Denis Diderot – Carta sobre os cegos, para o uso dos que veem. Possunt, nec posse videntur. (Virgílio, Eneida, liv. 5, v. 231) Eu suspeitava muito, senhora, que o cego de nascença, a quem o Sr. de Réaumur acaba de operar a catarata, não nos ensinasse aquilo que queríeis saber; mas estava longe de adivinhar que não seria nem culpa dele nem vossa. Solicitei o seu benfeitor por mim mesmo, por seus melhores amigos, pelos cumprimentos que lhe fiz; não conseguimos obter nada, e o primeiro aparelho será levantado sem vós. Pessoas da mais alta distinção tiveram a honra de partilhar esta recusa com os filósofos; em uma palavra, ele não quis deixar cair o véu a não ser diante de alguns olhos sem consequência. Se estais curiosa de saber por que esse hábil acadêmico fez tão secretamente experiências que não podem ter, segundo vós, um número demasiado grande de testemunhas esclarecidas, responder-vos-ei que as observações de um homem tão célebre necessitam menos de espectadores, quando se fazem, do que de ouvintes, quando estão feitas. Retornei, pois, senhora, a meu primeiro desígnio, e, forçado a privar-me de uma experiência em que não via quase nada a ganhar para a minha instrução, nem para vossa, mas de que o Sr. de Réaumur tirará sem dúvida melhor proveito, pus-me a filosofar com meus amigos sobre a importante matéria que constitui seu objeto. Como eu seria feliz, se o relato de um de nossos colóquios pudesse fazer-me as vezes, junto de vós, do espetáculo que eu demasiado levianamente vos havia prometido. No próprio dia em que o prussiano efetuava a operação da catarata na filha de Simoneau, fomos interrogar o cego de nascença de Puisaux: é um homem que não carece de bom senso; que muitas pessoas conhecem; que sabe um pouco de química, e que acompanhou, com algum êxito, os cursos de botânica no Jardim do Rei. Nasceu de um pai que professou com aplauso a filosofia na Universidade de Paris. Desfrutava de uma fortuna honesta, com a qual teria facilmente satisfeito os sentidos que lhe restam; mas o gosto pelo prazer arrastou-o na mocidade: abusaram de seus pendores; seus assuntos domésticos atrapalharam-se, e ele se retirou para uma cidadezinha da província, de onde faz todos os anos uma viagem a Paris. Traz então licores que destila, e com os quais a gente fica muito contente. Eis, senhora, circunstâncias assaz pouco filosóficas; mas, por essa razão mesma, são elas mais próprias para vos levar a julgar que a personagem da qual vos falo não é absolutamente imaginária. Chegamos à casa de nosso cego por volta das cinco horas da tarde, e encontramo-lo ocupado em fazer o filho ler com caracteres em relevo: não havia mais de uma hora que se levantara; pois deveis saber que o dia começa para ele quando termina para nós. Seu costume é dedicar-se a seus negócios domésticos, e trabalhar enquanto os outros descansam. À meia-noite, nada o perturba; e ele não constitui incômodo a ninguém. Seu primeiro cuidado é pôr no lugar tudo quanto foi posto fora do lugar durante o dia; e quando sua mulher acorda, encontra comumente a casa arrumada de novo. A dificuldade que os cegos têm em recuperar as coisas perdidas torna-os amigos da ordem; e eu me apercebi que os que deles se aproximam familiarmente partilham dessa qualidade, seja por efeito do bom exemplo que proporcionam, seja por um sentimento de humanidade que alimentam para com eles. Como seriam infelizes os cegos sem as pequenas atenções dos que os rodeiam. Nós próprios, como seríamos de lastimar sem elas! Os grandes serviços são como grandes peças de ouro ou de prata que a gente raramente tem ocasião de empregar; mas as pequenas atenções são moeda corrente que se tem sempre à mão. Nosso cego julga muito bem quanto às simetrias. A simetria, que é talvez um problema de pura convenção entre nós, é certamente assim, em muitos aspectos, entre um cego e os que veem. À força de estudar pelo tato a disposição que exigimos entre as partes componentes de um todo, para chamá-lo belo, um cego consegue efetuar justa aplicação do termo. Mas quando diz: isto é belo, ele não julga; refere somente o julgamento dos que veem: e que outra coisa fazem três quartos daqueles que decidem de uma peça de teatro, após ouvi-la, ou de um livro, após lê-lo? A beleza, para um cego, não é senão uma palavra, quando separada da utilidade; e, com um órgão a menos, quanta coisa há cuja utilidade lhe escapa! Os cegos não são realmente dignos de lástima por não considerarem belo senão o que é bom? Quanta coisa admirável perdida para eles! O único bem que os ressarce de semelhante perda é o de ter ideias do belo, na verdade menos extensas, porém mais nítidas que filosóficas clarividentes que dele trataram mui extensamente. O nosso cego fala de espelho a todo momento. Acreditais realmente que ele não sabe o que significa a palavra espelho; entretanto, ele nunca colocará um espelho à contraluz. Ele se exprime tão sensatamente como nós sobre as qualidades e os defeitos do órgão que lhe falta: se não liga qualquer ideia aos termos que emprega, leva, pelo menos sobre a maioria dos outros homens, a vantagem de jamais pronunciá-los fora de propósitos. Discorre tão bem e de maneira tão justa acerca de tantas coisas que lhe são absolutamente desconhecidas que seu comércio tiraria muito da força a essa indução que todos nós fazemos, sem saber por quê, daquilo que se passa em nós para aquilo que se passa dentro dos outros. Perguntei-lhe o que entendia por espelho: “Certa máquina, respondeu-me, que põe as coisas em relevo longe de si mesmas, se se encontram situadas convenientemente em relação a ela. É como a minha mão, que não preciso pousar ao lado de um objeto a fim de senti-la”. Descartes, cego de nascença, teria que, parece-me, felicitar se com semelhante definição. Com efeito, considerai, eu vos peço, a finura com a qual foi mister combinar certas ideias para chegar a ela. Nosso cego só tem conhecimento dos objetos pelo tato. Sabe, pelo relato dos outros homens, que por meio da vista se conhecem os objetos, assim como eles lhe são conhecidos pelo tato; ao menos é a única noção que pode formar deles. Sabe, ademais, que não se pode ver o próprio rosto, conquanto se possa tocá-lo. A vista, deve ele concluir, é portanto uma espécie de tato que se estende apenas aos objetos diferentes de nosso rosto, e afastados de nós. Aliás, o tato lhe dá ideia apenas do relevo. Portanto, acrescenta, um espelho é uma máquina que nos põe em relevo fora de nós mesmos. Quantos filósofos renomados empregaram menos sutileza, para chegar a noções tão falsas! Mas quão surpreendente deve ser um espelho para o nosso cego? Como deve ter aumentado seu espanto quando lhe informamos que há dessas espécies máquinas que engrandecem os objetos; que outras há que, sem os duplicar, os deslocam, os aproximam, os afastam, os fazem perceptíveis, revelando as menores partes aos olhos dos naturalistas; que há algumas que os multiplicam milhares de vezes; que há algumas enfim que os desfiguram totalmente? Ele nos formulou centenas de questões singulares sobre esses fenômenos. Perguntou-nos, por exemplo, se apenas os que se chamam naturalistas é que viam com o microscópio; e se os astrônomos eram os únicos que viam com o telescópio; se a máquina que aumenta os objetos era maior que aquela que os apequena; se aquela que os aproxima era mais curta que a máquina que os afasta; e não compreendo de modo algum como esse outro nós mesmos, que, segundo ele, o espelho repete em relevo, escapa ao sentido do tato: “Eis, dizia, dois sentidos que uma pequena máquina põe em contradição: outra máquina mais perfeita pô-los-ia talvez de acordo, sem que, por isso, os objetos fossem nela mais reais; talvez uma terceira mais perfeita ainda, e menos pérfida, os faria desaparecer, e nos advertiria do erro”. E o que são, em vosso parecer, os olhos? Disse-lhe o Sr. de... “São, respondeu-lhe o cego, um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala sobre minha mão.” Esta resposta nos fez cair das nuvens, e enquanto nos entreolhávamos com admiração. “Isso é tão certo, continuou, que, quando coloco minha mão entre vossos olhos e um objeto, minha mão vos está presente, porém o objeto vos está ausente. A mesma coisa me acontece, quando procuro uma coisa com minha bengala e encontro outra.” Senhora, abri a Dióptrica de Descartes, e vereis aí os fenômenos da vista referidos aos do tato, e as pranchas de óptica cheias de figuras de homens ocupados em ver com bengalas. Descartes, e todos os que vieram depois, não puderam nos dar ideias mais nítidas da visão; e esse grande filósofo não teve a respeito disto mais vantagem sobre nosso cego do que as pessoas que têm olhos. Nenhum de nós lembrou-se de interrogá-lo acerca da pintura e da escrita: mas é evidente que não há questões às quais sua comparação não pudesse satisfazer; e não duvido de maneira nenhuma que ele não nos dissesse que tentar ler ou ver sem ter olhos era procurar um alfinete com uma grande bengala. Nós lhe falamos somente dessas espécies de perspectivas, que dão relevo aos objetos, e que têm com nossos espelhos tanta analogia e tanta diferença, ao mesmo tempo; e nós nos apercebemos que elas prejudicavam tanto quanto concorriam à ideia que formara de um espelho e que estava tentado a crer que, pintando o espelho ou objetos, o pintor, para representá-los, pintava quiçá um espelho. Nós o vimos enfiar linha em agulhas muito miúdas. Poder-se-ia, senhora, pedir-vos para suspender aqui vossa leitura e procurar saber como havíeis de vos arranjar em seu lugar? No caso de não encontrardes expediente nenhum vou contar-vos o de nosso cego. Ele dispõe a abertura da agulha transversalmente entre os lábios e na mesma direção que a da boca; depois, com ajuda da língua e da sucção, atrai o fio que lhe segue o alento, a menos que seja grosso demais para a abertura mas, neste caso, quem vê não fica menos atrapalhado do que aquele que está privado da vista. Ele tem memória dos sons em grau surpreendente; e os rostos não nos oferecem diversidade maior do que a que ele observa nas vozes. Elas têm para ele uma infinidade de matizes delicados que nos escapam, porque não temos, ao observá-las, o mesmo interesse que o cego. De todos os homens que vimos, aquele de quem menos nos lembraríamos é nós mesmos. Estudamos os rostos apenas para reconhecer as pessoas; e se não retemos o nosso, é que nunca estaremos expostos a nos tomar por outro, nem outro por nós. Aliás, o auxílio que nossos sentidos se prestam mutuamente os impede de aperfeiçoar-se. Esta não será a única ocasião em que terei de fazer este reparo. Nosso cego nos disse, a este respeito, que se acharia digno de muita lástima por estar privado das mesmas vantagens que nós, e que ficaria tentado a nos olhar como inteligências superiores, se não houvesse verificado centenas de vezes o quanto lhe éramos inferiores em outros aspectos. Tal reflexão nos levou a fazer outra. Este cego, dissemos nós, se estima tanto e mais talvez do que nós que enxergamos: por que então, se o animal raciocina, como é quase indubitável, pesando suas vantagens sobre o homem, que lhe são melhor conhecidas que as do homem sobre ele não pronunciaria semelhante julgamento? Ele tem braços, diz talvez o mosquito, mas eu tenho asas. Se ele tem armas, diz o leão, não temos nós unhas? O elefante vos verá como insetos: e todos os animais, concedendo-nos de bom grado uma razão pela qual teríamos grande necessidade de seu instinto, pretender-se-ão dotados de um instinto pelo qual dispensam muito bem nossa razão. Temos tão violento pendor a encarecer nossas qualidades e diminuir nossos defeitos, que pareceria quase caber ao homem efetuar o tratado da força, e ao animal, o da razão. Um de nós lembrou-se de indagar ao nosso cego se ficaria contente em ter olhos: “Se a curiosidade não me dominasse, disse ele, eu preferiria muito mais ter longos braços: parece-me que minhas mãos me instruiriam melhor do que se passa na lua do que vossos olhos ou vossos telescópios; além disso, os olhos cessam de ver mais do que as mãos de tocar. Valeria pois muito mais que me fosse aperfeiçoado o órgão que possuo do que me conceder o que me falta”. O nosso cego se dirige pelo ruído e pela voz tão seguramente que não duvido que um tal exercício tornasse os cegos muito destros e muito perigosos. Vou contar-vos a propósito um episódio que vos persuadirá de como seria errôneo esperar uma pedrada, ou expor-se a um tiro de pistola por ele desfechado, por pouco habituado que estivesse a servir-se dessa arma. Ele teve na juventude uma querela com um de seus irmãos, que se desgostou muito com ele. Impacientado com as palavras desagradáveis que teve de suportar de parte do outro, agarrou o primeiro objeto que lhe caiu debaixo da mão, lançou-o contra ele, atingiu-o no meio da testa, e o estendeu por terra. Esta aventura e algumas outras levaram-no a ser chamado pela polícia. Os signos externos do poder que nos afetam tão vivamente não enganam de modo algum os cegos. O nosso compareceu perante o magistrado como perante seu semelhante. As ameaças não o intimidaram. “O que me fareis?, disse ao Sr. Hérault. — Eu vos jogarei numa enxovia, respondeu lhe o magistrado. — Oh!, senhor, replicou-lhe o cego, há vinte e cinco anos que já estou nela.” Que resposta, senhora! E que texto para um homem que gosta tanto de moralizar como eu! Nós saímos da vida como de um espetáculo encantador; o cego sai dela como de uma masmorra: se nós temos em viver mais prazer do que ele, convinde que ele tem muito menos pesar em morrer. O cego de Puisaux avalia a proximidade do fogo pelos graus de calor; a plenitude dos vasos, pelo rumor que fazem ao cair os líquidos que transvasa; e a vizinhança dos corpos, pela ação do ar sobre o seu rosto. É tão sensível às menores vicissitudes que sucedem na atmosfera que pode distinguir uma rua de um beco. Aprecia com perfeição os pesos dos corpos e a capacidade dos vasos; e converteu os braços em balanças tão justas, e os dedos em compassos tão experimentados, que, nas ocasiões em que essa espécie de estática se realiza, eu apostaria por nosso cego contra vinte pessoas que enxergam. O polido dos corpos quase não oferece menos matizes ao nosso cego do que o som da voz, e ele não precisaria ter medo de tomar sua mulher por outra, a menos que ganhasse na troca. Tudo indica entretanto que as mulheres seriam comuns, em um povo de cegos, ou que suas leis contra o adultério seriam muito rigorosas. Seria tão fácil às mulheres enganar os maridos, convencionando um sinal com seus amantes! Ele julga da beleza pelo tato; isto se compreende: mas o que não é fácil perceber é que faça entrar nesse juízo a pronunciação e o som de voz. Compete aos anatomistas ensinar-nos se há alguma relação entre as partes da boca e do palato, e a forma exterior do rosto. Faz pequenos trabalhos no torno e na agulha; nivela a esquadro; monta e desmonta máquinas ordinárias; sabe bastante música para executar um trecho cujas notas e seus valores se lhe diz. Avalia com muito maior precisão do que nós a duração do tempo, pela sucessão das ações e dos pensamentos. A beleza da pele, o bom aspecto, a firmeza da carne, as vantagens da conformação, a doçura do hálito, os encantos da voz e os da pronúncia são qualidades das quais faz mais caso nos outros. Casou-se para possuir olhos que lhe pertencessem. Antes, alimentara o intento de associar-se a um surdo que lhe emprestasse olhos, e ao qual daria, em troca, orelhas. Nada me espantou tanto como sua singular aptidão para um grande número de coisas; e quando lhe manifestamos nossa surpresa: “Percebo bem, senhores, nos disse ele, que não sois cegos: estais surpresos com o que faço; e por que não vos espantais também pelo fato de que falo?” Há, creio, mais filosofia nessa resposta do que ele próprio pretendia inserir-lhe. E uma coisa assaz surpreendente a facilidade com que se aprende a falar. Nós não chegamos a ligar uma ideia a uma porção de termos que não podem ser representados por objetos sensíveis, e que, por assim dizer, não possuem corpo, a não ser por uma série de combinações sutis e profundas das analogias que notamos entre esses objetos não sensíveis e as ideias que eles excitam; e cumpre confessar consequentemente que um cego de nascença deve aprender a falar mais dificilmente do que outro, porquanto, sendo muito maior para ele o número de objetos não sensíveis, dispõe de muito menos campo do que nós para comparar e combinar. Como se há de querer, por exemplo, que a palavra fisionomia se fixe em sua memória. E uma espécie de agrado que consiste em objetos tão pouco sensíveis para um cego que, se não o fossem suficientemente para nós que vemos, ficaríamos muito atrapalhados para dizer com precisão o que é ter fisionomia. Se é principalmente nos olhos que ela reside, o tato nada pode fazer no caso; além disso, o que são para um cego olhos mortos, olhos vivos, do espírito, etc. Concluo daí que tiramos sem dúvida do concurso de nossos sentidos e de nossos órgãos grandes serviços. Mas seria de todo diferente ainda se nós os exercêssemos separadamente, e se nunca empregássemos dois nas ocasiões em que o auxílio de um só nos bastaria. Juntar o tato à vista, quando os olhos são suficientes, é atrelar a dois cavalos, que já são muito vivos, um terceiro na dianteira, o qual puxa de um lado, enquanto os outros puxam do outro. Como jamais duvidei de que o estado de nossos órgãos e de nossos sentidos tem muita influência sobre nossa metafísica e sobre nossa moral, e que nossas ideias mais puramente intelectuais, se posso assim exprimir-me, dependem muito de perto da conformação de nosso corpo, comecei a questionar o nosso cego acerca dos vícios e das virtudes. Percebi primeiro que sentia prodigiosa aversão ao roubo; esta nascia nele de duas causas: da facilidade que havia em roubá-lo sem que ele o percebesse; e mais ainda, talvez, da que havia em percebê-lo quando ele roubava. Não é que não saiba muito bem ficar em guarda contra o sentido que ele reconhece termos a mais do que ele, e que ignore a maneira de esconder bem um roubo. Não faz grande caso do pudor: sem as injúrias do ar, de que as vestimentas o protegem, quase não compreenderia o uso destas; e confessa francamente que não chega a adivinhar por que se cobre mais uma parte do corpo do que outra, e menos ainda por qual extravagância se dá entre essas partes a preferência a algumas determinadas, que o uso e as indisposições a que se acham sujeitas exigiriam que se mantivessem livres. Conquanto estejamos em um século em que o espírito filosófico nos desembaraçou de grande número de preconceitos, não creio que venhamos um dia desconhecer as prerrogativas do pudor tão perfeitamente como nosso cego. Diógenes não seria para ele de modo algum um filósofo. Como de todas as demonstrações externas que despertam em nós a comiseração e as ideias da dor, os cegos são afetados apenas pela queixa, eu os suspeito, em geral, de desumanidade. Que diferença existe, para um cego, entre um homem que urina e um homem que, sem se queixar, derrama seu sangue? Nós mesmos não cessamos de condoer-nos quando a distância, ou a pequenez dos objetos, produz o mesmo efeito em nós que a privação da vista nos cegos? Tanto nossas virtudes dependem de nossa maneira de sentir e do grau com o qual as coisas externas nos afetam! Por isso não duvido que, sem o temor do castigo, muita gente teria menos dificuldade em matar um homem a uma distância em que o vissem grande como uma andorinha, do que em abater um boi com as próprias mãos. Se sentimos compaixão por um cavalo que sofre, e se esmagamos uma formiga sem qualquer escrúpulo, não é o mesmo princípio que nos determina? Ah, senhora! Como a moral dos cegos é diferente da nossa! Como a de um surdo diferiria ainda da de um cego!, e como um ser que contasse um sentido a mais que nós acharia nossa moral imperfeita, para não dizer coisa pior! Nossa metafísica não combina melhor com a deles. Quantos princípios existem para eles, que não passam de absurdos para nós, e reciprocamente! Eu poderia entrar a respeito num pormenor que vos divertiria sem dúvida, mas que certas pessoas, que enxergam crime em tudo, não deixariam de acusar de irreligião; como se dependesse de mim levar os cegos a perceber as coisas de modo diferente do que as percebem. Contentar-me-ei em observar algo com que, creio eu, todo mundo deve convir: é que esse grande raciocínio, que da natureza se tiram maravilhas, é muito fraco para cegos. A facilidade que temos de criar, por assim dizer, novos objetos por meio de um pequeno espelho para eles é algo mais incompreensível que os astros que estão condenados a jamais ver. Esse globo luminoso que avança do oriente ao ocidente os espanta menos do que um foguinho que eles têm a comodidade de aumentar ou diminuir: como veem a matéria de maneira muito mais abstrata do que nós, encontram-se menos distantes de crer que ela pensa. Se um homem que só enxergou durante um dia ou dois se visse confundido entre um povo de cegos, deveria tomar o alvitre de calar-se, ou de passar por louco. Anunciar-lhe-ia todos os dias algum novo mistério, que seria mistério apenas para eles, e no qual os espíritos fortes poderiam de bom grado não crer. Os defensores da religião não poderiam tirar grande proveito de uma incredulidade tão obstinada, tão justa mesmo, em certos aspectos, e entretanto tão pouco fundada? Se vos prestardes por um instante a tal suposição, ela vos lembrará, sob traços supostos, a história e as perseguições dos que tiveram a desgraça de encontrar a verdade em séculos de trevas, e a imprudência de revelá-la aos cegos contemporâneos, entre os quais não deparavam inimigos mais cruéis do que aqueles que, por sua condição e sua educação, pareciam dever estar menos afastados de seus sentimentos. Deixo portanto a moral e a metafísica dos cegos, e passo a coisas que são menos importantes, mas que se prendem mais de perto ao alvo das observações que se efetuam aqui, de todas as partes, desde a chegada do prussiano. Primeira questão. Como é que um cego de nascença forma ideias das figuras? Creio que os movimentos de seu corpo, a existência sucessiva de sua mão em vários lugares, a sensação não interrompida de um corpo que passa entre seus dedos, fornecem-lhe a noção de direção. Se ele os desliza ao longo de um fio bem esticado, adquire a ideia de uma linha reta; se segue a curva de um fio frouxo, adquire a de uma linha curva. Mais geralmente, ele tem, por experiências reiteradas do tato, a memória de sensações experimentadas em diferentes pontos: depende dele combinar essas sensações ou pontos, e formar com elas figuras. Uma linha reta, para um cego que não é geômetra, não é mais que a memória de uma série de sensações do tato, situadas na direção de um fio tenso; uma linha curva, a memória de uma série de sensações do tato referidas à superfície de algum corpo sólido, côncavo ou convexo. O estudo retifica no geômetra a noção dessas linhas pelas propriedades que lhes descobre. Mas, geômetra ou não, o cego de nascença refere tudo à extremidade dos dedos. Nós combinamos pontos coloridos; ele, de seu lado, combina apenas pontos palpáveis ou, para falar mais exatamente, apenas sensações do tato de que tem memória. Não se passa nada em sua cabeça que seja análogo ao que se passa na nossa: ele não imagina; pois, para imaginar, é preciso colorir um fundo e destacar este fundo dos pontos, atribuindo-se-lhes uma cor diferente da do fundo. Restituí esses pontos a mesma cor que ao fundo, no mesmo instante eles se confundem com este, e a figura desaparece; pelo menos, é assim que as coisas se executam em minhas imaginações, e presumo que os outros não imaginam de modo diferente do meu. Quando, pois, eu me proponho a perceber em minha cabeça uma linha reta, de outra maneira que não por suas propriedades, começo por atapetá-la por dentro de um tecido branco, do qual saliento uma série de pontos negros dispostos na mesma direção. Quanto mais vivas as cores do fundo e dos pontos mais distintamente percebo os pontos, e, no caso de uma figura de uma cor muito vizinha da do fundo, não me fatiga menos considerá-la na minha imaginação do que fora de mim, e sobre um tecido. Vedes portanto, senhora, que se poderia dar leis para imaginar facilmente ao mesmo tempo vários objetos diversamente coloridos; mas que estas leis não seriam certamente para o uso de um cego de nascença. O cego de nascença, não podendo colorir, nem por conseguinte figurar como nós o entendemos, só tem memória de sensações apreendidas pelo tato, que ele refere a diferentes pontos, lugares ou distâncias, e com os quais compõe figuras. É tão constante o fato de que ninguém configura na imaginação sem colorir que, se nos dessem a tocar nas trevas pequenos glóbulos cuja matéria e cor não conhecêssemos, supo-los-íamos de pontos brancos ou pretos, ou de qualquer outra cor; ou que, se não lhe atribuíssemos nenhuma cor, teríamos, assim como o cego de nascença, apenas a memória de pequenas sensações excitadas na extremidade dos dedos, e tais como pequenos corpos redondos podem ocasioná-los. Se esta memória é muito fugaz em nós; se não temos quase ideia da maneira pela qual um cego de nascença fixa, lembra e combina as sensações do tato, trata-se de uma consequência do hábito que adotamos através dos olhos, de tudo executar em nossa imaginação com as cores. Aconteceu-me entretanto a mim mesmo, nas agitações de uma paixão violenta, experimentar um frêmito em toda uma mão; de sentir a impressão de corpos que eu tocara havia muito tempo despertar nela tão vivamente como se ainda estivessem presentes a meu contato, e me aperceber muito distintamente que os limites da sensação coincidiam precisamente com os desses corpos ausentes. Conquanto a sensação seja indivisível por si mesma, ela ocupa, se se pode utilizar o termo, um espaço extenso ao qual o cego de nascença tem a faculdade de acrescentar ou de diminuir pelo pensamento, aumentando ou diminuindo a parte afetada. Ele compõe, por esse meio, pontos, superfícies, sólidos; obterá mesmo um sólido grande como o globo terrestre, se supõe a ponta de seu dedo grande como o globo, e ocupado pela sensação em comprimento, largura e profundidade. Não conheço nada que demonstre tão bem a realidade do sentido interno quanto esta faculdade fraca em nós, porém forte nos cegos de nascença — de sentir ou de recordar a sensação dos corpos, mesmo quando eles se acham ausentes e não mais atuam por si. Não podemos explicar a um cego de nascença a maneira pela qual a imaginação nos pinta os objetos ausentes como se estivessem presentes; mas podemos muito bem reconhecer em nós a faculdade de sentir na extremidade de um dedo um corpo que não está mais aí, tal como ela existe no cego de nascença. Para esse efeito, apertai o índex contra o polegar; fechai os olhos; separai vossos dedos; examinai imediatamente após a separação o que se passa em vós, e dizei-me se a sensação não perdura muito tempo depois que a compressão cessou; se, enquanto a compressão perdura, vossa alma parece estar mais em vossa cabeça do que na extremidade de vossos dedos; e se essa compressão não vos dá a noção de uma superfície, pelo espaço que a sensação ocupa. Nós não distinguimos a presença de seres fora de nós, de sua representação em nossa imaginação, a não ser pela força e pela fraqueza da impressão: similarmente, o cego de nascença não discerne a sensação da presença real de um objeto na extremidade de seu dedo, a não ser pela força ou pela fraqueza da própria sensação. Se alguma vez um filósofo cego e surdo de nascença fizer um homem à imitação do de Descartes, ouso assegurar-vos, senhora, que colocará a alma na ponta dos dedos; pois é dali que lhe vêm as principais sensações, e todos os conhecimentos. E quem o advertiria de que a cabeça deste é a sede de seus pensamentos? Se os trabalhos da imaginação esgotam a nossa, é que o esforço que envidamos para imaginar é assaz semelhante ao que envidamos para perceber objetos muito próximos ou muito pequenos. Mas não sucederá o mesmo com o cego e surdo de nascença; as sensações que houver apreendido pelo tato serão, por assim dizer, o molde de todas as suas ideias; e eu não ficaria surpreso se, após uma profunda meditação, sentisse os dedos tão fatigados como nós sentimos a cabeça. Eu não temeria de modo algum que um filósofo lhe objetasse que os nervos são as causas de nossas sensações, e que todos eles partem do cérebro: ainda que as duas proposições estivessem tão demonstradas quanto estão pouco, sobretudo a primeira, bastar-lhe-ia fazer com que lhe explicassem tudo quanto os físicos sonharam a respeito, para persistir em seu sentimento. Mas se a imaginação de um cego não é mais do que a faculdade de recordar e combinar sensações de pontos palpáveis, e a de um homem que vê, a faculdade de recordar e combinar pontos visíveis ou coloridos, segue-se que o cego de nascença percebe as coisas de uma forma muito mais abstrata que nós; e que, nas questões de pura especulação, está talvez menos sujeito a enganar-se; pois a abstração consiste apenas em separar pelo pensamento as qualidades sensíveis dos corpos, ou uma das outras, ou do corpo mesmo que lhes serve de base; e o erro nasce da separação malfeita, ou feita fora de propósito: malfeita, nas questões metafísicas; e feita fora de propósito, nas questões físicas-matemáticas. Um meio quase seguro de enganar-se em metafísica é não simplificar bastante os objetos de que nos ocupamos; e um segredo infalível para chegar em física-matemática a resultados defeituosos é supô-los menos compostos do que o são. Há uma espécie de abstração de que tão poucos homens são capazes que parece reservada às inteligências puras; é aquela pela qual tudo se reduziria a unidades numéricas. Deve-se convir que os resultados dessa geometria seriam muito exatos, e suas fórmulas muito gerais; pois não há objetos, seja na natureza, seja no possível, que estas unidades simples não possam representar pontos, linhas, superfícies, sólidos, pensamentos, ideias, sensações e... se, porventura, fosse o fundamento da doutrina de Pitágoras, poder-se-ia dizer a seu respeito que ele malogrou em seu projeto, porque tal maneira de filosofar está muito acima de nós, e muito próxima da do Ser Supremo, que, segundo a engenhosa expressão de um geômetra inglês, geometriza perpetuamente no universo. A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago e demasiado geral para nós. Nossos sentidos nos reconduzem a signos mais análogos à extensão de nosso espírito e à conformação de nossos órgãos. Fizemos mesmo as coisas de maneira que esses signos pudessem ser comuns entre nós, e que servissem, por assim dizer, de entreposto ao comércio mútuo de nossas ideias. Instituímos alguns para os olhos, são os caracteres; para o ouvido, são os sons articulados; mas não possuímos nenhum deles para o tato, embora haja maneira peculiar de falar a esse sentido, e de obter dele respostas. A falta desta língua, a comunicação fica inteiramente rompida entre nós e os que nascem surdos, cegos e mudos. Eles crescem; mas permanecem em estado de imbecilidade. Talvez adquirissem ideias, se nos fizéssemos entender por eles desde a infância, de maneira fixa, determinada, constante e uniforme, em suma, se traçássemos sobre a mão deles os mesmos caracteres que traçamos sobre o papel, e se a mesma significação lhes permanecesse invariavelmente vinculada. Esta linguagem, senhora, não vos parece tão cômoda quanto outra? Não é do mesmo modo toda inventada? E ousaríeis assegurar-nos que nunca vos foi dado algo a entender dessa maneira? Não se trata portanto senão de fixá-la e compor-lhe uma gramática e dicionários, se se acha que a expressão, pelos caracteres ordinários da escrita, é lenta demais para este sentido. Os conhecimentos têm três portas para entrar em nossa alma, e nós mantemos uma trancada por falta de sinais. Se se houvesse negligenciado as duas outras, estaríamos reduzidos à condição dos animais. Do mesmo modo que só dispomos do apertar para nos fazer entender pelo sentido do tato, teríamos apenas o gritar para falar ao ouvido. Senhora, é preciso carecer de um sentido a fim de conhecer as vantagens dos símbolos destinados aos que restam; e pessoas que tivessem a desgraça de ser surdas, cegas e mudas, ou que viessem a perder esses três sentidos por qualquer acidente, ficariam muito encantadas se existisse uma língua nítida e precisa para o tato. É bem melhor usar símbolos totalmente inventados do que ser seu inventor, como se é forçado a fazer quando se é tomado de imprevisto. Que vantagem não teria sido para Saunderson encontrar uma aritmética palpável totalmente pronta na idade de cinco anos, em vez de precisar imaginá-la na idade de vinte e cinco! Este Saunderson, senhora, é outro cego sobre o qual não será fora de propósito conversar convosco. Contam-se a seu respeito prodígios; e não há nenhum que seus progressos nas belas-letras, e sua habilidade nas ciências matemáticas, não possam tornar crível. A mesma máquina lhe servia para os cálculos algébricos e para a descrição das figuras retilíneas. Não ficaríeis enfadada se vos fizessem a explicação dela, desde que estivésseis em condição de entendê-la; e ides verificar que ela não supõe qualquer conhecimento que não tenhais, e que vos seria muito útil, se vos der jamais a vontade de efetuar longos cálculos às cegas. Imaginai um quadrado, tal como o vedes nas figs. 1 e 2, dividido em quatro partes iguais por meio das linhas perpendiculares aos lados, de modo que ele vos ofereça os nove pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9. Supondo esse quadrado perfurado por nove orifícios capazes de receber alfinetes de duas espécies, todos do mesmo comprimento e da mesma grossura, mas uns com a cabeça um pouco mais grossa do que outros. Os alfinetes de cabeça grande situam-se sempre no centro do quadrado; os de cabeça pequena, sempre nos lados, exceto em um único caso, o do zero. O zero é assinalado por um alfinete de cabeça grande, colocado no centro do pequeno quadrado, sem que haja qualquer outro alfinete nos lados. O algarismo 1 é representado por um alfinete de cabeça pequena, colocado no centro do quadrado, sem que haja qualquer outro alfinete nos lados. O algarismo 2, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado em um dos lados do ponto 1. O algarismo 3, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado num dos lados do ponto 2. O algarismo 4, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado num dos lados do ponto 3. O algarismo 5, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, colocado em um dos lados do ponto 4. O algarismo 6, por um alfinete de cabeça grande, situado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, situado num dos lados do ponto 5. O algarismo 7, por um alfinete de cabeça grande, colocado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, colocado num dos lados do ponto 6. O algarismo 8, por um alfinete de cabeça grande, colocado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, colocado num dos lados do ponto 7. O algarismo 9, por um alfinete de cabeça grande, colocado no centro do quadrado, e por um alfinete de cabeça pequena, colocado num dos lados do quadrado do ponto 8. Eis de fato dez expressões diferentes para o tato, cada uma das quais corresponde a um de nossos dez caracteres aritméticos. Imaginai agora uma tabela tão grande quanto quiserdes, dividida em pequenos quadrados dispostos horizontalmente, e separados uns dos outros pela mesma distância, tal como vedes na fig. 3, e tereis a máquina de Saunderson. Concebeis facilmente que não há número que não se possa escrever nessa tabela, e por conseguinte nenhuma operação aritmética que nela não se possa executar. Seja proposto, por exemplo, encontrar a soma, ou efetuar a adição dos nove seguintes números: 1 2 3 4 5 2 3 4 5 6 3 4 5 6 7 4 5 6 7 8 5 6 7 8 9 6 7 8 9 0 7 8 9 0 1 8 9 0 1 2 9 0 1 2 3 0 1 2 3 4 Eu os escrevo na tabela, à medida que me são nomeados; o primeiro algarismo, à esquerda do primeiro número, no primeiro quadrado à esquerda da primeira linha; o segundo algarismo, à esquerda do primeiro número, no segundo quadrado à esquerda da mesma linha. E assim sucessivamente. Disponho o segundo número na segunda linha de quadrados; as unidades debaixo das unidades; as dezenas debaixo das dezenas, etc. Disponho o terceiro número na terceira linha de quadrados, e assim por diante, como vedes na fig. 3. Depois, percorrendo com os dedos cada linha vertical de baixo para cima, começando por aquela que está mais à minha esquerda, efetuo a adição dos números aí expressos; e escrevo o excedente das dezenas embaixo desta coluna. Passo à segunda coluna avançando para a esquerda, na qual opero da mesma maneira; daí à terceira, e termino assim sucessivamente minha adição. Eis como a mesma tabela lhe servia para demonstrar as propriedades das figuras retilíneas. Suponhamos que precisasse demonstrar que os paralelogramos, com a mesma base e a mesma altura, são iguais em superfície: ele dispunha seus alfinetes como vedes na fig. 4. Atribuía nomes aos vértices e concluía a demonstração com os dedos. Supondo que Saunderson empregasse apenas alfinetes de cabeça grande, para designar os limites das figuras; poderia dispor em torno delas alfinetes de cabeça pequena de nove modos diferentes, dos quais todos lhe eram familiares. Assim, quase não ficava atrapalhado, a não ser nos casos em que o grande número de vértices que era obrigado a nomear em sua demonstração o forçava a recorrer às letras do alfabeto. Não estamos informados como ele as empregava. Sabemos apenas que percorria sua tabela com uma assombrosa agilidade de dedos; que se empenhava com êxito nos cálculos mais longos; que podia interrompê-los, e reconhecer quando se enganava; que os verificava com facilidade; e que este trabalho não lhe requeria, bem longe disso, tanto tempo como se poderia imaginar, pela facilidade que tinha em preparar a tabela. Tal preparação consistia em colocar alfinetes de cabeça grande no centro de todos os quadrados. Isso feito, restava-lhe apenas determinar seu valor pelos alfinetes de cabeça pequena, exceto nos casos em que era preciso escrever uma unidade. Então metia no centro do quadrado um alfinete de cabeça pequena, em lugar do alfinete de cabeça grande que o ocupava. Às vezes, em vez de formar uma linha inteira com os alfinetes, contentava-se em dispô-los em todos os pontos angulares ou de intersecção, em torno dos quais fixava fios de seda que terminavam de formar os limites de suas figuras. Vede a fig. 5. Ele deixou algumas outras máquinas que lhe facilitavam o estudo da geometria: ignorava-se o verdadeiro uso que delas fazia; e haveria talvez mais sagacidade em redescobri-lo do que em resolver este ou aquele problema de cálculo integral. Que algum geômetra tente nos informar para que lhe serviam quatro pedaços de madeira, sólidos, da forma de paralelepípedos retangulares, cada qual com doze polegadas de comprimento sobre cinco e meia de largura, e com um pouco mais de meia polegada de espessura, cujas duas grandes superfícies opostas eram divididas em pequenos quadrados parecidos aos do ábaco que acabo de descrever; com a diferença de serem perfurados apenas em alguns pontos onde os alfinetes eram metidos até a cabeça. Cada superfície representava nove pequenas tabelas aritméticas de dez números cada uma, e cada um desses dez números compunha-se de dez algarismos. A fig. 6 representa uma dessas pequenas tabelas e eis os números que ela continha: 9 4 0 8 4 2 4 1 8 6 4 1 7 9 2 5 4 2 8 4 6 3 9 6 8 7 1 8 8 0 7 8 5 6 8 8 4 3 5 8 8 9 4 6 4 9 4 0 3 0 Ele é o autor de uma obra das mais perfeitas em seu gênero. São os Elementos de Álgebra onde só se percebe que ele era cego pela singularidade de certas demonstrações, as quais um homem que vê talvez não encontrasse. E de sua autoria a divisão do cubo em seis pirâmides iguais que têm os vértices no centro do cubo, e como base, cada uma de suas faces. Ela serviu para demonstrar de maneira muito simples que toda pirâmide é o terço de um prisma de mesma base e de mesma altura. Ele foi arrastado pelo gosto ao estudo das matemáticas, e determinado, pela mediocridade de sua fortuna e pelos conselhos dos amigos, a ministrar lições públicas. Eles não duvidaram de modo algum que ele se saísse melhor do que esperava devido à prodigiosa facilidade que tinha para fazer-se entender. Com efeito, Saunderson falava aos alunos como se estivessem privados da vista: mas um cego que se exprime claramente para cegos deve ganhar muito com pessoas que enxergam; eles possuem um telescópio a mais. Os que escreveram sua vida dizem que era fecundo em expressões felizes; e isso é muito verossímil. Mas o que entendeis por expressões felizes? Me perguntareis quiçá. Eu vos responderei, senhora, que são aquelas que são próprias a um sentido, ao tato, por exemplo, e que são metafóricas ao mesmo tempo a outro sentido, como aos olhos; daí resulta dupla luz para aquele a quem se fala, a luz verídica e direta da expressão, e a luz reflexa da metáfora. E evidente que nessas ocasiões Saunderson, com todo o espírito de que dispunha, não se entendia a si mesmo senão pela metade, pois percebia apenas a metade das ideias ligadas aos termos que empregava. Mas quem não se vê de tempos no mesmo caso? É um acidente comum aos idiotas, que fazem às vezes excelentes gracejos, e às pessoas que têm o maior espírito, a quem escapa uma tolice, sem que uns e outros se apercebam disso. Reparai que a escassez de palavras produz também o mesmo efeito nos estrangeiros a quem a língua ainda não é familiar: são forçados a dizer tudo com pequeníssima quantidade de termos, o que os obriga a colocar alguns de maneira muito feliz. Mas sendo toda língua em geral pobre de palavras adequadas aos escritores que possuem imaginações vivas, eles se encontram no mesmo caso que estrangeiros dotados de muito espírito: as situações que inventam, os matizes delicados que percebem nos caracteres, a ingenuidade das pinturas que têm a fazer, os apartam a todo momento dos modos de falar comuns, e os levam a adotar giros de frase que são admiráveis sempre que não sejam preciosos nem obscuros; defeitos que se lhes perdoa mais ou menos dificilmente, conforme se tenha mais espírito e menos conhecimento da língua. Eis por que o Sr. de M... é de todos os autores franceses o que mais agrada aos ingleses; e Tácito é de todos os autores latinos o que os pensadores mais estimam. As licenças de linguagem nos escapam, e só a verdade dos termos nos impressiona. Saunderson professou as matemáticas na universidade de Cambridge com um êxito espantoso. Deu lições de óptica; pronunciou discursos sobre a natureza da luz e das cores; explicou a teoria da visão; tratou dos efeitos das lentes, dos fenômenos do arco-íris e de várias matérias relativas à vista e a seu órgão. Estes fatos perderão muito de seu caráter maravilhoso, se considerardes, senhora, que há três coisas a distinguir em toda questão mista de física e de geometria: o fenômeno a explicar, as suposições do geômetra e o cálculo que resulta das suposições. Ora, é evidente que, qualquer que seja a penetração de um cego, os fenômenos da luz e das cores lhe são desconhecidos. Ele entenderá as suposições, porque são todas relativas a causas palpáveis, mas de modo nenhum a razão que o geômetra tinha de preferi-las a outras: pois seria mister que pudesse comparar as suposições mesmas com os fenômenos. O cego aceita portanto as suposições pelo que lhe são dadas; um raio de luz por um fio elástico e delgado, ou por uma série de pequenos corpos que vêm atingir nossos olhos com uma velocidade incrível; e calculada em consequência. A passagem da física à geometria está transposta, e a questão torna-se puramente matemática. Mas que devemos pensar dos resultados do cálculo? 1.° Que é às vezes a última dificuldade obtê-los, e que em vão ficaria um físico muito feliz em imaginar as hipóteses mais conformes à natureza, se não soubesse validá-las pela geometria: por isso os maiores físicos, Galileu, Descartes, Newton, foram grandes geômetras. 2.° Que esses resultados são mais ou menos certos, conforme as hipóteses de partida sejam mais ou menos complicadas. Quando o cálculo é baseado em uma hipótese simples, então as conclusões adquirem força de demonstrações geométricas. Quando há grande número de suposições, a possibilidade de que cada hipótese seja verdadeira diminui na razão do número das hipóteses, mas aumenta de outro lado pela pouca verossimilhança que tantas hipóteses falsas se possam corrigir exatamente uma a outra, e que se obtenha delas um resultado confirmado pelos fenômenos. Aconteceria neste caso como em uma adição cujo resultado fosse exato, embora as somas parciais dos números acrescentados tivessem sido todas tomadas falsamente. Não se pode desconvir que uma tal operação não seja possível; mas vedes ao mesmo tempo que é muito rara. Quanto mais números houver a juntar, mais provável será que tenha havido engano na adição de cada um; mas também, menor será esta possibilidade se o resultado da operação for justo. Há portanto um número de hipóteses tal que a certeza que daí resultasse seria a menor possível. Se faço A, mais B, mais C iguais a 50, concluirei do fato de que 50 é com efeito a quantidade do fenômeno que as suposições representadas pelas letras A, B, C, são verdadeiras? Nunca; pois há uma infinidade de maneiras de subtrair a uma dessas letras e de juntar às duas outras, segundo as quais eu obteria sempre 50 como resultado; mas o caso de três hipóteses combinadas é talvez um dos mais desfavoráveis. Uma vantagem do cálculo que não devo omitir é a de excluir as hipóteses falsas, pela contradição que se verifica entre o resultado e o fenômeno. Se um físico se propõe a encontrar a curva que segue um raio de luz ao atravessar a atmosfera, é obrigado a decidir-se sobre a densidade das camadas de ar, sobre a lei da refração, sobre a natureza e a figura dos corpúsculos luminosos, e talvez sobre outros elementos essenciais que ele não leva em conta, seja porque os despreza voluntariamente, seja porque lhe são desconhecidos. Determina em seguida a curva do raio. Será ela diferente na natureza do que o cálculo o fornece? Suas suposições são incompletas ou falsas. O raio assume a curva determinada? Decorre de duas coisas uma: ou que as suposições se retificaram, ou que são exatas, mas qual das duas? Ele o ignora: entretanto, eis toda a certeza à qual pode chegar. Percorri os Elementos de Álgebra de Saunderson, na esperança de encontrar o que eu desejava saber dos que o viram familiarmente, e que nos instruíram sobre algumas particularidades de sua vida; mas minha curiosidade foi desenganada; e compreendi que elementos de geometria de sua feitura teriam constituído uma obra muito mais singular em si mesma e muito mais útil para nós Acharíamos aí as definições de ponto, de linha, de superfície, de sólido, de ângulo, de intersecção das linhas e dos planos, onde não duvido que ele empregasse princípios de metafísica muito abstrata e muito próxima da dos idealistas. Chamam-se idealistas os filósofos que, tendo consciência apenas de sua própria existência e das sensações que se sucedem dentro deles, não admitem outra coisa: sistema extravagante que só podia, segundo me parece, dever seu nascimento a cegos; sistema que, para a vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de combater, embora seja o mais absurdo de todos. Está exposto com tanta franqueza quanto clareza em três diálogos do doutor Berkeley, bispo de Cloyne: cumpriria convidar o autor do Ensaio sobre nossos conhecimentos a examinar esta obra; encontraria matéria para observações úteis, agradáveis, finas, e tais, numa palavra, como ele as sabe fazer. O seu idealismo bem merece ser denunciado; e esta hipótese tem com o que incitá-lo, menos por sua singularidade do que pela dificuldade de refutá-la em seus princípios; pois são precisamente os mesmos que os de Berkeley. Segundo um e outro, e segundo a razão, os termos essência, matéria, substância, suposto, etc. não trazem quase por si mesmos luzes do nosso espírito; aliás, observa judiciosamente o autor do Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, quer nos elevemos até os céus, quer desçamos até os abismos, nunca saímos de nós mesmos; e só percebemos nosso próprio pensamento: ora, este é o resultado do primeiro diálogo de Berkeley, e o fundamento de todo seu sistema. Não vos sentiríeis curiosa de assistir o embate de dois inimigos, cujas armas se assemelham tão fortemente? Se a vitória coubesse a um deles, só poderia ser àquele que delas melhor se servisse; mas o autor do Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos acaba de dar, num Tratado dos Sistemas, novas provas da perícia com que sabe manejar as suas, e demonstrar quão temível é para os sistemáticos. Eis-nos bem longe de nossos cegos, direis; mas deveis ter a bondade, senhora, de me desculpar todas essas digressões: eu vos prometi um colóquio, e não posso vos manter a palavra sem esta indulgência. Li, com toda a atenção de que sou capaz, o que Saunderson falou do infinito; posso assegurar-vos que possuía sobre o assunto ideias muito justas e muito claras, e que a maioria de nossos infinitários não passariam para ele de cegos. Dependerá apenas de vós julgar o caso por vós mesma: embora a matéria seja assaz difícil e se estenda um pouco além de vossos conhecimentos matemáticos, não desesperarei, preparando-me de pô-la ao vosso alcance e de vos iniciar nesta lógica infinitesimal. O exemplo do ilustre cego prova que o tato pode tornar-se mais delicado que a vista, quando aperfeiçoado pelo exercício; pois, percorrendo com as mãos uma série de medalhas, ele discernia as verdadeiras das falsas, embora as últimas fossem tão bem contrafeitas a ponto de enganar um conhecedor dotado de bons olhos; e ele julgava da exatidão de um instrumento de matemática, fazendo passar a extremidade dos dedos sobre suas divisões. Eis certamente algo mais difícil de fazer do que apreciar pelo tato a semelhança de um busto com a pessoa representada; de onde se vê que um povo de cegos poderia ter estatuários, e tirar das estátuas a mesma vantagem que nós, a de perpetuar a memória das belas ações e das pessoas que lhes fossem caras. Não duvido mesmo que o sentimento que experimentariam, ao tocar as estátuas, fosse muito mais vivo do que o experimentado por nós ao vê-las. Que doçura para um amante que houvesse mui ternamente amado, a de passear as mãos sobre encantos que reconheceria, quando a ilusão, que deve atuar mais fortemente nos cegos do que nos que enxergam, viesse a reanimá-los! Mas pode ser também que, quanto mais prazer sentisse nessa lembrança, menos pesares sentiria. Saunderson tinha de comum com o cego do Puisaux o fato de ser afetado pela menor vicissitude que sobreviesse na atmosfera, e de perceber, sobretudo nos tempos calmos, a presença dos objetos dos quais estava distante apenas alguns passos. Conta-se que um dia, quando assistia a observações astronômicas, que se efetuavam em um jardim, as nuvens que subtraíam de quando em quando aos observadores o disco do sol ocasionavam uma alteração bastante sensível na ação dos raios sobre seu rosto, para; lhe assinalar os momentos favoráveis ou contrários às observações. Acreditareis talvez que se produzisse em seus olhos algum abalo capaz de adverti-lo da presença da luz, mas não da dos objetos; e eu teria acreditado nisso como vós, se não fosse certo que Saunderson estava desprovido não só da vista, mas também do órgão. Saunderson via portanto através da pele; este invólucro era portanto nele de uma sensibilidade tão apurada que se pode assegurar que, com um pouco de hábito, teria conseguido reconhecer um de seus amigos cujo retrato um desenhista lhe teria traçado sobre a mão, e que teria declarado, quanto à sucessão das sensações provocadas pelo lápis: É o senhor fulano. Há pois também uma pintura para os cegos, a que a própria pele deles serviria de tela. Tais ideias são tão pouco quiméricas que não duvido de modo algum que, se alguém vos traçasse sobre a mão a boquinha do Sr...., vós a reconheceríeis imediatamente. Convinde entretanto que isso seria mais fácil ainda a um cego de nascença do que a vós, apesar do hábito que tendes de vê-la e achá-la encantadora, pois entram em vosso julgamento duas ou três coisas: a comparação da pintura que se faria sobre vossa mão com aquela que se fez no fundo de vosso olho; a memória da maneira pela qual se é afetado por coisas que se sente, e da maneira pela qual se é afetado pelas coisas que a gente se contenta em ver e admitir; enfim, a explicação desses dados à questão que vos é proposta por um desenhista que vos pergunta, traçando uma boca sobre a pele de vossa mão com a ponta de seu lápis: A quem pertence a boca que estou desenhando?, Ao passo que a soma das sensações excitadas por uma boca sobre a mão de um cego é a mesma que a soma das sensações sucessivas despertadas pelo lápis do desenhista,que lha representa. Eu poderia acrescentar à história do cego do Puisaux e de Saunderson a de Dídimo de Alexandria, de Eusébio, o Asiático, de Nicásio de Méchlin, e alguns outros que pareceram elevados tão mais acima do resto dos homens, com um senso a menos, que os poetas poderiam fingir, sem exagero, que os deuses ciosos os privaram dele, com medo de ter iguais entre os mortais. Pois o que era esse Tirésias, que lera nos segredos dos deuses, e que possuía o dom de predizer o futuro, senão um filósofo cego cuja memória a Fábula nos conservou? Mas não nos afastemos mais de Saunderson, e sigamos este homem extraordinário até o túmulo. Quando estava a ponto de morrer chamaram para junto dele um ministro muito hábil, o Sr. Gervásio Holmes; os dois mantiveram um diálogo sobre a existência de Deus, de que nos restam alguns fragmentos que eu vos traduzirei o melhor que posso; pois valem realmente a pena. O ministro começou por objetar-lhe as maravilhas da natureza: “Ah, senhor!, dizia-lhe o filósofo cego, deixai de lado todo esse belo espetáculo que nunca foi feito para mim! Fui condenado a passar minha vida nas trevas; e vós me citais prodígios que não entendo, e que só provam para vós e para os que veem como vós. Se quereis que eu creia em Deus, cumpre que me façais tocá-lo. — Senhor, recomeçou habilmente o ministro, levai as mãos sobre vós mesmo, e reencontra-reis a divindade no admirável mecanismo de vossos órgãos. — Senhor Holmes, replicou Saunderson, eu vos repito, tudo isso não é tão belo para mim quanto o é para vós. Mas se o mecanismo animal fosse tão perfeito como vós o pretendeis, e eu quero de fato acreditar, pois sois um homem honesto incapaz de me iludir, o que tem ele de comum com um ser soberanamente inteligente? Se ele vos espanta, é talvez porque tendes o hábito de tratar por prodígio tudo o que vos pareça acima de vossas forças. Fui tão amiúde objeto de admiração para vós que alimento uma opinião bastante má do que vos surpreende. Atraí do fundo da Inglaterra pessoas que não conseguiam compreender como eu fazia geometria: deveis convir que essa gente não dispunha de noções muito exatas da possibilidade das coisas. Um fenômeno está, a nosso ver, acima do homem? Então dizemos de pronto: é obra de um Deus; nossa vaidade não se contenta com menos. Não poderíamos pôr em nossos discursos um pouco menos de orgulho e um pouco mais de filosofia? Se a natureza nos oferece um nó difícil de desatar, deixemo-lo pelo que ele é; e não empreguemos para cortá-lo a mão de um ser que se torna em seguida para nós um novo nó mais indissolúvel que o primeiro. Perguntai a um indiano por que o mundo permanece suspenso nos ares e ele vos responderá que é transportado sobre o dorso de um elefante; e o elefante sobre o que se apoiará? Sobre uma tartaruga; e a tartaruga, quem a sustentará? Este indiano vos causa dó e poder-se-ia dizer-vos como a ele: Senhor Holmes meu amigo, confessai primeiro vossa ignorância, e dispensai-me a graça do elefante e da tartaruga”. Saunderson se deteve por um momento: esperava aparentemente que o ministro lhe respondesse; mas por onde atacar um cego? O Sr. Holmes se prevaleceu da boa opinião que Saunderson concebera de sua probidade, e das luzes de Newton, de Leibniz, de Clarke e de alguns de seus compatriotas, os primeiros gênios do mundo, os quais todos haviam ficado impressionados com as maravilhas da natureza, e reconheciam um ser inteligente como seu autor. Era sem contradita o que o ministro podia objetar de mais forte a Saunderson. Por isso o bom cego conveio que seria temeridade negar o que um homem como Newton não desdenhara admitir: representou todavia ao ministro que o testemunho de Newton não era tão forte para ele como o da natureza inteira, para Newton; e que Newton acreditava sobre a palavra de Deus, ao passo que ele estava reduzido a crer sobre a palavra de Newton. “Considerai, senhor Holmes, acrescentou, quanto é preciso para que eu tenha confiança em vossa palavra e na de Newton. Eu não vejo nada, entretanto admito em tudo uma ordem admirável; mas conto que não exigireis mais do que isso. Eu vos concebo quanto ao estado atual do universo, para obter de vós em compensação a liberdade de pensar o que me aprouver sobre o seu antigo e primeiro estado, a cujo respeito não sois menos cego do que eu. Vós não tendes aqui testemunho a opor-me; e vossos olhos não vos são de nenhum auxílio. Imaginai, pois, se quiserdes, que a ordem que vos impressiona sempre subsistiu; mas deixai-me crer que não é assim; e que se remontássemos ao nascimento das coisas e dos tempos, e se sentíssemos a matéria mover-se e o caos desembrulhar-se, reencontraríamos uma multidão de seres informes para alguns seres bem organizados. Se nada tenho a objetar-vos sobre a condição presente das coisas, posso ao menos interrogar-vos sobre sua condição passada. Posso perguntar-vos, por exemplo, quem disse a vós, a Leibniz, a Clarke e a Newton, que nos primeiros instantes da formação dos animais uns se apresentavam sem cabeça e outros sem pés? Posso sustentar-vos que estes não possuíam estômago e aqueles, intestinos; que alguns, a quem um estômago, um palato e dentes pareciam prometer a duração, acabaram-se por algum vício do coração ou dos pulmões; que os monstros se aniquilaram sucessivamente; que todas as combinações viciosas da matéria desapareceram, e que restaram apenas aquelas onde o mecanismo não implicava nenhuma contradição importante, e que podiam subsistir por si mesmas e se perpetuar. “Isso suposto, se o primeiro homem tivesse tido a laringe fechada, tivesse falta de alimentos convenientes, tivesse pecado pelas partes da geração, não tivesse encontrado sua companheira, ou se tivesse espalhado em outra espécie, senhor Holmes, o que se tornaria o gênero humano? Ficaria envolvido na depuração geral do universo; e o ser orgulhoso que se chama homem, dissolvido e disperso entre as moléculas da matéria, teria restado, talvez para sempre no número dos possíveis. “Se nunca houvesse existido seres informes, não deixaríeis de pretender que jamais os haverá, e que eu me lanço nas hipóteses quiméricas, mas a ordem não é tão perfeita, continuou Saunderson, que não surjam ainda de vez em quando produções monstruosas.” Depois, virando-se de face para o ministro, ajuntou: “Olhai-me bem, senhor Holmes, eu não tenho olhos. O que fizemos a Deus, vós e eu, um para possuir este órgão e outro para dele estar privado?” Saunderson apresentava um ar tão sincero e tão compenetrado, ao pronunciar essas palavras, que o ministro e o resto da assembleia não puderam impedir-se de partilhar de sua dor, e puseram-se a chorar amargamente sobre ele. O cego percebeu. “Senhor Holmes, disse ao ministro, a bondade de vosso coração me era bem conhecida, e sou muito sensível à prova que dela me dais nestes derradeiros momentos: mas se eu vos sou caro, não me recuseis ao morrer o consolo de nunca ter afligido ninguém.” Depois, retomando um tom um pouco mais firme, acrescentou: “Conjeturo pois que, no começo, quando a matéria em fermentação chocava o universo, meus semelhantes eram muito comuns. Mas por que não asseguraria eu a respeito dos mundos o que eu creio a respeito dos animais? Quantos mundos estropiados, falhados dissiparam-se, reformam-se e dissipam-se talvez a cada instante em espaços longínquos, em que eu não consigo tocar, e vós não conseguis ver, mas em que o movimento continua e continuará a combinar aglomerados de matéria, até que obtenham algum arranjo no qual possam perseverar? Ó filósofos! transportai-vos, pois, comigo para os confins deste universo, para além do ponto em que eu toco, e em que vós vedes seres organizados; passeai sobre este novo oceano, e procurai através de suas agitações irregulares alguns vestígios do ser inteligível cuja sabedoria admirais aqui. “Mas de que serve tirar-vos de vosso elemento? O que é o mundo, senhor Holmes? Um composto sujeito a revoluções, das quais todas indicam uma tendência contínua para a destruição; uma sucessão rápida de seres que se seguem, se impelem e desaparecem; uma simetria passageira; uma ordem momentânea. Eu vos censurava há pouco por avaliardes a perfeição das coisas pela vossa capacidade; e eu poderia acusar-vos aqui de medir-lhes a duração pela de vossos dias. Julgais a existência sucessiva do mundo, como a mosca efêmera, a vossa. O mundo é eterno para vós, como vós sois eterno para o ser que vive apenas um instante: ainda assim, o inseto é mais razoável do que vós. Que sequência prodigiosa de gerações de efêmeros atesta vossa eternidade? Que tradição imensa? Entretanto nós passaremos todos, sem que se possa consignar nem a extensão real que ocupamos, nem o tempo preciso que teremos durado. O tempo, a matéria e o espaço não são talvez senão um ponto.” Saunderson agitou-se neste colóquio um pouco mais que seu estado lhe permitia; sobreveio-lhe um acesso de delírio que durou algumas horas, e do qual só saiu para exclamar: “Ó Deus de Clarke e de Newton, compadece-te de mim!” e morreu. Assim findou Saunderson. Vedes, senhora, que todos os argumentos que acabava de objetar ao ministro não eram sequer capazes de tranquilizar um cego. Que vergonha para pessoas que não têm melhores razões que ele, que veem, e a quem o espetáculo espantoso da natureza anuncia, desde o nascer do sol até o pôr das menores estrelas, a existência e a glória de seu autor! Eles têm olhos, de que Saunderson estava privado; mas Saunderson tinha uma pureza de costumes e uma ingenuidade de caráter que lhes falta. Por isso vivem como cegos, e Saunderson morre como se houvesse visto. A voz da natureza se lhe faz ouvir suficientemente através dos órgãos que lhe restam, e seu testemunho será tanto mais forte contra os que se tapam teimosamente os ouvidos e os olhos. Eu perguntaria de bom grado se o verdadeiro Deus não se apresentava a Sócrates ainda mais velado pelas trevas do paganismo, do que a Saunderson pela privação da vista e do espetáculo da natureza. Estou realmente penalizado, senhora, que, para a vossa satisfação e a minha, não nos tenham transmitido desse ilustre cego outras particularidades interessantes. Havia talvez mais luzes a tirar de suas respostas que de todas as experiências que são propostas. Os que viviam com ele deviam ser muito pouco filósofos! Excetuo entretanto seu discípulo, Sr. William Inchlif, que só viu Saunderson em seus derradeiros momentos, e que nos recolheu suas últimas palavras, que eu aconselharia a todos que entendem um pouco o inglês a ler no original em uma obra impressa em Dublin em 1747, e que tem por título: The Life and Character of Dr. Nicholas Saunderson late Lucasian Professor of the Mathematics in the University of Cambridge; by his Disciple and Friend William Inchlif Esq. Hão de notar nela um agrado, uma força, uma verdade, uma doçura que não se encontra em nenhum outro escrito, e que não me gabo de vos haver apresentado, apesar de todos os esforços que envidei a fim de conservá-los em minha tradução. Ele desposou em 1713 a filha do Sr. Dickons, reitor de Boxworth, na região de Cambridge; teve um filho e uma filha que ainda vivem. Os últimos adeuses que deu à família são muito comoventes. “Vou, disse-lhes, aonde todos nós iremos; poupai-me os lamentos que me enternecem. Os testemunhos de dor que me rendeis me tornam muito sensível aos que me escapam. Renuncio sem pena a uma vida que não foi para mim senão um longo desejo e uma privação contínua. Vivei tão virtuosos e mais felizes, e aprendei a morrer tão tranquilos.” Tomou em seguida a mão de sua mulher, que manteve por um momento cerrada entre as suas: voltou o rosto para seu lado, como se procurasse vê-la; abençoou os filhos, abraçou-os a todos, e pediu-lhes que se retirassem, porque assentavam-lhe na alma golpes mais cruéis do que as proximidades da morte. A Inglaterra é o país dos filósofos, dos curiosos, dos sistemáticos; entretanto, sem o Sr. Inchlif, não saberíamos de Saunderson senão o que os homens mais comuns nos teriam informado; por exemplo, que reconhecia os lugares onde fora introduzido uma vez pelo ruído das paredes e da calçada, quando o faziam, e cem outras coisas da mesma natureza que lhe eram comuns com quase todos os cegos. Mas como!, encontram-se tão frequentemente na Inglaterra cegos do mérito de Saunderson? E acham-se lá todos os dias pessoas que nunca enxergaram, e que ministrem lições de óptica? Procurou-se restituir a vista a cegos de nascença; mas se se olhasse o fato mais de perto, verificar-se-ia, creio, que se pode realmente aproveitar outro tanto para filosofia questionando um cego de bom senso. Saber-se-ia como as coisas se passam nele, poder-se-ia compará-las com a maneira pela qual elas se passam em nós, tirar-se-ia talvez desta comparação a solução das dificuldades que tornam a teoria da visão e dos sentidos tão confusa e tão incerta; mas não concebo, confesso, o que se espera de um homem a quem se acaba de fazer uma operação dolorosa em um órgão muito delicado que o mais ligeiro incidente põe a perder, e que engana muitas vezes aqueles nos quais ele é são e que desfrutam desde muito tempo suas vantagens. Quanto a mim, eu escutaria com mais satisfação acerca da teoria dos sentidos um metafísico a quem os princípios da metafísica, os elementos das matemáticas e a conformação das partes fossem familiares, do que um homem sem educação e sem conhecimentos, a quem se restituiu a vista pela operação da catarata. Eu depositaria menos confiança nas respostas de uma pessoa que enxerga pela primeira vez do que nas descobertas de um filósofo que houvesse bem meditado seu tema na obscuridade; ou, para falar-vos a linguagem dos poetas, que houvesse vazado os próprios olhos para conhecer mais facilmente como se efetua a visão. Se se pretendia dar alguma certeza às experiências, seria preciso pelo menos que o indivíduo fosse preparado de longa data, que o educassem e talvez que o tornassem filósofo: mas não é obra de um momento tornar-se filósofo, mesmo quando a gente o é; o que dizer então quando a gente não o é? É muito pior, quando se julga sê-lo. Seria muito conveniente que as observações só começassem longo tempo depois da operação. Para tal efeito, seria preciso tratar o doente na obscuridade e certificar-se realmente de que seu ferimento está curado e que seus olhos estão sãos. Eu não gostaria que o expusessem primeiro à luz do dia; o brilho de uma luz viva nos impede de ver; e o que não há de provocar em um órgão, que deve ser de extrema sensibilidade, que não experimentou ainda nenhuma impressão que o tenha embotado! Mas não é tudo: constituiria ainda um ponto muito delicado, o de tirar proveito de um indivíduo assim preparado; e o de interrogá-lo com bastante sutileza para que dissesse precisamente apenas o que se passa nele. Seria mister que o interrogatório se fizesse em plena academia; ou melhor, a fim de não haver espectadores supérfluos, convidar à reunião apenas os que o merecessem por seus conhecimentos filosóficos, anatômicos etc.... As mais hábeis pessoas e os melhores espíritos não seriam bons demais para tanto. Preparar e interrogar um cego de nascença não teria sido de modo algum ocupação indigna dos talentos reunidos de Newton, Descartes, Locke e Leibniz. Terminarei esta carta, que já é demasiado longa, por uma questão que me propus há tempo. Algumas reflexões sobre o estado singular de Saunderson me fizeram ver que ela nunca foi inteiramente resolvida. Supõe-se um cego de nascença que se tenha tornado homem feito, e a quem se ensina a distinguir, pelo contato, um cubo e um globo de mesmo metal e quase de mesma grandeza, de modo que, ao tocar em um ou em outro, possa dizer qual é o cubo e qual é o globo. Supõe-se que, estando o cubo e o globo colocados sobre uma mesa, o referido cego venha a usufruir da vista; e se lhe pergunta se, vendo-os sem tocá-los, poderá discerni-los e dizer qual é o cubo e qual é o globo. Foi o Sr. Molineaux quem propôs primeiro essa questão, e quem tentou resolvê-la. Ele declarou que o cego não distinguiria o globo do cubo; “pois, diz ele, embora tenha aprendido por experiência de que maneira o globo e o cubo afetam seu tato, ainda não sabe no entanto que aquilo que lhe afeta o tato desta ou daquela maneira deve impressionar-lhe os olhos desta ou daquela maneira; nem que o ângulo avançado do cubo que lhe pressiona a mão de maneira desigual deve parecer a seus olhos tal como parece no cubo”. Locke, consultado sobre a questão, disse: “Sou inteiramente da opinião do Sr. Molineaux. Creio que o cego não seria capaz, à primeira vista, de assegurar com alguma confiança qual seria o cubo e qual seria o globo, se se contentasse em olhá-los, embora, tocando-os, pudesse especificá-los e distingui-los seguramente pela diferença de suas figuras, que o tato levá-lo-ia a reconhecer”, O Sr. Abade de Condillac, cujo Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos lestes com tanto prazer e utilidade, e cujo excelente Tratado dos Sistemas eu vos remeto com a presente carta, tem a respeito uma opinião particular. E inútil referir-vos as razões nas quais se apoia; seria recusar-vos o prazer de reler uma obra onde elas se acham expostas de maneira tão agradável e tão filosófica que de meu lado eu me arriscaria demais a deslocá-las. Contentar-me-ei em observar que todas tendem a demonstrar que o cego de nascença nada vê, ou que vê a esfera e o cubo diferentes; e que as condições de que os dois corpos sejam do mesmo metal e quase da mesma grossura, que se julgou oportuno inserir no enunciado da questão, são no caso supérfluas, o que não pode ser contestado; pois, poderia ele dizer, se não há qualquer ligação essencial entre a sensação da vista e a do tato, como os Srs. Locke e Molineaux pretendem, eles devem convir que se poderia ver dois pés de diâmetro em um corpo que desaparecesse sob a mão. O Sr. de Condillac acrescenta, entretanto, que se o cego de nascença enxerga os corpos, discerne-lhes as figuras e se hesita sobre o julgamento que a respeito deles deve proferir, é talvez apenas por razões metafísicas bastante sutis, que eu vos explicarei daqui a pouco. Eis portanto dois pareceres diferentes sobre a mesma questão, e entre filósofos de primeira força. Pareceria que, depois de manejada por pessoas tais como os Srs. Molineaux, Locke e o Abade de Condillac, ela não deve deixar nada mais a dizer; mas há tantas faces pelas quais a mesma coisa pode ser considerada que não seria espantoso que eles não tivessem esgotado todas. Os que declararam que o cego de nascença distinguiria o cubo da esfera começaram por supor um fato que importava talvez examinar; saber se um cego de nascença, a quem se eliminassem as cataratas, estaria em condição de servir-se dos olhos nos primeiros momentos que sucederiam à operação. Disseram apenas: “O cego de nascença, comparando as ideias de esfera e de cubo que recebeu pelo tato com as que obtém pela vista, conhecerá necessariamente que são as mesmas; e haveria nele muita extravagância em declarar que é o cubo que lhe dá, à vista, a ideia de esfera e que é da esfera que lhe vem a ideia do cubo. Ele chamara pois esfera e cubo, à vista, o que chamava esfera e cubo ao tato”. Mas qual foi a resposta e o raciocínio de seus antagonistas? Supuseram similarmente que o cego de nascença veria tão logo dispusesse do órgão são; imaginaram que ocorria ao olho ao qual se abaixa a catarata como ao braço que cessa de ser paralítico: não é preciso exercício a este para sentir, dizem eles, nem por conseguinte ao outro para ver; e acrescentaram: “Concedamos ao cego de nascença um pouco mais de filosofia que vós lhe concedeis, e depois de levar o raciocínio até onde vós o deixastes, ele continuará: mas, entretanto, quem me assegura que, aproximando-me desses corpos e aplicando as mãos sobre estes, eles não desenganarão subitamente minha expectativa, e que o cubo não me enviará a sensação da esfera, e a esfera a do cubo? Não há como a experiência que possa me ensinar se existe conformidade de relação entre a vista e o tato: estes dois sentidos poderiam estar em contradição em suas relações, sem que eu nada soubesse; talvez mesmo eu acreditasse que aquilo que se apresenta atualmente à minha vista é apenas pura aparência, se não me houvessem informado que se trata dos mesmos corpos que se tocam. Este me parece, na verdade, dever ser o corpo que eu denominava cubo e aquele o corpo que eu denominava esfera; mas ninguém me pergunta o que ele me parece, porém o que ele é; e eu não estou de modo algum em condições de satisfazer à última indagação”. Este raciocínio, diz o autor do Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, seria muito embaraçoso para o cego de nascença; e não vejo outra coisa exceto a experiência que possa fornecer no caso uma resposta. Tudo indica que o Sr. Abade de Condillac não quer falar aqui senão da experiência que o cego de nascença reiteraria sozinho com os corpos por um segundo contato. Sentireis logo mais por que faço essa observação. De resto, este hábil metafísico poderia ter acrescentado que um cego de nascença devia achar tanto menos absurdo supor que dois sentidos possam estar em contradição quanto imagina que um espelho os coloca de fato assim, como já notei mais acima. O Sr. de Condillac observa em seguida que o Sr. Molineaux dificultou a questão com várias condições que não podem nem prevenir nem levantar as dificuldades que a metafísica suscitaria ao cego de nascença. Esta observação é tanto mais justa quanto a metafísica que se supõe no cego de nascença não está deslocada; posto que, nessas questões filosóficas, a experiência deve sempre ser sensatamente feita com um filósofo, isto é, com uma pessoa que apreenda, nas questões que se lhe propõem, tudo o que o raciocínio e a condição de seus órgãos lhe permitam perceber. Eis, senhora, em resumo, o que se disse pró e contra nesta questão; e ireis ver, pelo exame que vos farei, como aqueles que anunciaram que o cego de nascença veria as figuras e discerniria os corpos estavam longe de perceber que tinham razão, e como aqueles que o negavam possuíam razões de pensar que não estavam de modo algum errados. A questão do cego de nascença, tomada um pouco mais geralmente do que o Sr. Molineaux a propôs, abrange duas outras que iremos considerar separadamente. Cabe perguntar: 1.º se o cego de nascença verá tão logo esteja feita a operação da catarata; 2° caso veja, se ele verá o suficiente para discernir as figuras; se estará em condições de lhes aplicar seguramente, ao vê-las, os mesmos nomes que lhes atribuía ao tocá-las; e se terá demonstração de que os referidos nomes lhes convêm. O cego de nascença verá imediatamente após a cura do órgão? Os que pretendem que ele não enxergará nada dizem: “Tão logo o cego de nascença desfruta da faculdade de servir-se dos olhos, toda a cena que se lhe apresente em perspectiva virá pintar-se no fundo do olho. Esta imagem, composta de uma infinidade de objetos reunidos em pequeníssimo espaço, não passa de um conglomerado confuso de figuras que ele não terá condições de distinguir umas das outras. Todo mundo está quase de acordo que só a experiência pode ensinar-lhe a julgar a distância dos objetos, e que ele se encontra mesmo na necessidade de se lhes aproximar, de tocá-los, de se afastar, de se reaproximar, e de tocá-los de novo, a fim de se certificar de que não fazem parte dele mesmo, que são estranhos a seu ser, e que ele está ora próximo, ora distante dos mesmos: por que a experiência não lhe seria ainda necessária para percebê-los? Sem a experiência, aquele que percebe objetos pela primeira vez deveria imaginar, quando se distanciam dele, ou ele dos objetos além do alcance de sua vista, que estes cessaram de existir; pois não há como a experiência que realizamos com os objetos permanentes, e que reencontramos no mesmo lugar onde os deixamos, para nos constatar a sua existência contínua no distanciamento. E talvez por isso que as crianças se consolam tão prontamente quanto aos brinquedos de que as privamos. Não se pode afirmar que os esqueçam prontamente: pois se se considera haver crianças de dois anos e meio que conhecem parte ponderável das palavras de uma língua, e que lhes custa mais pronunciá-las do que retê-las, ficar-se-á convencido de que o tempo da infância é o da memória. Não seria mais natural supor que então as crianças imaginam que aquilo que cessam de ver cessou de existir, tanto mais que sua alegria parece mesclada de admiração, quando os objetos que perderam de vista acabam por reaparecer? As amas ajudam-nas a adquirir a noção dos seres ausentes, exercitando-as num pequeno jogo que consiste em cobrir e descobrir subitamente o rosto. Elas têm, desta maneira, cem vezes em um quarto de hora, a experiência de que o que deixa de aparecer não deixa de existir. Daí se segue que é à experiência que devemos a noção da existência continuada dos objetos; que é pelo tato que adquirimos a de sua distância; que é preciso talvez que o olho aprenda a ver, como a língua a falar; que não seria espantoso que o auxílio de um dos sentidos fosse necessário ao outro, e que o tato, que nos assegura da existência dos objetos fora de nós quando se acham presentes aos nossos olhos, é talvez ainda o sentido a que está reservado nos constatar, não digo as figuras e outras modificações dos objetos, mas até sua presença. Acrescentam-se aos raciocínios acima as famosas experiências de Cheselden. O jovem a quem este hábil cirurgião abaixou as cataratas não distinguiu, por muito tempo, nem distâncias, nem situações, nem sequer figuras. Um objeto de uma polegada colocado diante de seu olho, e que lhe escondia uma casa, parecia-lhe tão grande quanto a casa. Todos os objetos ficavam sobre os seus olhos; e eles lhe pareciam aplicados a este órgão, como os objetos de tato o são à pele. Não conseguia distinguir o que julgara redondo, por meio das mãos, do que julgara angular; nem discernir com os olhos se o que sentira estar em cima ou embaixo, estava com efeito em cima ou embaixo. Chegou, mas não foi sem dificuldade, a perceber que sua casa era maior do que seu quarto, mas nunca a conceber como o olho podia dar-lhe semelhante ideia. Precisou de grande número de experiências reiteradas para certificar-se de que a pintura representava corpos sólidos: e quando ficou realmente convencido, à força de mirar quadros, que não eram de modo algum apenas superfícies que ele via, pôs-lhes a mão, e sentiu-se muito espantado por não encontrar senão um plano unido e sem qualquer saliência: perguntou então qual era o enganador, o sentido do tato, ou o sentido da vista. Aliás, a pintura causou o mesmo efeito nos selvagens, a primeira vez que a viram: tomaram as figuras pintadas por homens vivos, interrogaram-nas, e ficaram inteiramente surpresos por não receberem resposta alguma. O erro não lhes vinha certamente do pouco hábito de ver. Mas o que responder às outras dificuldades? Que, de fato, o olho experimentado de um homem faz ver melhor os objetos do que o órgão imbecil e inteiramente novo de uma criança ou de um cego de nascença a quem se acaba de abaixar as cataratas. Vede, senhora, todas as provas que a respeito apresenta o Sr. Abade de Condillac, ao fim de seu Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, onde ele se propõe como objeção as experiências efetuadas por Cheselden, e relatadas pelo Sr. de Voltaire. Os efeitos da luz sobre um olho que é afetado pela primeira vez, e as condições requeridas nos humores desse órgão, a córnea, o cristalino etc.... são aí expostos com muita nitidez e vigor, e quase não permitem duvidar que a visão não se faça mui imperfeitamente na criança que abre os olhos pela primeira vez, ou no cego ao qual se acaba de fazer a operação. É preciso portanto convir que devemos perceber nos objetos uma infinidade de coisas que nem a criança nem o cego de nascença percebem, embora elas se pintem igualmente no fundo de seus olhos; que não basta que os objetos nos atinjam, que é preciso ainda que estejamos atentos às suas impressões; que, por conseguinte, nada se vê da primeira vez que nos servimos dos olhos; que somos afetados, nos primeiros instantes da visão, apenas por uma multidão de sensações confusas que se desenredam apenas com o tempo e pela reflexão habitual sobre o que se passa em nós; que é a experiência unicamente que nos ensina a comparar as sensações com o que as ocasiona; que, não tendo as sensações nada que se assemelhe essencialmente aos objetos, cabe à experiência instruir-nos sobre analogias que parecem ser de pura instituição em uma palavra, é indubitável que o tato não serve muito para fornecer ao olho um conhecimento preciso da conformidade do objeto com a representação que este recebe dele; e penso que, se tudo não se executasse na natureza por meio de leis infinitamente gerais; se, por exemplo, a picada de certos corpos duros fosse dolorosa, e a de outros corpos, acompanhada de prazer, morreríamos sem haver recolhido a centésima milionésima parte das experiências necessárias à conservação de nosso corpo e ao nosso bem-estar. Entretanto, não penso absolutamente que o olho não possa instruir-se, ou, se é permitido falar assim, experimentar-se por si próprio. Para certificar-se, pelo tato, da existência e da figura dos objetos, não é indispensável ver; por que seria preciso tatear, para certificar-se das mesmas coisas pela vista? Conheço todas as vantagens do tato; e não as disfarcei, quando se tratou de Saunderson ou do cego de Puisaux; mas não lhe reconheci de modo algum aquela outra. Concebe-se sem dificuldade que o uso de um dos sentidos pode ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do outro; mas de modo algum que haja entre suas funções uma dependência essencial. Há seguramente nos corpos qualidades que jamais perceberíamos sem o toque: é o tato que nos instrui acerca da presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as percebem quando foram advertidos por este sentido; mas tais serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina do que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da existência de objetos e das modificações que lhe escapariam devido à sua pequeneza. Se alguém vos colocasse sem o saberdes, entre o polegar e o índice, um papel ou qualquer outra substância unida, delgada e flexível, nada exceto vosso olho poderia informar-vos de que o contato desses dedos não se efetuaria imediatamente. Observarei, de passagem, que seria infinitamente mais difícil enganar neste particular um cego do que uma pessoa que tem o hábito de ver. Um olho vivo e animado teria sem dúvida dificuldade em certificar-se de que os objetos externos não fazem parte dele próprio; que está ora próximo, ora distante deles; que são figurados; que são maiores uns que os outros; que possuem profundidade etc, mas não duvido que os visse, com o tempo, e que não os visse assaz distintamente para discernir neles ao menos os limites grosseiros. Negá-lo, seria perder de vista a destinação dos órgãos; seria esquecer os principais fenômenos da visão; seria dissimular-se que não há pintor bastante hábil a ponto de se acercar da beleza e da exatidão das miniaturas que se pintam no fundo de nossos olhos; que nada há de mais preciso do que a semelhança da representação com o objeto representado; que a tela deste quadro não é tão pequena; que nela não há qualquer confusão entre as figuras; que estas ocupam quase meia polegada quadrada; e que nada é mais fácil, aliás, do que explicar como o tato se arrumaria para ensinar o olho a perceber, se o uso deste último órgão fosse absolutamente impossível sem o auxílio do primeiro. Mas não me aterei a simples presunções; e perguntarei se é o tato que ensina ao olho distinguir as cores. Não penso que se conceda ao tato um privilégio tão extraordinário; isto suposto, segue-se que, se se apresenta a um cego, a quem se acaba de restituir a vista, um cubo negro, com uma esfera vermelha, sobre um grande fundo branco, ele não tardará em discernir os limites dessas figuras. Ele tardará, poderia alguém responder, todo o tempo necessário aos humores do olho, para se disporem convenientemente: à córnea, para assumir a convexidade requerida pela visão; à pupila, para ser suscetível da dilatação e da contração que lhe são próprias; aos filetes da retina, para não ser nem muito nem pouco sensível à ação da luz; ao cristalino, para se exercitar nos movimentos para frente e para trás que se lhe suspeita; ou aos músculos, para preencherem suas funções; aos nervos ópticos, para se acostumarem a transmitir a sensação; ao globo inteiro do olho, para se prestar a todas as disposições necessárias, e a todas as partes que o compõem, para concorrerem à execução dessa miniatura da qual se tira tão bom proveito, quando se trata de demonstrar que o olho se experimentará por si mesmo. Confesso que, por mais simples que seja o quadro que acabo de apresentar ao olha de um cego de nascença, ele não distinguirá bem suas partes a não ser quando o órgão reunir todas as condições precedentes; mas é talvez obra de um momento; e não seria difícil, aplicando-se o raciocínio que acabam de me objetar quanto a uma máquina um tanto complexa, a um relógio, por exemplo, demonstrar, pelo pormenor de todos os movimentos que se passem no tambor, no fuso, nas rodas, nas palhetas, no balancim etc, que a agulha precisará de quinze dias a fim de percorrer o espaço de um segundo. Se se responder que tais movimentos são simultâneos, replicarei que sucede talvez o mesmo com os que se passam no olho, quando ele se abre pela primeira vez, e com a maioria dos julgamentos que se fazem, em consequência. Sejam quais forem as condições exigidas ao olho para que seja capaz da visão, cumpre convir que não compete ao tato fornecer-lhas, que o referido órgão as adquire por si mesmo; e que, por conseguinte, chegará a distinguir as figuras que nele hão de se pintar, sem o auxílio de um outro sentido. Mas, uma vez mais, dir-se-á, quando é que se chegará a isso? Talvez mais depressa do que se pensa. Quando fomos visitar juntos o gabinete do Jardim Real, vós vos lembrais, senhora, da experiência do espelho côncavo, e do susto que tomastes quando vistes vir a vós a ponta de uma espada com a mesma velocidade que a ponta daquela que estava em vossa mão avançava para a superfície do espelho? Entretanto tínheis o hábito de referir além dos espelhos todos os objetos que neles se pintam. A experiência não é, pois, nem tão necessária nem mesmo tão infalível quanto se pensa, para perceber os objetos ou suas imagens onde elas estão. Não há nada, inclusive o vosso papagaio, que não me forneça prova disso. A primeira vez que ele se viu em um espelho, aproximou o bico e, encontrando apenas a si próprio que tomou por seu semelhante, fez a volta do espelho. Não quero de modo algum atribuir ao testemunho do papagaio mais força do que tem; mas é uma experiência animal onde o preconceito não pode ter parte. Entretanto, se me assegurassem que um cego de nascença nada distinguiu durante dois meses, não ficaria espantado. Concluiria daí somente a necessidade da experiência do órgão, mas de nenhum modo a necessidade do contato para experimentá-lo. Eu não compreenderia senão melhor o quanto importa deixar um cego de nascença passar algum tempo na obscuridade, quando o destinamos a observações; dar a seus olhos a liberdade de se exercitarem, o que ele fará mais comodamente nas trevas do que em pleno dia; e não lhe conceder, nas experiências, senão uma espécie de crepúsculo, ou aproveitar pelo menos no local onde elas se efetuarem a vantagem de aumentar a diminuir à discrição a claridade. Encontrar-me-ão ainda mais disposto a convir que essas espécies de experiências serão sempre muito difíceis e muito incertas; e que o mais curto com efeito, embora na aparência o mais longo, é premunir o indivíduo de conhecimentos filosóficos que o capacitem a comparar as duas condições pelas quais passou, e a nos informar da diferença entre o estado de um cego e o de um homem que enxerga. Ainda uma vez, o que se pode esperar de preciso de quem não tem o menor hábito de refletir e mudar de opinião e que, como o cego de Cheselden, ignora as vantagens da vista, a ponto de ser insensível à sua própria desgraça, e não imaginar que a perda deste sentido prejudica muito a seus prazeres? Saunderson, a quem não se recusará o título de filósofo, não alimentava certamente a mesma indiferença; e duvido muito que fosse do mesmo parecer que o autor do excelente Tratado dos Sistemas. Eu suspeitaria de bom grado o último desses filósofos de haver dado ele mesmo num pequeno sistema, quando pretendeu “que, se a vida do homem fosse apenas uma sensação não interrompida de prazer ou de dor, feliz em um caso sem qualquer ideia de desventura e infeliz no outro sem qualquer ideia de ventura, ele teria gozado ou sofrido; e que, como se tal fosse a sua natureza, o homem não teria olhado em redor de si para descobrir se algum ser velava por sua conservação, ou trabalhava para prejudicá-lo; que é a passagem alternada de um a outro desses estados, que o fez refletir etc....” Acreditais, senhora, que, descendo de percepções claras em percepções claras (pois é a maneira de filosofar do autor, e a boa maneira), jamais chegasse a semelhante conclusão? Não sucede à ventura e à desventura o mesmo que às trevas e à luz: uma não consiste na pura e simples privação da outra. Talvez nos assegurássemos de que a felicidade não nos é menos essencial que a existência e o pensamento, se a fruíssemos sem nenhuma alteração; mas não posso dizer outro tanto da infelicidade. Seria muito natural encará-la como um estado forçado, sentir-se inocente, crer-se no entanto culpado, e acusar ou escusar a natureza, como se faz. O Sr. Abade de Condillac pensa que uma criança não se queixa quando sofre, somente porque não sofreu sem trégua desde que veio ao mundo? Se ele me responder “que existir e sofrer seria a mesma coisa para quem sempre houvesse sofrido; e que este não imaginaria que se pudesse suspender sua dor sem destruir sua existência”; talvez, eu lhe replicaria, o homem infeliz sem interrupção não dissesse: O que fiz, para sofrer? Mas quem o impediria de dizer: O que fiz, para existir? Entretanto não vejo por que não teria ele os dois verbos sinônimos, existo e sofro, um para a prosa e outro para a poesia, tal como temos as duas expressões, vivo e respiro. De resto, notareis melhor do que eu, senhora, que esta passagem do Sr. Abade de Condillac está mui perfeitamente escrita; e receio muito que não digais, comparando minha crítica à reflexão dele, que preferis ainda um erro de Montaigne e uma verdade de Charron. E sempre digressões, dir-me-eis vós. Sim, senhora, é a condição de nosso tratado. Eis agora minha opinião acerca das duas questões precedentes. Penso que a primeira vez que os olhos do cego de nascença se abrirem à luz, ele não perceberá nada absolutamente; que será preciso algum tempo a seu olho para que se experimente: mas que este se experimentará por si próprio, e sem a ajuda do tato; e que conseguirá não só distinguir as cores, mas discenir ao menos os limites grosseiros dos objetos. Vejamos presentemente se, na suposição de que adquira tal aptidão em um tempo muito breve, ou que a obtenha agitando os olhos nas trevas onde se teria tomado o cuidado de encerrá-lo e de exortá-lo a esse exercício por algum tempo após a operação e antes das experiências; vejamos, digo, se ele reconheceria, à vista, os corpos que houvesse tocado, e se estaria em condições de lhes dar os nomes que lhes convêm. É a última questão que me resta a resolver. Para me desincumbir dela de uma forma que vos apraza, posto que amais o método, distinguiria várias espécies de pessoas, com as quais se podem tentar as experiências. Caso sejam pessoas grosseiras, sem educação, sem conhecimentos, e não preparadas, penso que, quando a operação da catarata houver destruído perfeitamente o vício do órgão, e quando o olho estiver são, os objetos se pintarão nele muito distintamente; mas, que essas pessoas não estando habituadas a nenhuma espécie de raciocínio, não sabendo o que é sensação, ideia; não estando em condição de comparar as representações que receberam pelo tato com as que lhes vêm pelos olhos, essas pessoas irão declarar: Eis um círculo, eis um quadrado, sem que se possa depositar confiança em seu julgamento; ou mesmo hão de convir ingenuamente que nada percebem nos objetos, que se lhes apresentem à vista, que se pareça com o que elas tocaram. Há outras pessoas que, comparando as figuras que hão de perceber nos corpos com aquelas que produziam impressão em suas mãos, e aplicando pelo pensamento o tato a tais corpos que se encontram a distância, dirão de um que é um quadrado, e de outro que é um círculo, mas sem saber muito bem por quê; pois a comparação das ideias que obtiveram pelo tato com as que recebem pela vista não se efetua nelas assaz distintamente a ponto de convencê-las da verdade de seus juízos. Passarei, senhora, sem digressão, a um metafísico com o qual se tentasse a experiência. Não duvido de modo algum que raciocinasse desde o instante em que começasse a perceber distintamente os objetos, como se os tivesse visto toda a sua vida; é que depois de comparar as ideias que lhe vêm pelos olhos com as que apreendeu pelo tato dissesse, com a mesma segurança que vós e eu: “Eu estaria muito tentado a crer que este é o corpo que sempre chamei quadrado; mas vou me abster realmente de declarar que isso é assim. Quem me provou que, se eu me aproximasse, eles não desapareceriam debaixo de minhas mãos? O que sei eu se os objetos de minha vista não se destinam a ser também os objetos de meu tato? Ignoro se o que me é visível é palpável; mas ainda não estivesse nessa incerteza, e que acreditasse na palavra das pessoas que me rodeiam, que o que vejo é realmente o que toco, eu não teria avançado muito mais. Os referidos objetos poderiam muito bem transformar-se em minhas mãos, e enviar-me, pelo tato, sensações totalmente contrárias às que experimentei pela vista. Senhores, acrescentaria, esse corpo me parece o quadrado e aquele, o círculo; mas não tenho nenhuma ciência de que sejam tais ao tato assim como à vista”. Se substituirmos um geômetra ao metafísico, Saunderson a Locke, ele nos dirá como o outro que, a crer em seus olhos, de duas figuras que enxerga, aquela é a que denominava quadrado é esta a que denominava círculo: “pois me apercebo, acrescentaria, que não há outra além da primeira onde eu possa arranjar os fios e colocar os alfinetes de cabeça grande, que marcavam os pontos angulares do quadrado; e que não há outra além da segunda à qual eu possa inscrever ou circunscrever os fios que me eram necessários para demonstrar as propriedades do círculo. Eis portanto um círculo! Eis portanto um quadrado! Mas, continuaria ele, com Locke, pode Ser que, quando eu aplicasse minhas mãos sobre essas figuras, elas se transformariam uma na outra de maneira que a mesma figura poderia servir-me para demonstrar aos cegos as propriedades do círculo, e aos que veem, as propriedades do quadrado. Pode ser que eu visse um quadrado e que ao mesmo tempo sentisse um círculo. Não, teria prosseguido; estou enganado. Aqueles a quem eu demonstrava as propriedades do círculo e do quadrado não estavam com as mãos sobre o meu ábaco e não tocavam os fios que eu estendera e que limitavam minhas figuras; entretanto eles me compreendiam. Não viam portanto um quadrado, quando eu sentia um círculo; sem o que nunca estaríamos entendidos; eu lhes teria traçado uma figura, e demonstrado as propriedades de outra; eu lhes teria dado uma linha reta por um arco de círculo, e um arco de círculo por uma linha reta. Mas, visto que todos me entendiam, todos os homens veem uns como os outros: eu vejo portanto quadrado o que eles viam quadrado, e circular o que eles viam circular. Assim, aí está o que sempre denominei quadrado, e aí está o que sempre denominei círculo”. Substituí o círculo à esfera, e o quadrado ao cubo, porque tudo indica que nós julgamos das distâncias apenas pela experiência; e, consequentemente, que aquele que se serve dos olhos pela primeira vez vê apenas superfícies e que ele não sabe o que vem a ser saliência; pois a saliência de um corpo à vista consiste no fato de alguns de seus pontos parecerem mais próximos de nós do que os outros. Mas ainda que o cego de nascença julgasse, desde a primeira vez que vê, da saliência e da solidez dos corpos, e que estivesse em condição de discernir, não só o círculo do quadrado, mas também a esfera do cubo, nem por isso creio que acontecesse o mesmo com todo outro objeto mais composto. É muito provável que a cega de nascença do Sr. Réaumur discernisse as cores umas das outras, mas pode-se apostar trinta contra um que ela se pronunciou ao acaso sobre a esfera e sobre o cubo; e considero como certo que, a não ser por uma revelação, não lhe foi possível reconhecer suas luvas, seu roupão e seu calçado. Estes objetos estão carregados de tão grande número de modificações; há tão poucas relações entre sua forma total e a dos membros que são destinados a ornar ou a cobrir que constituiria um problema cem vezes mais embaraçoso para Saunderson, o de determinar o uso de seu barrete, do que para o Sr. d’Alembert ou o Sr. Clairaut, o de redescobrir o uso de suas tábuas. Saunderson não deixaria de supor que reina uma relação geométrica entre as coisas e seu uso; e consequentemente perceberia, em duas ou três analogias, que seu barrete era feito para sua cabeça: não há aí nenhuma forma arbitrária que tendesse a perdê-lo. Mas que pensaria dos ângulos e da borla de seu barrete? De que serve esse tufo? Por que de preferência quatro ângulos e não seis?, ter-se-ia perguntado; e essas duas modificações, que são para nós uma questão de ornamento, teriam sido para ele a fonte de uma multidão de raciocínios absurdos ou, antes, a ocasião para uma excelente sátira do que chamamos o bom gosto. Pensando maduramente as coisas, confessar-se-á que a diferença existente entre uma pessoa que sempre enxergou, mas a quem o uso de um objeto é desconhecido, e a que conhece o uso de um objeto, mas que nunca enxergou, não é em vantagem desta: entretanto, acreditais, senhora, que se alguém vos mostrasse hoje, pela primeira vez, um adereço, jamais chegaríeis a adivinhar que é um adorno, e que é um adorno de cabeça? Mas, se é tanto mais difícil a um cego de nascença, que vê pela primeira vez, julgar bem os objetos conforme tenham um maior número de formas, quem o impediria de tomar um observador inteiramente vestido e imóvel em uma poltrona colocada diante dele, por móvel ou por máquina, e uma árvore com as folhas e os ramos agitados pelo ar, por um ser que se move, animado e pensante? Senhora, quantas coisas nossos sentidos nos sugerem; e como nos seria difícil, sem os nossos olhos, supor que um bloco de mármore não pensa nem sente! Resta pois a demonstrar que Saunderson estaria certo de que não se enganava no julgamento que acabava de pronunciar sobre o círculo e o quadrado somente; e que há casos onde o raciocínio e a experiência dos outros podem esclarecer a vista acerca da relação do tato, e instruí-la de que aquilo que é assim para o olho é assim também para o tato. Não seria entretanto menos essencial, quando alguém se propusesse a demonstrar alguma proposição de eterna verdade, como é chamada, comprovar sua demonstração, privando-a do testemunho dos sentidos; pois percebeis bem, senhora, que, se alguém pretendesse provar-vos que a projeção de duas linhas paralelas sobre um quadrado deve efetuar-se por duas linhas convergentes, porque duas alamedas parecem tais, esqueceria que a proposição é verdadeira para um cego tanto para ele. Mas a suposição anterior do cego de nascença sugere duas outras, uma de um homem que enxergasse desde o nascimento, e que não possuísse o sentido do tato, e outra de um homem em quem o sentido da vista e do tato estivessem perpetuamente em contradição. Poder-se-ia perguntar ao primeiro se, restituindo-lhe o sentido que lhe falta, e tirando-lhe o sentido da vista mediante uma venda, ele reconhecia os corpos ao tocá-los. É evidente que a geometria, caso fosse nela instruído, lhe forneceria um meio infalível de certificar-se se o testemunho dos dois sentidos são contraditórios ou não. Precisaria apenas tomar o cubo ou a esfera entre as mãos, demonstrar a alguém suas propriedades, e declarar, se o estiverem compreendendo, que a gente vê cubo o que ele sente cubo, e que é portanto o cubo que ele está segurando. Quanto àquele que ignorasse essa ciência, penso que não lhe seria mais fácil discenir, pelo tato, o cubo da esfera do que ao cego do Sr. Molineux distingui-los pela vista. Com respeito àquele em quem as sensações da vista e do tato fossem perpetuamente contraditórias, não sei o que pensaria das formas, da ordem, da simetria, da beleza, da feiura etc... Segundo tudo indica, ficaria, com referência a essas coisas, como nós ficamos relativamente à extensão e à duração reais dos seres. Declararia, em geral, que um corpo tem uma forma; mas deveria inclinar-se a acreditar que esta não é nem a que ele vê nem a que ele sente. Tal homem poderia muito bem estar descontente com seus sentidos; mas seus sentidos não estariam nem contentes nem descontentes com os objetos. Se fosse tentado a acusar um deles de falsidade, creio que seria do tato que se queixaria. Cem circunstâncias o inclinariam a pensar que a feiura dos objetos muda mais pela ação de suas mãos sobre eles do que pela dos objetos sobre seus olhos. Mas, em consequência desses prejulgamentos, a diferença entre a dureza e a moleza, que observaria nos corpos, seria muito embaraçosa para ele. Mas do fato de nossos sentidos não estarem em contradição quanto às formas, decorre que elas nos são melhor conhecidas? Quem nos disse que não temos a haver-nos com falsas testemunhas? No entanto, nós julgamos. Infelizmente! Senhora, quando alguém pôs os conhecimentos humanos na balança de Montaigne, não está longe de adotar sua divisa. Pois, o que sabemos nós? O que é matéria? Coisa nenhuma; o que são o espírito e o pensamento? Menos ainda; o que é o movimento, o espaço e a duração? Absolutamente nada; as verdades geométricas? Interrogai matemáticos de boa fé, e eles hão de vos confessar que suas proposições são todas idênticas, e que tantos volumes sobre o círculo, por exemplo, se reduzem a nos repetir de cem mil maneiras diferentes que é uma figura onde todas as linhas tiradas do centro à circunferência são iguais. Nós não sabemos portanto quase nada; entretanto, quantos escritos cujos autores pretenderam todos saber algo! Não chego a adivinhar por que o mundo não se enfastia de ler e de nada aprender, a menos que seja pela mesma razão pela qual há duas horas tenho a honra de vos entreter, sem me enfastiar e sem nada vos dizer. Sou com profundo respeito, Senhora, Vosso mui humilde e mui obediente servidor. ADIÇÃO À CARTA PRECEDENTE Vou atirar sem ordem, sobre o papel, fenômenos que não me eram conhecidos, e que servirão de provas ou de refutação a alguns parágrafos de minha Carta Sobre os Cegos. Há trinta e três ou trinta e quatro anos que a escrevi; reli-a sem parcialidade, e não estou muito descontente. Embora a primeira parte me parecesse mais interessante que a segunda, e embora eu sentisse que aquela podia ser um pouco mais extensa e esta muito mais curta, deixaria uma e outra tais como as fiz, de medo de que a página do moço não se tornasse melhor pelo retoque do velho. O que há de suportável nas ideias e na expressão, creio que eu o buscaria inutilmente hoje em dia, e temo ser igualmente incapaz de corrigir o que há de repreensível. Um pintor célebre de nossos dias emprega os derradeiros anos de sua vida em estragar as obras-primas que produziu no vigor da idade. Não sei se os defeitos que repara são reais; mas o talento que os retificaria, ou jamais ele o teve se levou as imitações da natureza aos derradeiros limites da arte, ou, se o possuiu, ele o perdeu, porque tudo o que é do homem perece com o homem. Vem um tempo em que o gosto dá conselhos cuja justeza se reconhece, mas que não se tem mais a força de seguir. É a pusilanimidade que nasce da consciência da fraqueza, ou a preguiça, que é uma das consequências da fraqueza e da pusilanimidade, que me desgosta de um trabalho que iria prejudicar mais do que servir à melhoria de minha obra. Solve senescentem mature sanus equum, ne Peccet ad extremum ridentus, et ili ducat. (Horácio, Epistolário, liv. I, Epist. I, v. 8, 94) Fenômenos I. Um artista que domina a fundo a teoria de sua arte, e que não perde para nenhum outro na prática, assegurou-me que era pelo tato e não pela vista que julgava da redondeza dos pinhões; que os fazia rolar lentamente entre o polegar e o índice, e que era pela impressão sucessiva que discernia ligeiras desigualdades que escapariam a seu olho. II. Falaram-me de um cego que conhecia pelo tato qual era a cor dos tecidos. III. Eu poderia citar um que matiza ramalhetes com essa delicadeza de que J. J. Rousseau se gabava quando confiava a seus amigos, seriamente ou por gracejo, o intento de abrir uma escola onde administraria lições aos floristas de Paris. IV. A cidade de Amiens viu um aparelhador cego dirigir uma oficina numerosa com tanta inteligência como se estivesse no uso de seus olhos. V. O uso dos olhos tirava a uma clarividente a segurança da mão; para rapar a cabeça, afastava o espelho e se postava diante de uma parede nua. O cego que não percebe o perigo torna-se tanto mais intrépido, e não duvido de modo algum que caminhasse com um passo mais firme sobre tábuas estreitas e elásticas que formassem uma ponte por cima de um precipício. Há poucas pessoas às quais o aspecto das grandes profundidades não obscureça a vista. VI. Quem não conheceu ou ouviu falar do famoso Daviel? Assisti várias vezes às suas operações. Eliminou a catarata de um ferreiro que contraíra a moléstia no fogo contínuo de seu forno; e durante os vinte e cinco anos em que cessara de enxergar, adquirira tal hábito de se referir ao tato, que foi preciso maltratá-lo a fim de obrigá-lo a servir-se do sentido que lhe fora restituído; Daviel dizia-lhe ao batê-lo: Queres olhar, carrasco!... Ele andava, agia; tudo o que fazemos com os nossos olhos abertos, ele fazia com os olhos fechados. Poder-se ia concluir daí que o olho não é tão útil às nossas necessidades, nem tão essencial à nossa felicidade, quanto estaríamos tentados a crer. Qual é a coisa do mundo à qual uma longa privação que não é acompanhada de nenhuma dor não nos tornaria a perda indiferente, se o espetáculo da natureza não oferecesse mais encanto ao cego de Daviel? A vista de uma mulher que nos fosse cara? Não creio, qualquer que seja a consequência do fato que vou contar. A gente imagina que se passasse muito tempo sem ver, depois a gente não se cansaria de olhar; isso não é verdade. Que diferença entre a cegueira momentânea e a cegueira habitual! VII. A beneficência de Daviel trazia, de todas as províncias do reino para seu laboratório, enfermos indigentes que vinham implorar-lhe auxílio, e sua reputação atraía uma assembléia curiosa, instruída e numerosa; creio que fazíamos parte dela no mesmo dia, o Sr. Marmontel e eu. O paciente estava sentado; eis a catarata retirada; Daviel pousa a mão sobre os olhos que acabava de reabrir para a luz. Uma mulher idosa, em pé ao lado dele, mostrava o mais vivo interesse pelo êxito da operação; tremia com todos os membros a cada movimento do operador. Este faz-lhe sinal para se aproximar, e a coloca de joelhos diante do operador; afasta as mãos, o doente abre os olhos, vê, exclama: Ah!, é minha mãe!... Nunca ouvi um grito tão patético; parece-me que ainda o ouço agora. A velha desmaia, as lágrimas correm dos olhos da assistência, e as esmolas caem de suas bolsas. VIII. De todas as pessoas que foram privadas da vista quase ao nascer, a mais surpreendente que jamais existiu e que existirá é a Srta. Mélanie de Salignac, parenta do Sr. de La Farque, tenente-general dos exércitos do rei, ancião que acaba de morrer com a idade de noventa e um anos, coberto de ferimentos e cumulado de honras; ela é filha da Sra. de Blacy, que ainda vive e que não passa um dia sem lamentar uma criança que constituía a ventura de sua existência e a admiração de todos os seus conhecidos. A Sra. de Blacy é uma mulher distinta, pela eminência de suas qualidades morais, e a quem se pode interrogar sobre a verdade do meu relato. Foi de sua boca que recolhi, sobre a vida da Srta. de Salignac, as particularidades que puderam escapar-me durante um comércio de intimidade que começou com ela e com sua família em 1760, e que durou até 1763, ano de sua morte. Possuía uma razão muito sólida, uma doçura encantadora, uma finura não muito comum nas ideias, e ingenuidade. Uma de suas tias convidou sua mãe a vir ajudar-lhe a agradar a dezenove ostrogodos que tinha para o almoço, e sua sobrinha disse: Não compreendo nem um pouco minha querida tia; por que agradar a dezenove ostrogodos? Por mim, só quero agradar àqueles que eu amo. O som da voz exercia sobre ela a mesma sedução ou a mesma repugnância que a fisionomia sobre aquele que vê. Um de seus parentes, recebedor geral das finanças, teve com a família um mau procedimento que ela não esperava, e ela observou com surpresa: Quem iria crê-lo em uma voz tão doce? Quando ouvia cantar, distinguia vozes morenas e vozes louras. Quando lhe falavam, julgava da estatura pela direção do som que a atingia do alto para baixo, se a pessoa fosse alta, ou de baixo para cima, se a pessoa fosse baixa. Ela não se preocupava em enxergar; e um dia em que lhe perguntei a razão: “É, respondeu-me, que eu teria apenas meus olhos, ao passo que assim desfruto dos olhos de todos; é que, por esta privação, torno-me objeto contínuo de interesse e de comiseração; a todo momento me fazem favores, e a todo momento sou grata; se eu enxergasse, infelizmente!, logo ninguém mais se ocuparia de mim.” Os erros da vista diminuíram para ela o valor desta. “Estou, dizia, à entrada de uma longa alameda; em sua extremidade há um objeto: um de vós o vê em movimento; o outro o vê em repouso; um diz tratar-se de um animal, outro diz tratar-se de um homem, e verifica-se, quando se chega perto, que é um tronco. Todos ignoram se a torre que percebem ao longe é redonda ou quadrada. Eu desafio os turbilhões de pó, enquanto os que me cercam fecham os olhos e ficam infelizes, às vezes durante um dia inteiro, por não os terem fechado a tempo. Não é preciso mais do que um átomo imperceptível para atormentá-los cruelmente...” À aproximação da noite, dizia que nosso reino ia findar, e que o dela ia começar. Concebe-se que, vivendo nas trevas com o hábito de agir e pensar durante uma noite eterna, a insônia, que nos é tão irritante, não lhe fosse sequer importuna. Não me perdoava por haver escrito que os cegos, privados dos sintomas do sofrimento, deviam ser cruéis. “E vós credes, dizia-me, que ouvis o lamento como eu? — Há infelizes que sabem sofrer sem lamentar-se. — Creio, acrescentava, que eu logo os perceberia, e que eu os lamentaria ainda mais.” Era apaixonada pela leitura e louca por música. “Creio, dizia, que nunca me cansaria de ouvir cantar ou tocar superiormente um instrumento, e se esta ventura constituísse, no céu, a única a ser desfrutada, eu não ficaria zangada por me encontrar lá. Pensais certo quando assegurais a respeito da música que é a mais violenta das belas-artes, sem excetuar nem a poesia, nem a eloquência; que Racine mesmo não se exprimia com a delicadeza de uma harpa; que sua melodia era pesada e monótona em comparação com a de um instrumento, e que amiúde desejastes infundir a vosso estilo a força e a ligeireza dos tons de Bach. Quanto a mim, é a mais bela das línguas que conheço. Nas línguas faladas, quanto melhor as pronunciarmos, mais articulamos suas sílabas, ao passo que na linguagem musical, os sons mais distantes, do grave ao agudo e do agudo ao grave, se urdem e se seguem imperceptivelmente; são por assim dizer uma única e longa sílaba, que a cada instante varia de inflexão e de expressão. Enquanto a melodia traz esta sílaba a meu ouvido, a harmonia executa sem confusão, em uma multidão de instrumentos diversos, outras duas, três, quatro ou cinco, que concorrem todas para fortificar a expressão da primeira, e as partes cantantes são outros tantos intérpretes que eu dispensaria realmente, quando o sinfonista é homem de gênio e sabe dar caráter a seu canto. “É sobretudo no silêncio da noite que a música é expressiva e deliciosa. “Eu me persuado de que, distraídos por seus olhos, os que enxergam não podem nem ouvi-la, nem entendê-la, como eu a ouço e a entendo. Por que me parece pobre e fraco o elogio que me fizeram dela? Por que jamais pude falar dela como a sinto? Por que me detinha eu no meio de meu discurso, procurando palavras que pintassem minha sensação sem encontrá-las? Acaso não foram ainda inventadas? Eu não poderia comparar o feito da música senão à embriaguez que experimento quando, após longa ausência, me precipito entre os braços de minha mãe, quando a voz me falta, quando os membros me tremem, quando as lágrimas correm, quando os joelhos vacilam; sinto como se fosse morrer de prazer.” Tinha o mais delicado sentimento do pudor; e quando lhe perguntei a razão: “E, dizia-me, o efeito dos discursos de minha mãe, ela me repetiu tantas vezes que a vista de certas partes do corpo convidava ao vício: e eu vos confessaria, se ousasse, que faz só pouco tempo que eu o compreendi, e que foi talvez preciso que eu cessasse de ser inocente”. Morreu de um tumor nas partes naturais interiores, que ela nunca teve a coragem de declarar. Era, em suas vestimentas, em sua roupa branca, em sua pessoa, de um asseio tanto mais requintado quanto, não enxergando nada, nunca estava bastante segura de ter feito o que era mister para poupar aos que a viam o desgosto do vício oposto. Se lhe vertiam para beber, ela conhecia, pelo ruído do líquido que caía, quando seu copo estava bastante cheio. Tomava os alimentos com uma circunspecção e uma perícia surpreendentes. Fazia às vezes o gracejo de postar-se diante de um espelho para enfeitar-se e de imitar todos os trejeitos de uma coquete que toma as armas. Esta pequena macaquice era de uma verdade capaz de fazer estourar de rir. Haviam-se esforçado, desde sua mais tenra juventude, a aperfeiçoar os sentidos que lhe restavam, e é incrível até onde foram bem-sucedidos. O tato lhe ensinara, sobre as formas dos corpos, singularidades amiúde ignoradas dos que possuíam os melhores olhos. Tinha o ouvido e o olfato refinados; julgava, pela impressão do ar, do estado da atmosfera, se o tempo era nebuloso ou sereno, se caminhava em uma praça ou em uma rua, em uma rua ou em um beco, em um lugar aberto ou em um lugar fechado, em um amplo apartamento ou em um aposento estreito. Media o espaço circunscrito pelo rumor de seus pés ou pela repercussão de sua voz. Quando percorria uma casa, a sua topografia permanecia-lhe na cabeça, a ponto de prevenir os outros sobre os pequenos perigos a que se expunham: Tomai cuidado, dizia, aqui a porta é muito baixa, ali encontrareis um degrau. Notava na voz uma variedade que nos é desconhecida, e quando ouvia uma pessoa falar uma vez, era para sempre. Era pouco sensível aos encantos da mocidade e ficava pouco chocada com as rugas da velhice. Dizia que nada lhe era tão temível como as qualidades do coração e do espírito. Era ainda uma das vantagens da privação da vista, sobretudo para as mulheres. Nunca, dizia, um belo homem vai me virar a cabeça. Era confiante! Era tão fácil, e teria sido tão vergonhoso enganá-la! Era uma perfídia inescusável induzi-la a crer que estava só em um apartamento. Não tinha nenhuma sorte de terror pânico; raramente sentia tédio; a solidão ensinara-lhe a bastar-se a si mesma. Observava que nas viaturas públicas, em viagem, ao cair do dia, todo mundo tornava-se silencioso. Quanto a mim, dizia, não tenho necessidade de ver aqueles com os quais gosto de conversar. De todas as qualidades, o julgamento sadio, a doçura e a jovialidade eram as que mais prezava. Falava pouco e escutava muito: Eu me pareço aos pássaros, dizia, aprendo a cantar nas trevas. Comparando o que ouvira de um dia a outro, ficava revoltada com a contradição de nossos julgamentos: parecia-lhe quase indiferente ser louvada ou censurada por seres tão inconsequentes. Haviam-lhe ensinado a ler com caracteres talhados. Tinha a voz agradável, cantava com gosto; passaria de bom grado a vida nos concertos ou na Ópera; não havia quase música barulhenta que a enfastiasse. Dançava maravilhosamente; tocava, além do mais, muito bem a viola, e tirara desse talento um meio de fazer-se procurada por jovens de sua idade e aprender as danças e as contradanças da moda. Era a mais amada de seus irmãos e irmãs. “E eis, dizia, o que ainda devo às minhas enfermidades: ligam-se a mim pelos cuidados que me dispensaram e pelos esforços que fiz para reconhecê-los e para merecê-los. Acrescentai que meus irmãos e minhas irmãs não se sentem de modo algum enciumados. Se eu tivesse olhos, seria às custas de meu espírito e de meu coração. Tenho tantas razões para ser boa!, o que seria de mim se eu perdesse o interesse que inspiro?” Na mudança da fortuna de seus pais, a perda dos mestres foi a única coisa que lastimou; mas estes lhe dedicavam tanto apego e estima, que o geômetra e o músico suplicaram-lhe com insistência para que aceitasse suas aulas gratuitamente, e ela dizia à mãe: Mamãe, o que fazer? Eles não são ricos, e precisam de todo o seu tempo. Haviam-lhe ensinado música por meio de caracteres em relevo que eram colocados sobre linhas eminentes à superfície de uma grande mesa. Lia os caracteres com a mão; executava-os em seu instrumento, e em pouquíssimo tempo de estudo aprendera a tocar com partitura a mais longa e mais complicada peça. Possuía os elementos de astronomia, de álgebra e de geometria. Sua mãe, que lhe lia o livro do Abade de La Gaille, perguntava-lhe às vezes se entendia aquilo: Correntemente, respondia-lhe ela. Pretendia que a geometria era a verdadeira ciência dos cegos porque exigia forte aplicação e porque não havia necessidade de nenhum auxílio para aperfeiçoar-se nela. O geômetra, acrescentava, passa quase a vida toda com os olhos fechados. Vi os mapas sobre os quais estudara geografia. As paralelas e os meridianos são fios de latão; os limites dos reinos e das províncias são distinguidos por bordado em linha, em seda e em lã mais ou menos forte; os rios, os cursos d’água e as montanhas, por meio de cabeças de alfinetes maiores ou menores; e as cidades mais ou menos importantes por meio de gotas de cera desiguais. Eu lhe dizia um dia: “Senhorita, figurai um cubo. — Eu o vejo. — Imaginai no centro do cubo um ponto. — Está feito. — Deste ponto, tirai linhas retas aos ângulos; pois bem, assim tereis dividido o cubo. — Em seis pirâmides iguais, adicionou por si mesma, cada uma com as mesmas faces, com as bases do cubo e a metade de sua altura. — Isso é verdade; mas onde vedes isso? — Em minha cabeça, como vós”. Confesso que nunca concebi nitidamente como ela figurava na cabeça sem colorir. Este cubo ter-se-ia formado pela memória das sensações do tato? Seu cérebro tornara-se uma espécie de mão, debaixo da qual as substâncias se realizavam? Estabelecera-se com o tempo uma espécie de correspondência entre dois sentidos diversos? Por que não existe esse comércio em mim, e nada vejo em minha cabeça sem colorir? O que é a imaginação de um cego? Este fenômeno não é tão fácil de explicar como se poderia crer. Escrevia com um alfinete com o qual picava a folha de papel estendida sobre um quadro atravessado por duas lâminas paralelas e móveis, que conservavam entre si espaço vazio, exceto o intervalo de uma linha a outra. A mesma escrita servia para a resposta, que ela lia passeando a ponta do dedo sobre as pequenas desigualdades que o alfinete ou agulha haviam praticado no verso do papel. Lia um livro que fora impresso apenas de um lado. Prault o imprimira desta maneira para o uso dela. Inseriu-se no Mercure da época uma de suas cartas. Tivera a paciência de copiar à agulha o Abrégé Historique do Presidente Hénault, e obtive da Senhora de Blacy, mãe dela, esse singular manuscrito. Eis um fato em que dificilmente se acreditará, apesar do testemunho de toda a sua família, o meu e o de vinte pessoas ainda vivas; é que, de uma peça de doze a quinze versos, se lhe dava a primeira letra e o número de letras que compunham cada palavra, ela reencontrava a peça proposta, por mais extravagante que fosse. Fiz a experiência com anfiguris de Collé. Ela obtinha às vezes uma expressão mais feliz que a do poeta. Enfiava com rapidez a linha na mais delgada agulha, esticando o fio ou a seda sobre o índex da mão esquerda, e puxando, pelo buraco da agulha colocada perpendicularmente, o fio ou a seda com uma ponta muito fina. Não havia nenhuma espécie de pequenos trabalhos que não executasse; debruns, bolsas cheias ou simetrizadas, à jour, com diferentes desenhos em diversas cores; ligas, pulseiras, colares com pequenos grãos de vidro, como caracteres tipográficos. Não duvido tampouco que não teria sido bom compositor de tipografia: quem faz o mais difícil faz o mais fácil. Jogava perfeitamente o reversivo, o mediador e a quadrilha; dispunha sozinha suas cartas, que distinguia por pequenos traços que reconhecia ao toque; e que os outros não reconheciam nem ao toque nem à vista. No reversivo, mudava de sinais nos ases, sobretudo no ás de ouros e no valete de copas. A única atenção que se lhe dava era nomear a carta ao jogá-la. Se acontecia que o valete de copas estivesse ameaçado, espalhava-se sobre o lábio dela um ligeiro sorriso que não conseguia conter, embora conhecesse a sua indiscrição. Era fatalista; pensava que os esforços que efetuamos para escapar ao nosso destino servem apenas para nos conduzir a ele. Quais eram suas opiniões religiosas? Ignora-as; era um segredo que guardava por respeito à mãe piedosa. Só me resta expor-vos as ideias que tinha sobre a escrita, o desenho e a pintura; não creio que se possa ter outras mais próximas da verdade; é assim, espero, que se julgará pela conversação que se segue, e da qual sou um dos interlocutores. Foi ela quem falou primeiro. — Se houvésseis traçado sobre minha mão, com um estilete, um nariz, uma boca, um homem, uma mulher, uma árvore, certamente eu não me enganaria; eu não desesperaria mesmo, se o traço fosse exato, de reconhecer a pessoa cuja imagem me tivésseis feito: minha mão tornar-se-ia para mim um espelho sensível; mas grande é a diferença de sensibilidade entre essa tela e o órgão da vista. Suponho portanto que o olho seja uma tela viva de uma delicadeza infinita; o ar atinge o objeto, do objeto ele é refletido para o olho, que recebe dele uma infinidade de impressões diversas conforme à natureza, à forma, à cor do objeto e talvez às qualidades do ar que me são desconhecidas e que vós também não conheceis melhor do que eu; é pela variedade dessas sensações que ele vos é pintado. Se a pele de minha mão igualasse a delicadeza de vossos olhos, eu veria por minha mão como vós vedes por vossos olhos, e imagino às vezes que existem animais que são cegos, e que nem por isso são menos clarividentes. — E o espelho? — Se todos os corpos não são outros tantos espelhos, é por algum defeito em sua contextura, que extingue a reflexão do ar. Apego-me tanto mais a esta ideia, quanto o ouro, a prata, o ferro, o cobre polido tornam-se próprios para refletir o ar, e quanto a água agitada e o espelho riscado perdem esta propriedade. É a variedade da sensação e, por conseguinte, da propriedade de refletir o ar nos materiais que empregais, que distingue a escrita do desenho, o desenho da estampa, a estampa do quadro. A escrita, o desenho, a estampa e o quadro de uma só cor são outros tantos camafeus. — Mas quando não há senão uma cor, não se deveria discernir senão esta cor. — É aparentemente o fundo da tela, a espessura da cor e a maneira de empregá-la que introduzem na reflexão do ar uma variedade correspondente à das formas. De resto, não me pergunteis mais nada, não sei mais do que isso. — E eu me daria muito trabalho inútil para vos ensinar algo mais a respeito. Eu não vos contei, sobre esta jovem cega, tudo o que poderia ter observado frequentando-a mais e interrogando-a com mais talento; mas eu vos dou minha palavra de honra que não vos contei nada que não fosse de minha experiência. Ela morreu, com vinte e dois anos de idade. Dotada de uma memória imensa e de penetração igual a sua memória, que caminho não teria percorrido nas ciências, se dias mais longos lhe houvessem sido concedidos! A mãe lia-lhe a história, e era uma função igualmente útil e agradável para uma e para outra.