Denis Diderot – Diálogo de um Filósofo com a Marechala de... Eu precisava tratar de não sei que assunto com o Marechal de...; fui a seu palácio, certa manhã; estava ausente: mandei que me anunciasse à Senhora Marechala. Trata-se de uma mulher encantadora; bela e devota como um anjo; tem a doçura pintada no rosto; além disso, um tom de voz e uma ingenuidade de discurso inteiramente condizentes com sua fisionomia. Ela estava à toilette. Aproximaram-me uma poltrona; sento-me, e conversamos. A propósito de algumas considerações de minha parte, que a edificaram e a surpreenderam (pois era de opinião que aquele que nega a Santíssima Trindade é um criminoso, que acabará enforcado), ela me diz: — Não sois o Senhor Crudeli? CRUDELI — Sim, senhora. MARECHALA — Sois vós portanto que não credes em nada? CRUDELI — Eu mesmo. MARECHALA — Entretanto, vossa moral é a de um crente. CRUDELI — Por que não, quando se é homem de bem? MARECHALA — E essa moral, vós a praticais? CRUDELI — O melhor que posso. MARECHALA — O quê! Então não roubais, não matais, não pilhais de modo algum? CRUDELI — Muito raramente. MARECHALA — O que ganhais, nesse caso, em não crer? CRUDELI — Absolutamente nada, Senhora Marechala. Acaso a gente crê porque há algo a ganhar? MARECHALA — Não sei; mas a razão de interesse não estraga nada nos negócios deste mundo nem do outro. CRUDELI — Fico um pouco aborrecido por nossa pobre espécie humana. Não valemos coisa melhor. MARECHALA — Como! Não roubais? CRUDELI — Não, por minha honra. MARECHALA — Se não sois ladrão nem assassino, convinde ao menos que não sois consequente. CRUDELI — Por que não? MARECHALA — É que me parece que se eu nada tivesse a esperar ou a temer, quando deixasse de existir, haveria muitas pequenas delícias de que não me privaria, presentemente enquanto existo. Confesso que empresto a Deus com grande usura. CRUDELI — Vós o imaginais. MARECHALA — Não é imaginação, mas um fato. CRUDELI — E poder-se-ia perguntar-vos quais as coisas que iríeis permitir-vos, se fôsseis incrédula? MARECHALA — Não, por favor; é um artigo de minha confissão. CRUDELI — Quanto a mim, só aplico em fundos vitalícios. MARECHALA — É o recurso dos miseráveis. CRUDELI — Preferiríeis que eu fosse usurário? MARECHALA — Sem dúvida: pode-se praticar com Deus tanta usura quanto se queira; não é possível arruiná-lo. Sei muito bem que isso não é delicado, mas que importa? Como a questão é alcançar o céu, ou por destreza ou pela força, cumpre levar tudo em conta e não descuidar de nenhum proveito. Infelizmente! em vão nos esforçaremos, nossa aplicação será sempre muito mesquinha em comparação ao rendimento que esperamos. E vós não esperais nada, de vossa parte? CRUDELI — Nada. MARECHALA — É triste. Convinde pois que sois ou muito malvado ou muito louco! CRUDELI — Na verdade, eu não poderia, Senhora Marechala. MARECHALA — Que motivo pode ter um incréu para ser bom, se não é louco? Eu gostaria realmente de saber. CRUDELI — E eu vo-lo direi. MARECHALA — Ficar-vos-ei muito obrigada. CRUDELI — Não pensais que se possa ter nascido tão afortunadamente, que se encontre grande prazer em praticar o bem? MARECHALA — Penso, sim. CRUDELI — Que se possa ter recebido excelente educação, que fortalece o pendor natural à beneficência? MARECHALA — Certamente. CRUDELI — E que, em idade mais avançada, a experiência nos haja convencido de que, pensando bem, mais vale, para a ventura neste mundo, ser um homem honesto do que um patife? MARECHALA — Na verdade; mas como é que se é homem honesto, quando maus princípios se unem às paixões para nos arrastar ao mal? CRUDELI — É-se inconsequente: e há algo mais comum do que ser inconsequente? MARECHALA — Infelizmente, não: a gente crê, e todos os dias comporta-se como se não cresse. CRUDELI — E sem crer, nos comportamos quase como se crêssemos. MARECHALA — Ainda bem; mas que inconveniente haveria em possuir uma razão a mais, a religião, para fazer o bem, e uma razão a menos, a incredulidade, para fazer o mal? CRUDELI — Nenhuma, se a religião fosse um motivo de fazer o bem, e a incredulidade, um motivo de fazer o mal. MARECHALA — Será que há dúvida a respeito? Será que o espírito da religião não é o de contrariar essa vilã natureza corrompida, e o da incredulidade, o de abandoná-la à sua malícia, libertando-a do receio? CRUDELI — Isto, Senhora Marechala, vai nos atirar numa longa discussão. MARECHALA — E o que tem isso? O Marechal não voltará tão cedo; e mais vale falar de coisas sensatas do que falar mal do próximo. CRUDELI — Terei de retomar as coisas de um pouco mais alto. MARECHALA — De tão alto quanto quiserdes, contanto que eu vos entenda. CRUDELI — Se não me entendêsseis, seria realmente minha culpa. MARECHALA — Isso é cortês; mas deveis saber que nunca li mais do que minhas horas, e que não me ocupei quase de outra coisa senão de praticar o Evangelho e de ter filhos. CRUDELI — São dois deveres de que vos desincumbistes bem. MARECHALA — Sim, quanto aos filhos: encontrastes seis ao meu redor, e, dentro de alguns dias, podereis ver mais um sobre meus joelhos; porém começai. CRUDELI — Senhora Marechala, haverá algum bem neste mundo que não tenha inconveniente? MARECHALA — Não há nenhum. CRUDELI — E algum mal que não tenha vantagem? MARECHALA — Nenhum. CRUDELI — O que chamais pois mal ou bem? MARECHALA — O mal há de ser o que apresenta mais inconvenientes do que vantagens; e o bem, ao contrário, o que apresenta mais vantagens do que inconvenientes. CRUDELI — A Senhora Marechala terá a bondade de lembrar-se de sua definição do bem e do mal? MARECHALA — Hei de me lembrar. Chamais isso definição? CRUDELI — Sim. MARECHALA — Trata-se portanto de filosofia? CRUDELI — Ótimo. MARECHALA — E eu faço filosofia? CRUDELI — Assim, estais persuadida de que a religião tem mais vantagens do que inconvenientes; e é por isso que a chamais um bem? MARECHALA — Sim. CRUDELI — Quanto a mim não duvido absolutamente que vosso intendente não vos roube um pouco menos na véspera da Páscoa do que logo depois das festas; e que de vez em quando a religião não impeça pequeno número de males e não produza pequeno número de bens. MARECHALA — Pouco a pouco, isso dá uma soma. CRUDELI — Mas acreditais que as terríveis devastações que ela causou nos tempos passados e que ela causará nos tempos vindouros sejam suficientemente compensadas por essas esfarrapadas vantagens? Pensai que ela criou e perpetua a mais violenta antipatia entre as nações. Não há um só muçulmano que não imaginasse executar um ato agradável a Deus e ao santo Profeta, exterminando todos os cristãos, os quais, de seu lado, não são muito mais tolerantes. Pensai que ela criou e perpetua em uma mesma região divisões que raramente se extinguiram sem efusão de sangue. Nossa história nos oferece exemplos demasiado recentes e demasiado funestos. Pensai que ela criou e que perpetua na sociedade entre os cidadãos, e na família entre os próximos, os ódios mais fortes e mais constantes. Cristo disse que viera para separar o marido da mulher, a mãe de seus filhos, o irmão da irmã, o amigo do amigo; e sua predição se cumpriu mais que fielmente. MARECHALA — São realmente abusos; mas não é a coisa. CRUDELI — É a coisa sim, se os abusos lhe são inseparáveis. MARECHALA — E como me mostrareis que os abusos da religião são inseparáveis da religião? CRUDELI — Muito facilmente: dizei-me, se um misantropo propusesse fazer a desgraça do gênero humano, que poderia ele inventar de melhor além da crença em um ser incompreensível sobre o qual os homens jamais conseguissem entender-se e ao qual atribuíssem mais importância do que à vida? Ora, é possível separar da noção de uma divindade a mais profunda incompreensibilidade e a maior importância? MARECHALA — Não. CRUDELI — Concluí, pois. MARECHALA — Concluo que é uma ideia que tem sua importância na cabeça dos loucos. CRUDELI — E acrescentai que os loucos sempre foram e sempre serão o maior número; e que os mais perigosos são os que a religião produz, e dos quais os perturbadores da sociedade sabem tirar bom proveito na ocasião oportuna. MARECHALA — Mas é necessário algo que aterrorize os homens quanto às más ações que escapam à severidade das leis; e se destruísseis a religião, pelo que iríeis substituí-la? CRUDELI — Mesmo que eu nada tivesse para colocar em seu lugar, seria sempre um terrível prejulgamento a menos; sem contar com o fato de que, em nenhum século e em nenhuma nação, as opiniões religiosas serviram de base aos costumes nacionais. Os deuses que eram adorados por esses velhos gregos e esses velhos romanos, as pessoas mais honestas da terra, eram a canalha mais dissoluta: um Júpiter, era de queimar vivo; uma Vênus, era de fechar no Hospital; um Mercúrio, era de meter em Bicêtre. MARECHALA — E pensais que seja de todo indiferente que sejamos cristãos ou pagãos; que, pagãos, não valeríamos menos; e que, cristãos, não valemos mais. CRUDELI — Por minha fé, estou convicto disso, com a diferença apenas de que seríamos um pouco mais joviais. MARECHALA — É possível. CRUDELI — Mas, Senhora Marechala, acaso existem cristãos? Eu nunca os vi. MARECHALA — Logo a mim dizeis isso, a mim? CRUDELI — Não, senhora, não a vós; mas a uma de minhas vizinhas que é honesta e piedosa como vós o sois, e que se acreditava cristã da melhor fé do mundo, como vós o acreditais. MARECHALA — E vós lhe fizestes ver que estava enganada? CRUDELI — Num instante. MARECHALA — Como o conseguistes? CRUDELI — Abri um Novo Testamento, de que ela se servira muito, pois estava bastante gasto. Li-lhe o Sermão da Montanha, e a cada versículo perguntava-lhe: “Praticais isso? e isso então? e isso ainda?” Fui mais longe. Ela é bela e, embora seja muito recatada e muito devota, não o ignora; tem a pele muito alva e, embora não atribua grande valia a essa passageira vantagem, não fica zangada que lhe façam o seu elogio; tem também o colo tão benfeito quanto é possível tê-lo e, embora seja muito modesta, acha bom que os outros o notem. MARECHALA — Desde que só ela e o marido o saibam. CRUDELI — Creio que o marido o sabe melhor do que ninguém; mas, para uma mulher que se gaba de grande cristianismo, isso não basta. Eu lhe disse: “Não está escrito no Evangelho que aquele que cobiçou a mulher do próximo cometeu adultério em seu coração”? MARECHALA — E ela vos respondeu que sim? CRUDELI - EU lhe disse: “E o adultério cometido no coração não traz a danação tão certamente quanto o adultério mais chapado?” MARECHALA — Ela vos respondeu que sim? CRUDELI — Eu lhe disse: “E se o homem é danado pelo adultério que cometeu no coração, qual há de ser a sorte da mulher que convida todos os que se lhe aproximam a cometer o mesmo crime?” Esta última pergunta a embaraçou. MARECHALA — Compreendo; é que ela não via muito exatamente esse colo e o apresentava tão bem quanto era possível fazê-lo. CRUDELI — É verdade. Ela me respondeu que era uma questão de uso; como se algo fosse mais de uso do que intitular-se cristão e não sê-lo; que não era indispensável vestir-se ridiculamente, como se houvesse alguma comparação a fazer entre um miserável ridiculozinho, a eterna danação dela e de seu próximo; que era a costureira quem a vestia, como se não valesse mais mudar de costureira, do que renunciar à religião; que era o capricho do marido, como se um esposo fosse bastante insensato para exigir da mulher o esquecimento da decência e de seus deveres, e como se uma verdadeira cristã devesse levar a obediência a um esposo extravagante, ao sacrifício da vontade de seu Deus e ao desprezo às ameaças de seu redentor! MARECHALA — Eu conhecia de antemão todas essas puerilidades; eu vo-las diria talvez como vossa vizinha: mas ela e eu estaríamos ambas de má fé. Mas que partido adotou ela após vossa admoestação? CRUDELI — Na manhã seguinte a essa conversação (era um dia de festa), eu subia à minha casa e minha devota e bela vizinha descia da casa dela para ir à missa. MARECHALA — Vestida como de costume? CRUDELI — Vestida como de costume. Sorri, ela sorriu; e nós passamos um ao lado do outro sem nos falar. Senhora Marechala, uma mulher honesta! Uma cristã! Uma devota! Após tal exemplo, e cem mil outros da mesma espécie, que influência real posso conceder à religião sobre os costumes? Quase nenhuma, e tanto melhor. MARECHALA — Como, tanto melhor? CRUDELI — Sim, senhora: se desse na veneta de vinte mil habitantes de Paris de conformarem estritamente sua conduta ao Sermão da Montanha... MARECHALA — Pois bem, haveria alguns belos colos mais cobertos. CRUDELI — E tantos loucos, que o lugar-tenente da polícia não saberia o que fazer; pois nossos asilos não bastariam. Há nos livros inspirados duas morais: uma, geral e comum a todas as nações, a todos os cultos, e que é mais ou menos obedecida; outra, própria a cada nação e a cada culto, na qual se acredita, que é pregada nos templos, que se preconiza nas casas e à qual não se obedece de modo nenhum. MARECHALA — E de onde procede essa extravagância? CRUDELI — Do fato de ser impossível sujeitar um povo a uma regra que convém apenas a alguns homens melancólicos, que a calcaram sobre os seus próprios caracteres. Acontece às religiões como às constituições monásticas, as quais todas se esmorecem com o tempo. São loucuras que não podem manter-se contra o impulso constante da natureza, que nos reconduz à sua lei. E fazei que o bem dos particulares fique tão estreitamente ligado ao bem geral, que um cidadão não possa quase prejudicar à sociedade sem prejudicar a si mesmo; assegurai à virtude sua recompensa, como assegurastes à perversidade seu castigo; que, sem nenhuma distinção de culto, em qualquer condição que o mérito se encontre, conduza aos grandes lugares do Estado; e não contareis outros malvados, exceto um pequeno número de homens, que uma natureza perversa, que não é capaz de corrigir, arrasta ao vício. Senhora Marechala, a tentação está muito perto; e o inferno muito longe: não esperai nada que valha a pena que um sábio legislador se ocupe, de um sistema de opiniões extravagantes que ilude apenas as crianças; que encoraja o crime pela comodidade das expiações; que manda o culpado rogar perdão a Deus, pela injúria feita ao homem, e que avilta a ordem dos deveres naturais e morais, subordinando-a a uma ordem de deveres quiméricos. MARECHALA — Eu não vos compreendo. CRUDELI — Eu me explico; mas parece-me que ali vem entrando a carruagem do Sr. Marechal que volta muito a propósito para me impedir de dizer uma tolice. MARECHALA — Dizei, dizei vossa tolice, eu não a ouviria; habituei-me a ouvir apenas o que me agrada. CRUDELI — Aproximei-me de seu ouvido e disse-lhe baixinho: Senhora Marechala, perguntai ao vigário de vossa paróquia qual desses dois crimes, urinar em um vaso sagrado, ou enegrecer a reputação de uma mulher honesta, é o mais atroz? Ele estremecerá de horror diante do primeiro, bradará com o sacrilégio; e a lei civil, que apenas toma conhecimento da calúnia, enquanto pune o sacrilégio com o fogo, acabará de baralhar as ideias e corromper os espíritos. MARECHALA — Conheço mais de uma mulher que teria escrúpulo de comer carne na sexta-feira e que... eu também ia dizer uma tolice. Continuai. CRUDELI — Mas, senhora, é absolutamente necessário que eu fale ao Sr. Marechal. MARECHALA — Um momento ainda, e depois iremos vê-lo juntos. Não sei bem o que vos responder, no entanto vós não me persuadis. CRUDELI — Não me propus persuadir-vos. A religião é como o casamento. O casamento, que constitui a desgraça de tantos outros, constitui vossa felicidade e a do Sr. Marechal; agistes muito bem em vos casar os dois. A religião, que fez, que faz e que fará tantos malvados, vos tornou melhor ainda; procedeis bem em guardá-la. É doce para vós imaginar ao vosso lado, acima de vossa cabeça, um ser grande e poderoso, que vos vê andar sobre a terra, e esta ideia firma vosso passo. Continuai, senhora, a desfrutar desse augusto garante de vossos pensamentos, desse espectador, desse modelo sublime de vossas ações. MARECHALA — Não tendes, ao que vejo, a mania do proselitismo. CRUDELI — De nenhum modo. MARECHALA — Eu vos estimo ainda mais por isso. CRUDELI — Permito a cada qual pensar à sua maneira, desde que me deixe pensar à minha; além disso, os que são feitos para se entregar a tais preconceitos não precisam quase que os catequizemos. MARECHALA — Credes que o homem possa dispensar a superstição? CRUDELI — Não, enquanto permanecer ignorante e medroso. MARECHALA — Pois bem! Superstição por superstição, tanto vale a nossa como outra qualquer. CRUDELI — Não penso assim. MARECHALA — Dizei-me a verdade, não vos repugna nem um pouco não ser mais nada após a vossa morte? CRUDELI — Eu gostaria mais de existir, embora não saiba por que um ser, que pôde tornar-me infeliz sem razão, não se divertiria em fazê-lo duas vezes. MARECHALA — Se, apesar deste inconveniente, a esperança de uma vida futura vos parece consoladora e doce, por que no-la arrancais? CRUDELI — Não alimento esta esperança, porque o desejo não me ocultou a sua vaidade; mas não a tiro de ninguém. Se alguém pode crer que verá, quando não tiver mais olhos; que ouvirá, quando não tiver mais ouvidos; que pensará, quando não tiver mais cabeça; que amará, quando não tiver mais coração; que sentirá, quando não tiver mais sentidos; que a gente existirá, quando não estiver mais em parte alguma; que há de ser alguma coisa, sem extensão e sem lugar, consinto nisso. MARECHALA — Mas este mundo aqui, quem o fez? CRUDELI — Eu vos pergunto. MARECHALA — Foi Deus. CRUDELI — E o que é Deus? MARECHALA — Um espírito. CRUDELI — Se um espírito cria matéria, por que a matéria não criaria um espírito? MARECHALA — E por que haveria de criá-lo? CRUDELI — É que eu a vejo criá-lo todos os dias. Acreditais que os animais tenham almas? MARECHALA — Certamente que acredito. CRUDELI — E poderíeis dizer-me o que se torna, por exemplo, a alma da serpente do Peru, enquanto ela se resseca, suspensa sobre um fogão e exposta à fumaça um ou dois anos seguidos? MARECHALA — Que ela se torne o que quiser, que tenho eu com isso? CRUDELI — É que a Senhora Marechala não sabe que essa serpente defumada, ressecada, ressuscita e renasce. MARECHALA — Não creio de modo algum. CRUDELI — No entanto, é um homem sagaz, é Bouguer quem o assevera. MARECHALA — Vosso homem sagaz mentiu. CRUDELI — E se tivesse dito a verdade? MARECHALA — Eu estaria pronta a crer que os animais são máquinas. CRUDELI — E o homem não é um animal apenas um pouco mais perfeito do que um outro... Mas, o Sr. Marechal... MARECHALA — Ainda uma pergunta, e é a última. Estais bem tranquilo em vossa incredulidade? CRUDELI — Mais não seria possível. MARECHALA — Contudo, e se estivésseis enganado? CRUDELI — E se eu estivesse enganado? MARECHALA — Tudo o que julgais falso seria verdadeiro, e estaríeis danado. Senhor Crudeli, estar danado é algo terrível; arder toda uma eternidade é muito longo. CRUDELI — La Fontaine acreditava que nos sentiríamos aí como peixe dentro d’água. MARECHALA — Sim, sim; mas vosso La Fontaine ficou bem sério no derradeiro momento; e é onde eu vos aguardo. CRUDELI — Não respondo por nada, se minha cabeça não tiver mais nada com isso; mas se eu findar por uma dessas moléstias que deixam ao homem agonizante toda sua razão, não ficarei mais perturbado no momento em que me aguardais do que no momento em que me vedes. MARECHALA — Semelhante intrepidez me confunde. CRUDELI — Encontro-a muito mais no moribundo que crê em um juiz severo que pesa até nossos pensamentos mais secretos, e em cuja balança o homem mais justo se perderia pela vaidade, se não tremesse por achar-se leviano demais: se a este moribundo fosse dado então, à sua escolha, ou ser aniquilado, ou se apresentar ao tribunal, sua intrepidez me confundiria muito mais caso se abalançasse a tomar o primeiro alvitre, a menos que fosse mais insensato do que o companheiro de São Bruno, ou mais embriagado com o próprio mérito do que Bohola. MARECHALA — Li a história do associado de São Bruno; mas nunca ouvi falar de vosso Bohola. CRUDELI — É um jesuíta do colégio de Pinsk, na Lituânia, que deixou ao morrer um cofrezinho cheio de dinheiro, com um bilhete escrito e assinado de próprio punho. MARECHALA — E este bilhete? CRUDELI — Era concebido nos seguintes termos: “Peço-vos querido confrade, depositário deste cofrezinho, que o abrais quando eu tiver feito milagres. O dinheiro que contém servirá para as custas do processo de minha beatificação. Juntei algumas lembranças autênticas para a confirmação de minhas virtudes, e que poderão servir utilmente aos que empreenderem escrever sobre minha vida”. MARECHALA — Isso é de morrer de riso. CRUDELI — Para mim, Senhora Marechala; mas para vós, vosso Deus não admite chalaças. MARECHALA — Tendes razão. CRUDELI — Senhora Marechala, é muito fácil pecar gravemente contra vossa lei. MARECHALA — Concordo. CRUDELI — A justiça que decidirá de vossa sorte é muito rigorosa. MARECHALA — É certo. CRUDELI — E se acreditais nos oráculos de vossa religião acerca do número de eleitos, ele é bem pequeno. MARECHALA — Oh! é que não sou jansenista; vejo a medalha apenas por seu reverso consolador: o sangue de Jesus Cristo cobre um grande espaço e meus olhos; e me pareceria muito singular que o diabo, que não entregou seu filho à morte, tivesse no entanto a melhor parte. CRUDELI — Condenais à danação Sócrates, Fócion, Aristides, Catão, Trajano e Marco Aurélio? MARECHALA — Apre!, só bestas ferozes podem pensar assim. São Paulo afirma que cada um será julgado pela lei que conheceu; e São Paulo tem razão. CRUDELI — E por qual lei será o incrédulo julgado? MARECHALA — Vosso caso é um pouco diferente. Sois um pouco como esses habitantes malditos do Corozain e de Betsaida, que fecharam os olhos à luz que os iluminava, e que taparam as orelhas para não escutar a voz da verdade que lhes falava. CRUDELI — Senhora Marechala, esses corozainitas e betsaidenses foram pessoas como nunca mais houve exceto lá, se é que foram donos do arbítrio de crer ou não crer. MARECHALA — Viram prodígios que teriam levado a pôr em leilão os sacos e a cinza, se realizado em Tiro e em Sidon. CRUDELI — É que os habitantes de Tiro e Sidon eram pessoas de espírito, enquanto que os de Corozain e Betsaida não passavam de imbecis. Mas, acaso aquele que fez os tolos irá puni-los porque foram tolos? Eu vos narrei uma história há pouco, e estou com vontade de vos narrar um conto. Um jovem mexicano... Mas o Sr. Marechal. MARECHALA — Vou mandar saber se ele pode receber. Então!, E o vosso jovem mexicano? CRUDELI — Cansado de seu trabalho passeava um dia à beira-mar. Deu com uma tábua que estava com uma ponta imersa na água e com a outra assentada na margem. Sentou-se na tábua e aí, prolongando o olhar sobre a vasta extensão que se desenrolava à sua frente, dizia-se: Não há dúvida de que minha avó está caducando com sua história de não sei quais habitantes que, não sei em que tempo, arribaram aqui de não sei onde, de um país além de nossos mares. Isso não tem senso comum: então não vejo o mar confinar com o céu? E como posso crer, contra o testemunho de meus sentidos, numa velha fábula cuja data se ignora, que cada qual arruma à sua maneira, e que não é senão um tecido de circunstâncias absurdas, sobre as quais eles se comem o coração e se arrancam a alva dos olhos? Enquanto raciocinava assim, as águas agitadas o embalavam sobre a tábua, e ele adormeceu. Enquanto dormia, o vento cresceu, as ondas levantaram a tábua em que estava deitado e eis nosso jovem arrazoador embarcado. MARECHALA — Infelizmente!, É bem essa a nossa imagem: cada um de nós se encontra sobre a tábua; o vento sopra, e a onda nos carrega. CRUDELI — Já se achava longe do continente quando despertou. Quem ficou muito surpreso por se ver em pleno mar? Nosso mexicano. Quem ficou muito mais? Ainda ele, quando, tendo perdido de vista a margem sobre a qual passeava há um instante, o mar pareceu-lhe confinar com o céu por todos os lados. Suspeitou então que poderia estar realmente enganado; e que, se o vento permanecesse no mesmo ponto, talvez fosse transportado à costa, e para o meio desses habitantes de que a avó lhe falava tão amiúde. MARECHALA — E de sua inquietação, não me dizeis palavra. CRUDELI — Não teve nenhuma. Disse a si mesmo que diferença me faz, contanto que eu arribe? Raciocinei como um tonto, seja; mas fui sincero comigo mesmo; e é tudo o que se pode exigir de mim. Se não é virtude ter espírito, não é crime não tê-lo. Entretanto o vento continuava, o homem e a tábua vagavam, e a margem desconhecida começava a surgir: ele toca nela, e ei-lo aí. MARECHALA — Nós nos reveremos aí um dia, Senhor Crudeli. CRUDELI — É o que desejo, Senhora Marechala; em qualquer lugar que seja, sentir-me-ei sempre envaidecido de vos fazer minha corte. Apenas abandonou a tábua, e pôs o pé na areia, quando percebeu um venerável ancião, em pé junto dele. Perguntou-lhe de onde era, e a quem tinha a honra de falar: “Sou o soberano do país”, respondeu-lhe o velho. No mesmo instante o jovem se prosterna. “Erguei-vos, disse-lhe o velho. Vós negastes minha existência? — É verdade. — Eu vos perdoo, porque sou aquele que enxerga no fundo dos corações, e porque li no fundo do vosso que agistes de boa fé; mas o restante de vossos pensamentos e de vossas ações não é igualmente inocente.” Então o velho, que o segurava pela orelha, lembrou-lhe todos os erros de sua vida; e, a cada artigo, o jovem mexicano se inclinava, batia no peito perdão... Agora, Senhora Marechala, colocai-vos por um momento no lugar do velho, e dizei-me o que iríeis fazer? Agarrado o jovem insensato pelos cabelos; e iríeis comprazer-vos em arrastá-lo por toda a eternidade pela margem? MARECHALA — Em verdade, não. CRUDELI — Se uma dessas seis bonitas crianças que tendes, depois de fugir da casa paterna e de cometer grandes tolices, voltasse arrependida? MARECHALA — Eu lhe correria ao encontro; apertá-la-ia em meus braços e regá-la-ia com minhas lágrimas; mas o Sr. Marechal seu pai não aceitaria a coisa tão brandamente. CRUDELI — O Sr. Marechal não é um tigre. MARECHALA — Para isso, falta muito. CRUDELI — Far-se-ia rogar talvez um pouco; mas perdoaria. MARECHALA — Certamente. CRUDELI — Sobretudo se viesse a considerar que antes de pôr no mundo essa criança, conhecia toda a sua vida, e que o castigo de suas faltas não seria de qualquer utilidade, nem para ele, nem para o culpado, nem para seus irmãos. MARECHALA — O ancião e o Sr. Marechal são dois. CRUDELI — Quereis dizer que o Sr. Marechal é melhor que o velho? MARECHALA — Deus me livre! Quero dizer que, se a minha justiça não é a do Sr. Marechal, a justiça do Sr. Marechal poderia muito bem não ser a do velho. CRUDELI — Ah, Senhora! Vós não sentis as consequências dessa resposta. Ou a definição geral convém igualmente a vós, ao Sr. Marechal, a mim, ao jovem mexicano e ao velho; ou não sei o que isso é, e ignoro como se agrada ou desagrada a este último. Estávamos neste ponto quando vieram nos avisar que o Sr. Marechal nos esperava. Dei minha mão à Sra. Marechala, que me dizia: — É de fazer girar a cabeça, não é? CRUDELI — Por que não, quando é boa? MARECHALA — Ao fim de contas, o mais simples é comportar-se como se o velho existisse. CRUDELI — Mesmo que não se acredite. MARECHALA — E mesmo que se acredite, é não contar com sua bondade. CRUDELI — Se não é o mais polido, é ao menos o mais seguro. MARECHALA — A propósito, se tivésseis de prestar conta de vossos princípios a nossos magistrados, vós os confessaríeis? CRUDELI — Faria o máximo que posso a fim de poupar-lhes uma ação atroz. MARECHALA — Ah! Covarde! E se estivésseis a ponto de morrer, vós vos submeteríeis às cerimônias da Igreja? CRUDELI — Não lhes faltaria. MARECHALA — Safa! Infame hipócrita.