua opinião será pervertida, e as mesmas belezas e defeitos não terão sobre ela o mesmo efeito que se ela tivesse imposto a devida violência a sua própria imaginação, esquecendo-se de si mesma durante um momento. É evidente que seu gosto não coincide com o verdadeiro padrão, e por consequência perde todo crédito e autoridade. É sabido que em todas as questões apresentadas ao entendimento o preconceito destrói a capacidade de raciocínio e perverte todas as operações das faculdades intelectuais - e não é menor o prejuízo que causa ao bom gosto, nem menor sua tendência para corromper o sentimento da beleza. Compete ao bom senso contrariar sua influência em ambos os casos, e neste caso, tal como em muitos outros, a razão, se não é uma parte essencial do gosto, é pelo menos necessária para as operações desta última faculdade. Em todas as mais nobres produções do gênio há uma relação mútua e uma correspondência das partes, e nem as belezas nem as deficiências podem ser percebidas por quem não tenha suficiente capacidade de pensamento para apreender todas essas partes e para compará-las umas com as outras, a fim de avaliar a consistência e uniformidade do todo. Toda obra de arte tem também certo objetivo e finalidade para que é calculada, e deve ser considerada mais ou menos perfeita conforme seja mais ou menos capaz de atingir essa finalidade. O objetivo da eloquência é persuadir, o da história é instruir, o da poesia é agradar, por meio das paixões e da imaginação. Precisamos levar sempre em conta estes fins, quando examinamos qualquer obra, e devemos ser capazes de julgar até que ponto os meios empregados são adequados a suas respectivas finalidades. Além disso, toda espécie de composição, mesmo a mais poética, não é mais do que um encadeamento de proposições e raciocínios, sem dúvida nem sempre os mais rigorosos e exatos, mas ainda assim plausíveis e especiosos, embora disfarçados pelo colorido da imaginação. Os personagens apresentados na tragédia e na poesia épica devem ser representados raciocinando, pensando, concluindo e agindo conformemente a seu caráter e a sua situação, e sem a capacidade de raciocínio, além do gosto e da invenção, o poeta jamais poderá esperar alcançar sucesso em empreendimento tão delicado. Para não lembrar que a mesma excelência das faculdades que contribui para o aperfeiçoamento da razão, a mesma clareza da concepção, a mesma exatidão nas distinções, a mesma vivacidade de compreensão são essenciais para as operações do autêntico gosto, e são seus inevitáveis acompanhantes. Raramente ou mesmo nunca sucede que um homem sensato que possua alguma experiência da arte não seja capaz de julgar sua beleza, e não é menos raro encontrar uma pessoa de bom gosto que não seja dotada de um reto entendimento. Assim, embora os princípios do gosto sejam universais, e aproximadamente, senão inteiramente, os mesmos em todos os homens, mesmo assim poucos são capazes de julgar qualquer obra de arte, ou de impor seu próprio sentimento como padrão de beleza. Raramente os órgãos da sensação interna são suficientemente perfeitos para permitir o pleno jogo dos princípios gerais, produzindo um sentimento correspondente a esses princípios. Ou possuem alguma deficiência ou são viciados por alguma perturbação, e vão assim provocar um sentimento que pode ser considerado errôneo. Quando um crítico não possui delicadeza, julga sem qualquer critério, sendo afetado apenas pelas qualidades mais grosseiras e palpáveis do objeto: as pinceladas mais finas passam despercebidas e desprezadas. Quando não é ajudado pela prática, seu veredicto é acompanhado de confusão e hesitação. Quando não faz qualquer comparação, as belezas mais frívolas, que mais mereceriam o nome de defeitos, tornam-se objeto de sua admiração. Quando se deixa dominar por preconceitos, todos os seus sentimentos naturais são pervertidos. Quando lhe falta o bom senso, é incapaz de distinguir as belezas do desígnio e do raciocínio, que são as mais elevadas e excelentes. A maioria dos homens sofre de uma ou outra destas imperfeições, e por isso acontece que o verdadeiro juiz das belas-artes, mesmo nas épocas mais cultas, seja uma personalidade tão rara. Só o bom senso, ligado à delicadeza do sentimento, melhorado pela prática, aperfeiçoado pela comparação, e liberto de todo preconceito, é capaz de conferir aos críticos esta valiosa personalidade, e o veredicto conjunto dos que a possuem, seja onde for que se encontrem, é o verdadeiro padrão do gosto e da beleza. Mas onde podem ser encontrados esses críticos? Através de que sinais podemos reconhecê-los? Como distingui-los dos embusteiros? São perguntas embaraçosas, que parecem fazer-nos voltar a cair naquela incerteza da qual, no decorrer deste ensaio, nos esforçamos por escapar. Mas, numa visão correta do problema, trata-se aqui de questões de fato, e não de sentimento. Se uma determinada pessoa é ou não dotada de bom senso e delicadeza de imaginação livre de preconceitos, é coisa que pode muitas vezes dar motivo a disputas, e está sujeita a muita discussão e investigação. Mas que essa personalidade é valiosa e estimável é coisa com que ninguém pode deixar de concordar. Quando estas dúvidas aparecem, não se pode fazer mais do que em outras questões controversas, que surgem perante o entendimento: é preciso apresentar os melhores-argumentos que a invenção pode sugerir; é preciso reconhecer que deve existir algures um padrão verdadeiro e decisivo, a saber, os fatos concretos e a existência real; e é preciso ser-se indulgente para com quem diverge de nós próprios em seus apelos a esse padrão. É aqui suficiente, para nosso objetivo, provar que não é possível pôr no mesmo pé o gosto de todos os indivíduos, e que alguns homens em geral, por mais difícil que seja identificá-los rigorosamente, devem ser reconhecidos pela opinião universal como merecedores de preferência, acima dos outros. Mas na realidade a dificuldade de descobrir um padrão do gosto, mesmo de maneira particular, não é tão grande como se pensa. Embora teoricamente se possa reconhecer prontamente certo critério na ciência, e ao mesmo tempo negá-lo no sentimento, verifica-se na prática que a questão é muito mais difícil de decidir no primeiro caso do que no segundo. Durante certa época predominaram as teorias filosóficas abstratas e os sistemas de profunda teologia, mas no período seguinte todos foram universalmente destruídos. Foi descoberto seu caráter absurdo, e seu lugar passou a ser ocupado por outras teorias e sistemas, que por sua vez cederam o lugar a seus sucessores. E nada mostrou estar mais sujeito às revoluções do acaso e da moda do que essas pretensas decisões da ciência. Já não é esse o caso das belezas da eloquência e da poesia. É inevitável que as justas expressões da paixão e da natureza, ao fim de algum tempo, conquistem o aplauso do público, que depois conservam para sempre. Aristóteles, Platão, Epicuro e Descartes puderam sucessivamente ceder p lugar uns aos outros, mas Terêncio e Virgílio continuam a exercer um domínio universal e incontestado sobre os espíritos dos homens. A filosofia abstrata de Cícero perdeu seu prestígio, mas a veemência de sua oratória continua sendo objeto de nossa admiração. Embora sejam raros os homens de gosto delicado, é fácil distingui-los na sociedade, pela solidez de seu entendimento e pela superioridade de suas faculdades sobre as do resto da humanidade. O ascendente que adquirem faz prevalecer aquela viva aprovação com que recebem as obras de gênio, e torna-a geralmente predominante. Muitos homens, quando entregues a si próprios, não são capazes de mais do que uma tênue e duvidosa percepção da beleza, mas mesmo assim são capazes de apreciar qualquer obra notável que lhes seja apontada. Cada um dos que se deixam converter à admiração de um verdadeiro poeta e orador vai por sua vez provocar uma nova conversão. Mesmo que os preconceitos possam dominar durante algum tempo, jamais se unem para celebrar qualquer rival do verdadeiro gênio, e acabam por ceder à força da natureza e do justo sentimento. Assim, embora uma nação civilizada possa facilmente enganar-se na escolha de seu filósofo preferido, nunca se verificou que alguma errasse em sua preferência por um determinado autor épico ou trágico. Mas, não obstante todos os nossos esforços para estabelecer um padrão do gosto e conciliar as concepções discordantes, continua havendo duas fontes de variação que, embora evidentemente não bastem para confundir todos os limites entre a beleza e a deformidade, muitas vezes têm como efeito a produção de uma diferença nos graus de nossa aprovação ou censura. Uma delas são as diferenças de temperamento entre os indivíduos, a outra são os costumes e opiniões peculiares de nossa época e de nosso país. Os princípios gerais do gosto são uniformes na natureza humana. Quando se verifica uma variação nos juízos dos homens, geralmente pode notar-se também algum defeito ou perversão das faculdades, derivado dos preconceitos, ou da falta de prática, ou da falta de delicadeza. E há boas razões para aprovar um gosto e condenar o outro. Mas quando há na estrutura interna ou na situação externa tal diversidade que se torna impossível condenar qualquer dos lados, não havendo lugar para dar preferência a um sobre o outro, nesse caso é inevitável certo grau de diversidade do julgamento, e seria em vão que procuraríamos um padrão capaz de conciliar as opiniões contrárias. Um jovem que seja dotado de cálidas paixões será mais sensível às imagens amorosas e ternas do que um homem de idade mais avançada, que encontra prazer em sábias e filosóficas reflexões sobre a conduta da vida e a moderação das paixões. Aos vinte anos, Ovídio pode ser o autor preferido; aos quarenta, Horácio; e talvez Tácito aos cinquenta. Nesses casos seria inútil tentarmos participar dos sentimentos dos outros, e despirmo-nos daquelas tendências que em nós são naturais. Escolhemos nosso autor preferido tal como escolhemos um amigo, baseados numa conformidade de temperamento e disposição. A alegria ou a paixão, o sentimento ou a reflexão, aquilo que mais predominar em nosso temperamento nos dará uma simpatia peculiar pelo autor que se nos assemelha. A uma pessoa agrada mais o sublime, a outra agrada a ternura, e a uma terceira a ironia. Uma é extremamente sensível aos defeitos, e estuda atentamente a correção das obras, e outra é mais vivamente sensível às belezas, e perdoa vinte absurdos e defeitos em troca de uma passagem inspirada ou patética. O ouvido de uma pessoa está inteiramente voltado para a concisão e a energia, e outra se delicia sobretudo com uma expressão copiosa, rica e harmoniosa. Uns preferem a simplicidade, outros a ornamentação. A comédia, a tragédia, a sátira, as odes, cada uma tem seus partidários, que preferem a todas as outras uma determinada forma de escritura. É indubitável que seria um erro um crítico limitar sua aprovação a uma única espécie ou estilo literário, condenando todo o restante. Mas é quase impossível deixar de sentir certa predileção por aquilo que se adapta melhor a nossa disposição e inclinações pessoais. Essas preferências são inocentes e inevitáveis, e não seria sensato torná-las objeto de disputa, pois não há padrão que possa contribuir para decidi-as. Devido a um motivo semelhante, agrada-nos mais encontrar, no decurso da leitura, cenas e personagens que se assemelhem a objetos que podem encontrar-se em nossa época e nosso país, do que aqueles que descrevem costumes diferentes. Não é sem certo esforço que conseguimos aceitar a simplicidade dos costumes antigos, e contemplar princesas indo buscar água à fonte, e reis e heróis preparando suas próprias vitualhas. Podemos reconhecer de maneira geral que a representação desses costumes não constitui um erro do autor nem uma deformidade da obra, mas não lhe somos tão profundamente sensíveis. É por este motivo que é difícil a comédia ser transferida de uma época ou nação para outra. A um francês ou a um inglês não agradam a Andria de Terêncio, ou a Clítia de Maquiavel, onde a bela senhora em torno da qual gira toda a peça não aparece nem uma vez aos espectadores, e fica sempre oculta nos bastidores, conformemente ao temperamento reservado dos antigos gregos e dos italianos. Um homem culto e inteligente é capaz de aceitar essas peculiaridades de costumes, mas um auditório normal jamais será capaz de despir-se de suas ideias e sentimentos habituais a ponto de satisfazer-se com cenas que de maneira alguma se lhe assemelham. Mas vem aqui a propósito uma reflexão que talvez possa ajudar a analisar a célebre controvérsia a respeito do saber antigo e do saber moderno, na qual vemos frequentemente um dos lados desculpar qualquer aparente absurdo dos antigos invocando os costumes da época, ao passo que o outro lado recusa aceitar essa desculpa, ou pelo menos aceitando-a apenas como uma desculpa para o autor, não para a obra. É minha opinião que poucas vezes os devidos limites deste assunto foram definidos pelos participantes da controvérsia. Quando são representadas quaisquer inocentes peculiaridades de costumes, como as acima referidas, é indubitável que elas devem ser aceitas, e quem ficar chocado com elas dará provas evidentes de falta de delicadeza e de finura. O monumento mais duradouro do que o bronze do poeta inevitavelmente cairia por terra, como se fosse feito de vulgar tijolo ou argila, se os homens não admitissem as contínuas revoluções dos usos e costumes, e aceitassem unicamente o que é conforme à moda dominante. Seria razoável jogarmos fora os retratos de nossos antepassados, por causa de seus rufos e anquinhas? Mas quando as ideias da moral e dá decência se modificam de uma época para outra, e quando são descritos costumes viciosos, sem serem acompanhados pelos devidos sinais de censura e desaprovação, deve reconhecer-se que tal fato desfigura o poema e constitui uma autêntica deformidade. Sou incapaz; de participar desses sentimentos, e nem seria próprio que o fosse; mesmo que possa desculpar o poeta, levando em conta os costumes de sua época, jamais poderei apreciar a composição. A falta de humanidade e de decência, tão evidente nos personagens desenhados por vários dos poetas antigos; e às vezes até por Homero e pelos trágicos gregos, diminui consideravelmente o mérito de suas nobres realizações e confere aos autores modernos uma vantagem sobre eles. Não nos interessamos pela sorte e pelos sentimentos desses rudes heróis, desagrada-nos ver a tal ponto confundidos os limites do vício e da virtude e, por maior que seja nossa indulgência para com o autor, levando em conta seus preconceitos, somos incapazes de impor a nós mesmos a participação em seus sentimentos, de sentir alguma afeição por personagens que vemos claramente serem condenáveis. Os princípios morais não estão no mesmo caso que os princípios especulativos de qualquer espécie. Estes últimos estão em constante mudança e transformação. O filho adere a um sistema diferente do de seu pai - mais, poucos homens poderão gabar-se de grande constância e uniformidade quanto a este aspecto. Sejam quais forem os erros especulativos que possam encontrar-se nas obras cultas de qualquer época ou qualquer país, eles pouco diminuem o valor dessas composições. Basta apenas certa adaptação do pensamento ou da imaginação para fazer-nos participar de todas as opiniões que então predominavam, e apreciar os sentimentos ou conclusões delas derivados. Mas é preciso um esforço violento para modificar nosso juízo sobre os costumes, e para experimentar sentimentos de aprovação ou censura, de amor ou ódio, diferentes daqueles com que uma longa habituação familiarizou o espírito. Quando alguém confia na retidão daqueles padrões morais em função dos quais forma seus juízos é justificadamente zeloso deles, e não permitirá que os sentimentos de seu coração sejam pervertidos nem por um momento, por complacência por qualquer autor que seja. De todos os erros especulativos, os mais desculpáveis nas obras de gênio são os respeitantes à religião, e nem sempre é lícito julgar a cultura e o saber de um povo, ou mesmo de uma pessoa individual, em função da vulgaridade ou da sutileza de seus princípios teológicos. O bom senso que orienta os homens nas ocorrências normais da vida não é seguido em questões religiosas, pois estas são consideradas acima do alcance da razão humana. Nesta ordem de ideias, todos os absurdos do sistema teológico pagão devem ser postos de lado pelos críticos que pretendam chegar a uma noção rigorosa da poesia antiga, e por sua vez nossa posteridade deverá ter a mesma indulgência para com seus predecessores. Os princípios religiosos nunca podem ser tomados como erros dos poetas, na medida em que permanecerem como meros princípios, sem se apoderarem do coração tão fortemente que possam merecer os labéus de beatice ou superstição. Quando tal acontece, eles passam a perturbar os sentimentos morais e a alterar as fronteiras naturais que separam o vício da virtude. Portanto, eles devem ser eternamente considerados como defeitos, em conformidade com o princípio acima referido, e os preconceitos e falsas opiniões da época são insuficientes para justificá-los. Uma das características essenciais da religião católica romana é que ela precisa inspirar um ódio violento por toda outra forma de crença, e conceber todos os pagãos, maometanos e hereges como objetos da divina cólera e vingança. Tais sentimentos, muito embora sejam na realidade altamente condenáveis, são considerados virtudes pelos fanáticos dessa comunhão, e são representados em suas tragédias e poemas épicos como uma espécie de divino heroísmo. Beatice que teve como consequência desfigurar duas das mais belas tragédias do teatro francês, Polieucte e Athalia, nas quais o mais destemperado zelo por determinadas formas de culto é apresentado com toda a pompa que imaginar se pode, constituindo o traço predominante da personalidade de seus heróis. "Que é isto", diz o sublime Joad a Jofabet, ao encontrá-Ia conversando com Mathan, o sacerdote de Baal, "a filha de Davi fala com esse traidor? Pois não temeis que a terra se abra, e dela jorrem chamas que vos devorem a ambos? Ou que estas sagradas paredes desmoronem, enterrando-vos juntos? O que pretende ele? Por que vem o inimigo de Deus a este lugar, envenenar o ar que respiramos com sua horrenda presença?" Tais sentimentos são recebidos com intenso aplauso nos teatros de Paris, mas em Londres os espectadores apreciariam igualmente ouvir Aquiles dizer a Agamemnon que ele é um cão em sua fronte, e um veado em seu coração, ou Júpiter ameaçar Juno com uma bela surra, se ela não ficar calada. Os princípios religiosos constituem também uma deficiência, em qualquer composição culta, quando caem no nível da superstição, ou se intrometem em toda espécie de sentimento, mesmo os mais distantes de qualquer relação com a religião. Não constitui desculpa para o poeta que os costumes de seu país a tal ponto tenham sobrecarregado a vida com uma quantidade enorme de cerimônias e rituais religiosos, que nenhuma parte dela consiga escapar a esse jugo. Petrarca será sempre ridículo, necessariamente, em sua comparação de sua amante, Laura, com Jesus Cristo. E não é menos ridículo que Boccaccio, esse encantador libertino, com toda a seriedade dê graças a Deus todo-poderoso e às senhoras pelo auxílio que lhe deram, protegendo-o contra seus inimigos.