Denis Diderot – O Sobrinho de Rameau SÁTIRA SEGUNDA Vertumnis quotquot sunt natus iniquis. (Horat., Lib. II, Satyr. VII) Faça bom ou mau tempo, tenho o hábito de ir passear no Palais-Royal, às cinco horas da tarde. Sempre solitário, sou visto sonhando no banco de Argenson. Entretenho-me comigo mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia. Abandono meu espírito à mais completa libertinagem. Deixo-o senhor de seguir a primeira ideia, sábia ou louca, que se apresenta, como, nas alamedas de Foy, nossos jovens dissolutos seguem uma cortesã de ar estouvado, fisionomia risonha, olho vivo, nariz arrebitado, deixando esta por outra, assediando todas e não se prendendo a nenhuma. Meus pensamentos são minhas rameiras. Se está muito frio ou se o tempo está chuvoso, refugio-me no café Regence, onde me divirto assistindo a partidas de xadrez. De todos os lugares do mundo é em Paris, e em Paris é no café Regence, onde melhor se joga esse jogo. Em casa de Rey pelejam Legal, o profundo; Philidor, o sutil; Mayot, o sólido. Ali se observam os golpes mais surpreendentes e se ouvem as piores expressões, pois se se pode ser um homem de espírito e um grande jogador de xadrez, como Legal, pode-se também ser um grande jogador e um tolo, como Foubert e Mayot. Certa noite, estava lá, olhando muito, falando pouco e ouvindo o menos possível, quando fui abordado por uma dessas esquisitas personagens que Deus não permitiu faltassem em nosso país. Misto de altivez e de baixeza, de bom senso e desatino. Certamente, as noções de honesto e desonesto devem estar estranhamente embaralhadas em sua cabeça, pois mostra sem ostentação as boas qualidades que a natureza lhe deu, e as más, sem pudor. De resto, é dotado de uma forte compleição, de um singular calor de imaginação e de um vigor pulmonar incomum. Se um dia o encontrardes, que sua originalidade não vos detenha: tapareis vossos ouvidos com vossos dedos, ou fugireis. Nada é mais diferente dele do que ele próprio. Algumas vezes está magro e macilento, um doente mais morto do que vivo; poder-se-ia contar-lhe os dentes através das bochechas. Dir-se-ia que passou muitos dias sem comer ou que acabou de sair da prisão. No mês seguinte, porém, está gordo e obeso como se tivesse deixado a mesa de algum milionário, ou como se tivesse permanecido encerrado num convento de bernardinos. Hoje, com a roupa branca suja, as calças rasgadas, coberto de farrapos, quase descalço, anda cabisbaixo, esconde-se. Sentimos tentação de chamá-lo para lhe dar uma esmola. Amanhã, empoado, calçado, frisado, bem vestido, caminha de cabeça erguida, exibe-se, e quase o tomareis por um homem honesto. Vive o dia-a-dia, triste ou feliz, segundo as circunstâncias. Sua primeira preocupação, pela manhã ao levantar-se, é a de saber onde almoçará; depois do almoço, onde jantará. Com a noite, vem também sua inquietação. Ou caminha até um pequeno sótão onde habita, a menos que a locatária, cansada de esperar pelo aluguel, já lhe tenha pedido a devolução da chave; ou baixa numa taverna do bairro, onde espera o dia entre um pedaço de pão e uma caneca de cerveja. Quando está sem dinheiro algum, o que lhe acontece algumas vezes, recorre ou a um dos cocheiros de seus amigos, ou ao cocheiro de algum grande senhor, que lhe dá um leito sobre a palha, ao lado de seus cavalos. De manhã, traz nos cabelos fiapos do colchão. Se a estação é amena, caminha a largos passos pelo Cours-de-la-Reine ou pelos Champs-Elysées. Com o dia, reaparece na cidade, vestido da véspera para o dia seguinte, e algumas vezes para o resto da semana. Não gosto desses tipos originais. Outros se tornam seus conhecidos, familiares, até mesmo seus amigos. Nas raras vezes em que os encontro, sou retido pelo contraste de seu caráter com o dos outros, rompendo a uniformidade fastidiosa criada por nossa educação, por nossas convenções sociais, por nossas conveniências habituais. Se um deles aparece num grupo, é um grão de lêvedo que fermenta, restituindo a cada qual uma porção de sua individualidade natural. Sacode, agita, faz aprovar ou censurar, faz surgir a verdade, revela as pessoas de bem, desmascara os malandros. É nessa ocasião que o homem de bom senso escuta e decifra seu próprio mundo. Há muito eu conhecia esse que me abordou. Frequentava uma casa cujas portas se abriram ante seu talento. Nela morava uma filha única. Ele jurava ao pai e à mãe que se casaria com a moça. Os pais davam de ombros, riam-lhe na cara, diziam-lhe que era louco. E eu vi o momento em que a coisa aconteceu. Pedia-me emprestado algumas moedas que eu lhe dava. Havia conseguido introduzir-se, não sei como, em algumas casas honestas, onde tinha o seu talher, sob a condição de não falar sem antes ter obtido permissão para tanto. Calava-se e ruminava sua raiva. Era ótimo vê-lo tão constrangido. Se lhe vinha a vontade de romper o acordo, e abria a boca, todos os convivas gritavam: “Ó Rameau!” Então, o furor faiscava em seus olhos e voltava a comer com mais raiva. Estais curiosos para saber o nome do homem e o sabeis. É o sobrinho desse célebre músico que nos livrou do canto gregoriano de Lulli, que salmodiávamos há mais de cem anos. Desse músico que escreveu tantas visões ininteligíveis e verdades apocalípticas sobre a teoria da música, incompreensíveis para ele e para os outros. Dele temos certo número de óperas, onde há harmonia, fragmentos de cantos, ideias desconexas, estrondos, voos, triunfos, lances, glórias, murmúrios, vitórias de perder o fôlego, árias de dança que durarão eternamente. E após haver enterrado o Florentino, será enterrado pelos compositores italianos, coisa, aliás, que pressentia, que o tornava sombrio, triste, raivoso, pois ninguém há de ficar num mau humor maior (nem mesmo uma bela mulher que desperta com uma espinha no nariz) do que um autor ameaçado de sobreviver à sua própria reputação. Marivaux e Crébillon, filho, que o digam! Aborda-me. “Ah! Ah! Ei-lo, senhor filósofo! Que fazeis aqui, no meio de tantos desocupados? Perdeis também vosso tempo a empurrar pauzinho?” (É assim que, pejorativamente, se chama jogar xadrez ou damas.) EU — Não, mas, quando não tenho algo melhor para fazer, divirto-me vendo por um instante aqueles que empurram bem. ELE — Neste caso, vos divertis raramente. Com exceção de Legal e Philidor, o resto não entende disso. EU — E o Senhor de Bissy, então? ELE — Esse aí, como jogador de xadrez, se parece com a Srta. Clairon como atriz. Desses jogos ambos sabem tudo aquilo que se pode aprender. EU — Sois difícil. Vejo que só tendes consideração pelos homens sublimes. ELE — Sim, no xadrez, nas damas, na poesia, na eloquência, na música e em outras tolices como estas. Para que serve a mediocridade nesses gêneros? EU — Para pouca coisa, concordo. No entanto, é preciso que haja um grande número de homens dedicados a eles, para fazer surgir um gênio. Há um na multidão. Mas deixemos esse assunto. Há uma eternidade que não vos via. Não penso muito em vós quando não vos vejo. Mas sempre me agrada rever-vos. Que tendes feito? ELE — O que vós, eu e todos fazem: o bem, o mal e nada. Depois tive fome e comi quando a ocasião se apresentou. Após ter comido, tive sede e bebi algumas vezes. Entrementes minha barba crescia, e quando ficou grande mandei raspá-la. EU — Fizestes mal. É a única coisa que vos falta para serdes um sábio. ELE — Sim, é certo. Tenho a testa grande e enrugada, o olho ardente, o nariz saliente, as bochechas largas, a sobrancelha negra e espessa, a boca bem rasgada, o lábio bem delineado e a face quadrada. Se este vasto queixo estivesse coberto por uma longa barba, sabeis que tudo isto ficaria muito bem no bronze ou no mármore? EU — Ao lado de um César, um Marco Aurélio, um Sócrates. ELE — Não. Ficaria entre Diógenes e Frinéia. Sou descarado como aquele, e frequento voluntariamente a casa desta. EU — Passais sempre bem? ELE — De um modo geral, sim. Hoje, porém, não me sinto maravilhosamente. Eu — Como? Estais com um ventre de Silênio e uma cara... ELE — Uma cara que poderia ser tomada pela de seu antagonista. Creio que o mau humor que resseca meu querido tio aparentemente engorda seu caro sobrinho. EU — A propósito, vedes vosso tio algumas vezes? ELE — Sim, quando passa pela rua. EU — Não vos ajuda em nada? ELE — Se ajuda alguém é sem desconfiar. É um filósofo à sua moda. Só pensa em si próprio. O resto do mundo não lhe interessa. Sua filha e sua mulher poderão morrer quando quiserem; desde que os sinos da paróquia continuem a tanger a décima e a décima sétima badaladas, tudo estará bem, e é uma sorte para ele. O que prezo particularmente nas pessoas de gênio é que são boas só para uma coisa; fora esta, mais nada. Não sabem o que é ser cidadão, pai, mãe, irmão, parente, amigo. Cá entre nós: é necessário assemelhar-se a ele sob todos os aspectos, mas não querer ser farinha do mesmo saco. É preciso homens, mas não homens de gênio. Palavra de honra, não é preciso mesmo. São os reformadores da face do globo, e, como nas menores coisas a estupidez é tão habitual quanto potente, sua reforma não pode ocorrer sem confusão. Por isso, parte do que imaginaram chega a ser instituída, mas o resto fica como dantes. Resultado: dois evangelhos, um traje de arlequim. A sabedoria do monge de Rabelais é a verdadeira sabedoria, para seu repouso e o dos outros: cumprir mal e mal o dever, sempre falar bem do senhor prior e deixar o mundo ao sabor de seus caprichos. O mundo vai bem, pois a multidão está contente com ele. Se conhecesse história, eu vos mostraria que o mal sempre veio cá embaixo pelas artes de algum homem de gênio. Mas não conheço história porque nada sei. O diabo que me carregue se alguma vez aprendi alguma coisa, e se estou pior por não ter aprendido. Um dia, estava à mesa de um ministro do rei de França, cujo espírito vale por quatro. Pois bem, o ministro nos demonstrou, como um e um são dois, que nada era mais útil aos povos do que a mentira, nada mais nocivo do que a verdade. Não me recordo muito de suas provas, mas delas decorria com evidência que as pessoas de gênio são detestáveis. E se uma criança, ao nascer, trouxesse na fronte a marca desse perigoso presente da natureza, dever-se-ia sufocá-la ou lançá-la num antro de vagabundos. EU — No entanto, todas essas personagens, tão inimigas do gênio, estão certas de possuí-lo. ELE — Creio que no íntimo pensam dessa maneira, mas não creio que ousassem confessá-lo. EU — É por modéstia. Desde então concebeste um ódio terrível contra o gênio? ELE — Para nunca voltar atrás. EU — Mas lembro-me de uma ocasião em que o desespero vos dominava por serdes apenas um homem comum. Se o pró e o contra vos afligirem igualmente, nunca sereis feliz. É preciso tomar um partido e permanecer fiel a ele. Ninguém voltará atrás ao concordar inteiramente convosco, aceitando que os homens de gênio frequentemente são singulares, ou, como diz o provérbio, que não há grandes inteligências sem um grão de loucura. Desprezar-se-ão os séculos que não os produzirem. Serão a honra dos povos entre os quais tiverem existido. Cedo ou tarde, estátuas lhes serão erguidas. E serão encarados como benfeitores do gênero humano. Sem desagradar ao sublime ministro que me haveis citado, creio que a mentira pode servir um momento, mas a longo prazo é necessariamente nociva, e que, ao contrário, a verdade serve necessariamente a longo prazo, embora possa ocorrer que prejudique no momento. Por isso, eu me sentiria tentado a concluir que o homem de gênio, capaz de desacreditar um erro geral ou de empenhar-se numa grande verdade, é sempre um ser digno de nossa veneração. Pode acontecer que se torne vítima do preconceito e das leis, porém há dois tipos de leis: umas, absolutamente equânimes e gerais, outras, estranhas, cuja sanção provém apenas da necessidade ou da cegueira das circunstâncias. Se estas cobrem de ignomínia o culpado que as infringe, a ignomínia é passageira e o tempo se encarrega de revertê-las definitivamente sobre os juízes e as nações. Hoje, quem é o desonrado: Sócrates ou o magistrado que o obrigou a beber cicuta? ELE — Bela coisa! Impediu-o de ser condenado? Impediu-o de ser morto? Por causa dela deixou de ser um cidadão turbulento? O desprezo por uma lei má deixou de encorajar os loucos no desprezo pelas boas? Deixou de ser um homem audacioso e esquisito? Há um momento vossa posição não estava longe de uma confissão pouco favorável aos homens de gênio. EU — Escutai, meu caro. Uma sociedade não deveria ter leis más, e se as tivesse sempre boas nunca seria compelida a perseguir um homem de gênio. Não vos disse que o gênio estivesse indissoluvelmente atado à maldade, nem esta a ele. Um tolo, frequentemente, será mais maldoso do que um homem de espírito. Mesmo que o contato com um homem de gênio fosse duro, difícil e espinhoso, e mesmo que esse homem fosse maldoso, que concluiríeis? ELE — Que valeria a pena afogá-la. EU — Devagar, meu caro. Cá entre nós, não tomarei vosso tio como exemplo. É um homem duro, brutal, sem sentimento, avaro, mau pai, mau esposo, mau tio. E, aliás, não está bem decidido que seja um homem de gênio, que tenha levado a arte mais longe, e que se discuta seu trabalho daqui a dez anos. Mas, Racine? Este certamente possuía gênio e não passava por um homem muito bom. Mas, Voltaire? ELE — Não me pressioneis, pois sou consequente. EU — Que preferis? Que fosse um bom homem, identificado com seu negócio como Briasson, ou com sua vara, como Barbier, fazendo regularmente, todos os anos, uma criança legítima em sua mulher; bom marido, bom pai, bom tio, bom vizinho, comerciante honesto, e nada mais. Ou que tivesse sido velhaco, traidor, ambicioso, invejoso, perverso, porém autor de Andrômaca, de Britannicus, de Ifigênia, de Fedra, de Atália? ELE — Palavra de honra, creio que, entre esses dois homens, talvez para ele tivesse sido melhor ser o primeiro. EU — Isto é infinitamente mais verdadeiro do que percebeis. ELE — Ah! Eis como sois, vós e os outros de vossa espécie! Se dizemos algo bom, o fazemos como os loucos ou como os inspirados: por acaso. Só vós próprios vos entendeis. Sim, senhor filósofo, eu me entendo, e me entendo assim como vós vos entendeis. EU — Pois bem, vejamos. Por que para ele? ELE — Porque todas as belas coisas que fez não lhe renderam sequer vinte mil francos, mas, se tivesse sido um bom comerciante de sedas na rua Saint-Dénis ou na rua Saint-Honoré, um bom vendeiro por atacado, um boticário bem afreguezado, teria juntado uma fortuna imensa e, assim, não sobraria um único tipo de prazer que não houvesse gozado. De tempos em tempos, teria dado uns trocados a um pobre-diabo, bufão como eu, que o teria feito rir, que lhe teria arranjado uma rapariga para desentediá-lo da eterna coabitação com sua mulher. Teríamos feito refeições excelentes em sua casa, jogado jogo alto, bebido deliciosos licores, cafés aromáticos, ido a convescotes. E vede que eu me sairia muito bem. Estais rindo. Mas deixai-me dizer: teria sido melhor para sua vizinhança. EU — Sem objeção. Desde que não tivesse empregado de modo desonesto a opulência adquirida num comércio legítimo; que tivesse afastado de sua casa todos os jogadores, os parasitas, os complacentes insípidos, todos esses desocupados, todos esses perversos inúteis, que tivesse feito seus balconistas moerem de pancada o homem oficioso que, pela variedade, alivia os maridos do fastio da coabitação costumeira com suas mulheres. ELE — Moer de pancada, senhor, moer de pancada! Não se mói ninguém de pancada numa cidade policiada. Trata-se de um ofício honesto. Muita gente, mesmo titulada, se mete nisso. E, diabos, em que desejais que se empregue o dinheiro, se não for para ter boa mesa, boa companhia, bons vinhos, belas mulheres, prazeres de todos os matizes, divertimentos de todas as espécies? Preferiria ser mendigo a possuir uma fortuna sem nenhum desses prazeres. Mas voltemos a Racine. Este foi bom só para os desconhecidos e para o tempo em que já não vivia mais. EU — De acordo. Mas pesai o mal e o bem. Daqui a mil anos fará derramar lágrimas; será a admiração dos homens de todos os recantos da terra. Inspirará humanidade, comiseração, ternura. Perguntar-se-á quem foi, qual o seu país, e invejar-se-á a França. Causou sofrimento a algumas pessoas que já não vivem e às quais damos pouco ou nenhum valor. Nada temos a temer de seus vícios e de seus defeitos. Teria sido melhor, sem dúvida, se tivesse recebido da natureza as virtudes de um homem de bem com os talentos de um grande homem. É uma árvore que secou algumas outras, plantadas ao seu redor, que sufocou as plantas que cresciam aos seus pés; mas elevou sua copa até as nuvens e seus ramos se estenderam ao longe, oferecendo sua sombra aos que vinham, vêm e virão repousar à volta de seu tronco majestoso; produziu frutos de raro sabor e que se renovam incessantemente. Seria desejável que Voltaire tivesse também a doçura de Duclos, a candura do Abade Trublet, a retidão do Abade D’Olivet, mas, como isto não é possível, olhemos a coisa por seu lado verdadeiramente interessante. Esqueçamos por um momento o ponto que ocupamos no espaço e na duração, e estendamos nossa vista aos séculos por vir, às regiões mais afastadas e aos povos por nascer. Sonhemos com o bem de nossa espécie. Se não somos bastante generosos, pelo menos perdoemos a natureza por ter sido mais sábia do que nós. Se lançardes água fria sobre a cabeça de Greuze, extinguireis, talvez, seu talento com sua vaidade. Se tornardes Voltaire menos sensível à crítica, não saberá mais descer até à alma de Mérope, e não vos tocará mais. ELE — Mas se a natureza é tão poderosa quanto sábia, por que não os fez tão bons quanto grandes? EU — Mas não vedes que com tal raciocínio inverteis a ordem geral, e que, se neste mundo tudo fosse excelente, nada seria excelente? ELE — Tendes razão. O ponto importante é que vós e eu sejamos, e que sejamos vós e eu. Que tudo o mais se arranje como puder. A melhor ordem das coisas, em minha opinião, é aquela onde eu deveria estar, e dane-se o mais perfeito dos mundos, se eu não estiver nele. Prefiro ser, e mesmo ser um argumentador impertinente, do que não ser. EU — Não há quem pense como vós e que mova um processo contra a ordem existente sem perceber que renuncia à sua própria existência. ELE — É verdade. EU — Aceitemos, pois, as coisas como são. Vejamos o que nos custam e o que nos rendem. Abandonemos o Todo que não conhecemos suficientemente para poder louvá-lo ou acusá-lo, e que talvez não seja nem bom nem mau, se for necessário, como muitas pessoas honestas imaginam. ELE — Não entendo lá grande coisa de tudo que declamais. Cheira a filosofia. Já vos previno que não me meto nisso. Tudo o que sei é que eu gostaria de ser outro, quem sabe até arriscar-me a ser um homem de gênio, um grande homem. Sim, devo confessar, há algo dentro de mim que me diz. Nunca ouvi louvar um único homem sem enraivecer-me secretamente. Sou invejoso. Quando fico sabendo de algum fato degradante de sua vida privada, escuto com prazer; isto nos aproxima e suporto mais facilmente minha mediocridade. Digo para mim mesmo: certo, nunca terias feito Maomé, mas nem o elogio de Mapéoux. Estive e estou, pois, irritado por ser medíocre. Sim, sim, sou medíocre e estou zangado. Nunca ouvi tocar a abertura das índias Galantes, nunca ouvi cantar Profundos Abismos do Tenário, Noite, Eterna Noite, sem me dizer dolorosamente: “Eis o que nunca farás”. Sentia ciúme de meu tio. E se, em sua morte, encontrasse em sua pasta algumas belas peças para cravo, não teria vacilado entre permanecer eu mesmo ou ser ele. EU — Se é só isto que vos magoa, não vale muito a pena. ELE — Não é nada, são momentos que passam. (Em seguida põe-se a cantar a abertura das Índias Galantes e a ária Profundos Abismos e acrescenta:) Cá dentro algo me fala; diz: Rameau, tu bem querias ter composto esses dois trechos. Se os tivesses composto, terias certamente composto outros dois, e, depois que tivesses composto certo número, serias executado e cantado em toda parte. Quando andasses, terias a cabeça erguida, tua consciência seria testemunha de teu próprio mérito, os outros te apontariam dizendo: “E ele o compositor das belas gavotas”. (E canta as gavotas; em seguida, com o ar de um homem comovido, nadando na alegria e com os olhos úmidos, acrescenta esfregando as mãos:) Terias uma boa casa (mede o tamanho dela com os braços), um bom leito (estica-se nele indolentemente), bons vinhos (saboreia estalando a língua contra o céu da boca), uma boa carruagem (levanta o pé para subir), belas mulheres (já agarra com violência e com olhar voluptuoso); cem patifes viriam incensar-te todos os dias. (E acredita vê-los ao seu redor: Palissot, Poincinet, os Fréron, pai e filho, Laporte; ouve-os, empertiga-se, aprova-os, sorri-lhes, desdenha-os, despreza-os, expulsa-os, chama-os de volta, e em seguida continua:) E assim, pela manhã, dir-te-iam que és um grande homem. Lerias na história dos Três Séculos que és um grande homem; à noite, estarias convencido de que és um grande homem. E o grande homem, Rameau sobrinho, adormeceria com o doce murmúrio do elogio a ressoar em seus ouvidos. Mesmo dormindo teria o ar satisfeito: seu peito se dilataria, se elevaria, se abaixaria com desembaraço, roncaria como um grande homem. (E, dizendo isto, escorrega molemente num banquinho, fecha os olhos, imitando o sonho feliz que imagina. Depois de haver saboreado alguns instantes a doçura desse repouso, desperta, boceja, esfrega os olhos e procura, ainda à sua volta, seus aduladores insípidos.) EU — Acreditais, então, que o sono do homem feliz é diferente dos demais? ELE — Se acredito? Quando à noite, pobre-diabo subo ao meu sótão e me enfio em meu catre, fico encarquilhado sob minha coberta, tenho o peito fechado e a respiração perturbada, numa espécie de lamento fraco que mal se ouve enquanto um financista retumba em seu apartamento e espanta toda a rua. Hoje, porém, o que me aflige não é roncar e dormir mesquinhamente como um miserável. EU — No entanto, isso é triste. ELE — O que me aconteceu é muito mais. EU — O quê? ELE — Sempre vos interessastes por mim porque sou um coitado que no íntimo desprezais, mas que vos diverte. EU — É verdade. ELE — Pois bem, vou dizer-vos. (Antes de começar, solta um profundo suspiro, leva as mãos à testa. Em seguida, retoma um ar tranquilo e me diz:) Sabeis que sou um ignorante, um tolo, um louco, um impertinente, um preguiçoso, aquilo que nós, borgonheses, chamamos um rematado vadio, um velhaco, um guloso... EU — Que panegírico! ELE — E tudo verdade. Não há uma palavra a descartar. Não me contesteis, por favor. Ninguém me conhece melhor do que eu, e ainda não disse tudo. EU — Não vos quero aborrecer e concordarei plenamente. ELE — Muito bem. Eu vivia com um pessoal que me aceitava justamente porque eu era dotado, num raro grau, de todas essas qualidades. EU — Curioso! Até agora acreditava que todo mundo as escondesse de si próprio ou que as perdoasse quando suas, desprezando-as nos outros. ELE — Escondê-las? Quem pode? Ficai certo de que Palissot se diz outra coisa quando está a sós consigo mesmo. Ficai certo de que num colóquio com seu colega ambos confessam francamente que são apenas dois insignes tratantes. Desprezá-las nos outros? Minha gente era mais imparcial, e seu caráter garantia maravilhosamente meu sucesso. Vivia como um peixe na água. Era festejado. Qualquer ausência minha, por menor que fosse, era lamentada. Era seu pequeno Rameau, seu lindo Rameau, seu Rameau, o louco, o impertinente, o ignorante, o preguiçoso, o guloso, o bufão, o bestalhão. Não havia um desses epítetos familiares que não me valesse um sorriso, uma carícia, um tapinha nos ombros, uma bofetada, um pontapé; à mesa, um bom bocado que se jogava em meu prato; fora da mesa, uma liberdade que eu tomava inconsequentemente, pois sou inconsequente. Faz-se de mim, comigo, diante de mim tudo o que se quiser, sem que eu me formalize. E os presentinhos que choviam? Como sou mesquinho! Perdi tudo! Perdi tudo por ter tido senso comum uma vez, uma única vez em minha vida. Ah! se isso nunca me tivesse acontecido! EU — Mas do que se tratava? ELE — De uma tolice incomparável, incompreensível, irreparável. EU — Que tolice, afinal? ELE — Rameau, Rameau! Foste pilhado por isso? Pela tolice de teres tido um pouco de gosto, um pouco de espírito, um pouco de razão? Rameau, meu amigo, isso te ensinará a permanecer como Deus te fez, e como teus protetores te desejavam. Por isso te agarraram pelos ombros, conduziram-te à porta e te disseram: “Puxa daqui, velhaco! Nunca mais reapareça. É boa: isso aí pretende ter tino, razão, creio. Puxa daqui! Temos essas qualidades de sobra”. E lá foste, mordendo os dedos, quando tua maldita língua deveria ter sido mordida antes. Por imprudência estás aí, no olho da rua, sem eira nem beira, não sabendo onde bater a cabeça. A comida era posta em tua boca, e agora voltas aos restos; boa casa, terás sorte se te devolverem teu sótão; boa cama, e a palha te espera entre o cocheiro do Sr. de Soubisse e o amigo Robbé. Em vez de um sono doce e tranquilo como tinhas, com uma orelha ouvirás o relincho e o pisoteio dos cavalos, e com a outra o ruído mil vezes mais insuportável dos vermes secos, duros e bárbaros. Infeliz, imprudente, mil vezes endemoninhado! EU — Mas não haveria jeito de voltar? A falta que cometestes é tão imperdoável? Em vosso lugar eu iria procurar meu pessoal. Sois mais necessário a ele do que acreditais. ELE — Oh! Estou certo de que se entediam como cães, agora que não contam comigo para fazê-los rir. EU — Então? Eu iria procurá-los. Não lhes daria tempo para se arranjarem sem mim, de voltarem-se para algum divertimento honesto, pois quem sabe o que pode acontecer? ELE — Não é isso que temo. Tal não acontecerá. EU — Por mais sublime que sejais, outro pode substituir-vos. ELE — Dificilmente. EU — De acordo. Entretanto, eu iria com esta cara desfeita, estes olhos esgazeados, este colarinho desalinhado, estes cabelos desgrenhados, no estado verdadeiramente trágico em que vos encontrais. Lançar-me-ia aos pés da divindade, colaria meu rosto no chão, e sem me levantar, diria em voz baixa e soluçante: “Perdão, senhora, perdão! Sou um indigno, um infame. Foi um lamentável instante, pois sabeis que não sou homem de ter senso comum e vos prometo que nunca mais o terei em toda a minha vida”. (O mais divertido é que, enquanto eu falava, ele executava a pantomima. Prosternara-se, colara o rosto na terra, parecia segurar entre as mãos a ponta de uma pantufa, chorava, soluçava, dizia: “Sim, minha rainhazinha, sim, eu o prometo, não terei por toda a minha vida, por toda a minha vida!” Depois, levantando-se bruscamente, acrescentou num tom sério e refletido:) ELE — Sim, tendes razão. Creio que é o melhor. Ela é bondosa. O Sr. Vieillard diz que é tão boa! Também o sei um pouco. No entanto, ir humilhar-me diante de uma macaca! Gritar por misericórdia aos pés duma reles palhaça, sempre perseguida pelas vaias da plateia? Eu, Rameau, filho do Senhor Rameau, boticário de Dijon, homem de bem que nunca se ajoelhou diante de quem quer que fosse! Eu, Rameau, sobrinho daquele que chamam o grande Rameau, que passeia no Palais-Royal ereto e com os braços à mostra desde que o Sr. Carmontel o desenhou curvado e com as mãos sob as abas da casaca! Eu, que compus peças para cravo, que ninguém toca, mas que serão, talvez, as únicas a passar para a posteridade que as executará! Eu! Eu, enfim!... Vede, senhor, não é possível. (E pondo a mão direita sobre o peito, acrescentou:) Sinto aqui algo que se ergue e me diz: Rameau, não o farás! É preciso que haja uma certa dignidade agarrada à natureza do homem e que nada pode sufocar. Desperta sem mais nem menos, sim, sem mais nem menos, pois há dias em que não me custaria nada ser tão vil quanto se queira. Nesses dias, por um vintém, lamberia o cu da pequena Hus. EU — Alto lá, amigo. Ela é alva, bonita, jovem, doce, rechonchuda, e o que dizeis é um ato de humildade a que outro, mais delicado do que vós, poderia rebaixar-se algumas vezes. ELE — Entendamo-nos. Trata-se de lamber o cu no próprio e de lamber o cu no figurado. Pedi ao gordo Bergier que lamba o cu da Senhora De La Marque no próprio e no figurado; e, palavra de honra, neste caso, tanto o próprio como o figurado me desagradariam. EU — Se o expediente que vos sugiro não vos convém, tende, então, a coragem de ser mendigo. ELE — É duro ser mendigo enquanto há tolos opulentos a cujas expensas pode-se viver. E além disso é insuportável desprezar-se a si mesmo. EU — Conheceis esse sentimento? ELE — Se o conheço? Quantas vezes eu me disse: “Como, Rameau? Há dez mil mesas fartas em Paris, com quinze ou vinte talheres em cada uma, e não há um talher para ti? Há bolsas cheias de ouro que jorram a torto e a direito, e delas não cai uma só moeda para ti? Mil espiritozinhos sem talento, sem mérito; mil Criaturinhas sem encanto; mil intrigantes rasteiros bem vestidos, e tu andas nu? Serias tão imbecil? Não saberias bajular como os outros? Não saberias mentir, jurar, perjurar, prometer, cumprir ou faltar, como os outros? Não saberias pôr-te de quatro, como os outros? Não saberias favorecer a intriga duma dama e levar o bilhete doce, como os outros? Não saberias encorajar este rapaz e falar com a senhorita, e persuadir a senhorita a escutá-lo, como os outros? Não saberias fazer a filha de um dos nossos burgueses compreender que está mal arrumada, que belos brincos, um pouco de pintura, rendas, um vestido à polonesa lhe assentariam às mil maravilhas? Que seus pezinhos não foram feitos para andar na rua? Que há um belo senhor, jovem e rico, dono de uma casa engalanada de ouro, de uma carruagem soberba, com seis grandes lacaios, que a viu passar, que a considera encantadora, e que desde esse dia não come, nem bebe, não dorme mais e morrerá?” — Mas, e meu papai? — Bom, bom, vosso papai! No começo se zangará um pouco. — E mamãe, sempre me aconselhando para que eu seja uma moça honesta? Sempre a dizer-me que não há nada neste mundo melhor do que a honra? — Velhas falas, que nada significam. — E meu confessor? — Não o vereis mais; ou se persistirdes na fantasia de lhe contar a história de vossos divertimentos, isso vos custará algumas libras de açúcar e café. — É um homem severo que já me recusou a absolvição para a canção Vem à Minha Cela. — É que nada tínheis para lhe dar... Mas quando lhe aparecerdes em rendas... — Terei rendas, então? — Sem dúvida, de todo tipo... com belos brincos e diamantes. — Terei belos brincos de diamantes, então? — Sim. — Como aqueles da marquesa que vem às vezes comprar luvas em nossa loja? — Precisamente... em uma bela carruagem com uma parelha de cavalos cinzentos bamboleantes, dois grandes lacaios, um negrinho e um batedor à frente com pintas no rosto e anquinhas... — Ao baile? — Ao baile... À Ópera, à Comédia... (Seu coração já estremece de alegria...) — Brincais com um papel entre os dedos... O que é? — Não é nada. — Parece-me que sim. — É um bilhete. — E para quem? — Para vós, se fôsseis um pouco curiosa. — Curiosa? Mas eu sou muito... (Ela lê.) Um colóquio, não é possível. — Indo à missa. — Mamãe acompanha-me sempre; mas se ele viesse aqui, bem cedo; sou a primeira a acordar, estou no balcão antes que os outros tenham levantado. Ele vem, agrada; um belo dia, ao entardecer, a pequena desaparece, e passam-me dois mil escudos... O quê? Possuis esse talento e falta-te pão? Não tens vergonha, infeliz? Eu me lembrava de um monte de malandros que não chegavam aos meus pés e que regurgitavam riquezas. Eu usava um casaco de estopa e eles estavam cobertos de veludo, apoiavam-se sobre a bengala de castão de ouro e em bico de corvo, trazendo nos dedos efígies de Aristóteles e Platão. E no entanto, quem eram? A maioria, miseráveis trocas-tecla; hoje, uma espécie de senhores. Então eu me encorajava, a alma elevada, o espírito sutil e capaz de tudo. Mas essas boas disposições aparentemente não duravam, pois até hoje não consegui trilhar um caminho certo. Seja como for, eis aí o tema de meus frequentes solilóquios que podeis parafrasear segundo vossa fantasia, desde que chegueis à conclusão de que conheço o desprezo de mim mesmo, ou esse tormento da consciência, nascido da inutilidade dos dons que o céu repartiu entre nós. É o mais cruel de todos os sentimentos. Oxalá o homem não tivesse nascido! Eu o escutava e à medida que representava a cena do alcoviteiro e da donzela seduzida, a alma agitada entre dois movimentos opostos, eu não sabia se me abandonava ao desejo de rir ou ao transporte da indignação. Eu sofria. Vinte vezes uma explosão de riso impediu a explosão de minha cólera, vinte vezes a cólera que se erguia no fundo de meu coração terminou com uma explosão de riso. Sentia-me confundido com tanta sagacidade e baixeza, com ideias tão corretas e alternativamente tão falsas, uma perversidade tão geral dos sentimentos, uma torpeza tão completa e uma franqueza tão incomum. Percebeu o conflito que me agitava interiormente. “Que tendes?”, pergunta-me. EU — Nada. ELE — Pareceis perturbado. EU — Também estou. ELE — Mas, enfim, o que me aconselhais? EU — Mudar de assunto. Ah! Desgraçado! Em que estado de abjeção nasceste ou caíste? ELE — Concordo. Porém, que meu estado não vos comova assim. Minha intenção, ao desabafar convosco, não era a de vos afligir. Economizei um pouco enquanto vivi com essa gente. Imaginai: eu não precisava de nada e, no entanto, davam-me bastante para meus prazeres miúdos. Recomeçou, então, a esmurrar a testa, a morder os lábios e a revirar os olhos desvairados para o teto, acrescentando: “É negócio feito. Guardei alguma coisa. Tempo passado, bem acumulado”. EU — Quereis dizer, perdido. ELE — Não, não, acumulado. Enriquece-se a cada instante. Um dia a menos para viver ou uma moeda a mais para guardar, é tudo a mesma coisa. O importante é ir todas as noites facilmente, livremente, agradavelmente, copiosamente à privada: o stercus pretiosum! Eis o resultado da vida em todas as condições sociais. No momento derradeiro todos são igualmente ricos: Samuel Bernard, que, de tanto roubar, pilhar e fazer bancarrotas, deixa vinte e sete milhões em ouro, e Rameau, a quem a caridade proverá a mortalha grosseira que o envolverá. O morto não ouve soar os sinos. É inútil que cem padres esganicem por ele, que seja precedido ou seguido por uma longa fila de tochas ardentes — sua alma não caminha ao lado do mestre de cerimônias. Apodrecer sob o mármore, apodrecer sob a terra, é sempre apodrecer. Ter ao redor de seu caixão as Crianças Vermelhas e as Crianças Azuis, ou ninguém, que diferença faz? E depois, reparai bem neste punho: era rijo como um diabo. Seus dez dedos eram varas cravadas num metacarpo de madeira, e estes tendões, velhas tripas mais secas, mais rijas, mais inflexíveis do que as que serviram para a roda de um torneiro. Mas atormentei-as tanto, alquebrei-as tanto, estraçalhei-as tanto! Não queres ir? Irra! Pois digo-te que irás. E assim será. Dizendo isto, com a mão direita agarra os dedos e o punho da mão esquerda, entortando-os para cima e para baixo; a extremidade dos dedos toca o braço, as juntas estalam. Temo que os ossos se desloquem. EU — Cuidado! Assim vos estropiareis. ELE — Não temais, estão afeitos a isso. Há dez anos eu os venho forçando, não os trato de outro jeito. Embora não gostassem, os vadios tiveram que se acostumar, aprender a colocar-se sobre as teclas e a pontear as cordas. Agora a coisa vai bem. Sim, vai bem. Ao mesmo tempo, põe-se na atitude de um tocador de violino; cantarola um allegro de Locatelli; seu braço direito imita o movimento de arco, sua mão esquerda e seus dedos parecem deslizar pela extensão do cabo; se desafina, interrompe, sobe ou desce a corda, distende-a com a unha para assegurar-se de que está certa; retoma o trecho onde o deixou; bate o compasso com o pé, agita freneticamente a cabeça, os pés, as mãos, os braços, o corpo. Como se vê às vezes, no concerto religioso, Ferrari, Chiabran, ou algum outro virtuose nas mesmas convulsões, oferecendo a imagem do mesmo suplício e causando quase a mesma pena, pois não é doloroso ver apenas tormento naquele que se ocupa em transmitir prazer? Puxai uma cortina que esconda de mim o homem que quiser mostrar-me um estudioso aplicado a uma dificuldade. No meio de suas agitações e de seus gritos, se porventura apresentava uma posição, um desses trechos harmoniosos em que o arco se move lentamente sobre várias cordas ao mesmo tempo, seu rosto tomava uma expressão extasiada, sua voz suavizava, escutava a si mesmo com arrebatamento. É certo que os acordes ressoavam em suas orelhas e nas minhas. Depois, recolocando seu instrumento sob seu braço esquerdo com a mesma mão com que o segurava, deixou cair a mão direita com seu arco: “Muito bem!”, disse. “Que achais?” EU — Maravilhoso! ELE — Está bem, parece-me. Soa mais ou menos como os outros. E imediatamente acocora-se, como um músico que se põe ao cravo. “Tende piedade de mim e de vós”, digo-lhe. ELE — Não, não. Visto que vos retenho, escutareis. Não quero uma opinião emitida sem que se saiba por quê. Vosso louvor terá um tom mais seguro e me valerá um aprendiz. EU — Sou tão pouco relacionado que vos cansareis sem proveito. ELE — Nunca me canso. Como percebo que desejava inutilmente apiedar-me do homem porque a sonata ao violino o havia ensopado, decido consentir. Ei-lo, pois, sentado ao cravo, as pernas dobradas, a cabeça erguida para o teto onde parece ver uma partitura escrita, cantando, preludiando, executando uma peça de Alberti ou de Galuppi, não sei de qual dos dois. Sua voz passa como o vento e seus dedos rodopiam sobre as teclas, ora deixando as agudas pelas graves, ora deixando a parte do acompanhamento para voltar às agudas. As paixões sucedem-se em seu rosto: distingue-se a ternura, a cólera, o prazer, a dor; sentem-se os piano, os forte, e estou certo de que um outro mais hábil do que eu teria reconhecido o trecho pelo movimento, pelo caráter, por suas expressões e por alguns fragmentos de canto, que lhe escapavam em intervalos. Porém, ainda mais extravagante é vê-lo tatear de vez em quando, como se tivesse errado, vê-lo contrariar-se por não ter mais a peça em seus dedos. Endireitando-se e enxugando as gotas de suor que lhe descem pela face, diz: “Enfim, podeis ver que também sabemos colocar um trítono, uma quinta supérflua, e que o encadeamento das dominantes nos é conhecido. Essas passagens enarmônicas, de que meu caro tio faz tanta questão, não são um bicho-de-sete-cabeças. Nós nos saímos muito bem”. EU — Tivestes a bondade de mostrar-me que sois muito hábil, mas sou homem capaz de vos acreditar sob palavra. ELE — Muito hábil? Oh! Não! Para meu ofício sei mais ou menos. E já é mais do que preciso, pois neste país quem é obrigado a saber aquilo que ensina? EU — Tanto quanto a saber aquilo que aprende. ELE — Com mil demônios, como é verdade! Como é muito verdade! Agora, senhor filósofo, com a mão na consciência, falai francamente. Houve um tempo em que não éreis tão abastado como hoje. EU — Ainda não sou muito. ELE — Mas não ides mais ao Luxemburgo no verão, vós vos lembrais... EU — Deixemos isso. Sim, eu me lembro. ELE — Em redingote de pelúcia cinzenta... EU — Sim, sim. ELE — Derreado num dos lados, com o punho da camisa rasgado e as meias negras de lã remendadas atrás com linha branca. EU — Sim, sim. Tudo que quiserdes. ELE — Que fazíeis, então, na alameda dos Soupirs? EU — Uma figura bem triste. ELE — Saindo de lá, andáveis com passos rápidos e miúdos pela calçada. EU — De acordo. ELE — Lecionáveis matemática. EU — Sem saber uma palavra. Era a isto que queríeis chegar? ELE — Justamente. EU — Aprendi ensinando os outros; produzi alguns bons estudantes. ELE — É possível. Mas a música não é o mesmo que álgebra e a geometria. Hoje, que sois um opulento senhor... EU — Não tão opulento... ELE — Que já fizestes vosso pé-de-meia... EU — Muito pequeno... ELE — Dais professores à vossa filha. EU — Ainda não. É a mãe que se encarrega de sua educação, pois é preciso ter paz em casa. ELE — A paz em casa? Raios me partam! Só a temos quando somos o servidor ou o senhor, e devemos ser o senhor. Tive mulher. Que Deus tenha a sua alma. Mas quando, às vezes, resolvia ser insolente, eu me erguia sobre meus esporões, desdobrava meu trovão e dizia como Deus: “Que a luz se faça”, e a luz foi feita. Assim, em quatro anos, nenhum de nós teve a palavra mais alta do que a do outro. Qual a idade de vossa filha? EU — Isto não vem ao caso. ELE — Qual a idade de vossa filha? EU — Que diabo! Deixemos minha filha com sua idade e voltemos aos professores que terá. ELE — Arre! Não conheço algo mais teimoso do que um filósofo! Suplicando muito humildemente, não se poderia saber de Vossa Senhoria, o filósofo, qual a idade aproximada da senhorita sua filha? EU — Dai-lhe oito anos. ELE — Oito anos! Há quatro já deveria ter os dedos nas teclas. EU — Mas talvez eu não me tenha preocupado em fazer entrar no plano de sua educação um estudo que ocupa tanto tempo e que serve para tão pouco. ELE — E o que lhe ensinareis, então, por favor? EU — A raciocinar corretamente, se eu puder; coisa tão pouco comum entre os homens e mais rara ainda entre as mulheres. ELE — Ei! Deixai-a desatinar tanto quanto quiser, desde que seja bonita, divertida e faceira. EU — Visto que a natureza foi tão ingrata para com ela, dando-lhe uma compleição delicada com uma alma sensível, e expondo-a às mesmas penas da vida, como se tivesse uma compleição forte e um coração de bronze, ensinar-lhe-ei, se puder, a suportá-las com coragem. ELE — E deixai-a chorar, sofrer, ter dengos, ter os nervos irritados como os outros, desde que seja bonita, divertida e faceira. Como? Nada de dança?! EU — Não mais do que o necessário para uma reverência, para um porte decente, para apresentar-se bem e para saber andar. ELE — Nada de canto? EU — Não mais do que para uma boa dicção. ELE — Nada de música? EU — Se houvesse um bom professor de harmonia, eu lha confiaria de bom grado, duas horas por dia, durante um ou dois anos, não mais. ELE — E no lugar das coisas essenciais que suprimis? EU — Ponho gramática, fábula, história, geografia, um pouco de desenho e um pouco de moral. ELE — Como me seria fácil provar-vos a inutilidade de todos esses conhecimentos em um mundo como o nosso! Que digo!? A inutilidade? Talvez o perigo! Mas, no momento, reterei uma questão: ela não precisaria de um ou dois professores? EU — Sem dúvida. ELE — Ah! Voltamos ao ponto. Esses professores, esperais que saberão a gramática, a fábula, a história, a geografia, a moral de que lhe darão lições? Conversa, meu caro senhor, conversa. Se possuíssem essas coisas o bastante para ensinar, não as ensinariam. EU — E por quê? ELE — Porque teriam passado suas vidas a estudá-las. É preciso ser profundo na arte ou na ciência para bem conhecer os elementos. Os trabalhos clássicos só podem ser bem feitos por aqueles que envelheceram no ofício. O meio e o fim é que esclarecem as trevas do começo. Perguntai ao vosso amigo D’Alembert, o corifeu da ciência matemática, se seria capaz de ensinar seus elementos. Só após trinta ou quarenta anos de exercício meu tio entreviu os primeiros clarões da teoria musical. EU — Ó louco, arquilouco! (gritei) Como é possível que em tua cabeça ideias tão corretas se misturem com tanta extravagância? ELE — Diabo, quem sabe? É o acaso que as lança e elas ficam. Há nelas tanto, que quando não se sabe tudo, não se sabe bem. Ignora-se para onde uma coisa vai, de onde outra vem, onde esta ou aquela devem ser colocadas, qual deve passar primeiro, onde estará melhor a segunda. Ensina-se bem sem método? E o método, de onde nasce? Escutai, meu filósofo, meti na cabeça que a física sempre será uma pobre ciência, uma gota de água, presa na ponta de uma agulha sobre o vasto oceano, um grão destacado da vasta cadeia dos Alpes! As razões dos fenômenos? Na verdade, seria preferível ignorar do que saber tão pouco e tão mal. Era justamente como me encontrava ao fazer-me professor de acompanhamento e de composição. Com que sonhais? EU — Sonho que tudo o que acabais de dizer é mais especioso do que sólido. Deixemos isso. Ensinastes, dizeis, o acompanhamento e a composição? ELE — Sim. EU — E não sabíeis absolutamente nada? ELE — Palavra de honra que não. E é por isso que havia piores do que eu: os que acreditavam saber alguma coisa. Pelo menos eu não estragava o gosto nem as mãos das crianças. Passando de mim para um bom professor, como nada haviam aprendido, pelo menos nada tinham para desaprender, o que era tempo e dinheiro poupados. EU — Como fazíeis? ELE — Como todos fazem. Chegava, jogava-me numa cadeira. “Como o tempo está ruim! Como é cansativo andar a pé!” Tagarelava sobre algumas novidades: “A Srta. Lemierre devia executar o papel de vestal na nova ópera, mas está grávida pela segunda vez e não se sabe quem irá dublá-la. A Srta. Arnauld acaba de abandonar seu condezinho; diz-se que está negociando com Bertin. O condezinho, porém, encontrou a porcelana do Sr. de Montamy. No último concerto dos amadores havia uma italiana que cantou como um anjo. Esse Préville tem um corpo raro, é preciso vê-lo no Mercúrio Galante; o trecho do enigma é impagável. A pobre Dusmenil não sabe mais o que faz. Vamos, senhorita, pegai vosso livro”. Enquanto a senhorita, sem a menor pressa, procura o livro que deixou extraviar, chama-se uma criada, esbraveja-se. Continuo: “— A Clairon é verdadeiramente incompreensível. Fala-se de um casamento muito ridículo: o da senhorita... como se chama mesmo? Uma criaturinha que ele mantinha, em quem fez duas ou três crianças e que havia sido mantida por muitos outros. — Vamos, Rameau, não é possível dizeis um disparate. — Não digo disparate algum. Diz-se mesmo que a coisa já está consumada. Corre o boato que Voltaire morreu; melhor. — E por que melhor? — É que deve estar preparando uma boa galhofa. É seu costume morrer quinze dias antes”. Que vos direi ainda? Contava algumas obscenidades que ouvira em outras casas, pois somos todos grandes mexeriqueiros. Bancava o louco. Escutavam-me, riam, gritavam: “É sempre encantador”. Entrementes, o livro da senhorita havia sido, enfim, encontrado sob uma poltrona onde fora arrastado, mastigado e raspado pelo cachorrinho ou pelo gatinho. Punha-se ao cravo. Primeiro fazia ruído sozinha, em seguida eu me aproximava, depois de ter feito à mãe um sinal de aprovação. A mãe: “Não vai mal; bastaria querer, mas não quer. Prefere perder seu tempo a tagarelar, a falar de bagatelas, a correr, e não sei mais o quê. Nem bem partis, e o livro já está fechado para ser reaberto apenas quando voltais. Também, nunca a repreendeis”. Entretanto, como era preciso fazer alguma coisa, tomava-lhe as mãos para colocá-las numa outra posição; contrariava-me, gritava: “Sol, sol, sol, senhorita, é um sol”. A mãe: “Menina, não tens ouvido? Eu, que não estou ao cravo, que não vejo teu livro, sinto que é preciso um sol. Dás um trabalho infinito ao senhor; não compreendo uma paciência como a dele; não reténs nada do que te diz, não progrides...” Então eu rebatia um pouco os golpes, meneando a cabeça, dizia: “Perdoai-me, senhora, perdoai-me. Poderia ser melhor se a senhorita quisesse, se estudasse um pouco, mas não está muito mal”. A mãe: “Em vosso lugar, eu a conservaria um ano na mesma peça”. “Oh! quanto a isso não vos preocupeis, mas em breve não haverá uma cujas dificuldades não possa superar.” “Senhor Rameau, estais a elogiá-la. Sois muito bom. De toda a lição, ela irá guardar apenas isso para repetir-me na ocasião adequada.” A hora transcorria; minha discípula apresentava-me o pequeno pagamento da lição com a graça do gesto e a reverência que o professor de dança lhe ensinara. Eu o guardava no bolso, enquanto a mãe dizia: “Muito bem, menina. Se Javillier estivesse aqui, vos aplaudiria”. Por delicadeza eu ainda tagarelava um pouco e, em seguida, desaparecia. Eis o que se chamava, então, uma aula de acompanhamento. EU — E hoje, é diferente? ELE — Santo Deus! Creio que sim. Chego. Sério, apresso-me em tirar meu regalo, abro o cravo, experimento as teclas. Estou sempre apressado; se me fazem esperar um pouco, grito como se me tivessem roubado uma moeda. Daqui a uma hora deverei estar noutro lugar; em duas horas, em casa da Sra. duquesa tal; sou esperado para jantar em casa de uma bela marquesa e. saindo de lá, para um concerto em casa do senhor Barão de Bacq, rua Neuve-des-Petits-Champs. EU — E, no entanto, não sois esperado em parte alguma. ELE — Claro que não. EU — Então por que usar essas pequenas astúcias tão ignóbeis? ELE — Ignóbeis. Por que, fazeis o favor? São de uso em minha profissão. Não me avilto fazendo como todo mundo. Não fui eu que as inventei e seria esquisito e desastrado não me adaptar a elas. Na verdade, sei muito bem que, se aplicardes a isto certos princípios gerais de não sei que moral, que todos têm na boca e que ninguém pratica, talvez o branco vire preto e o preto, branco; mas, senhor filósofo, há uma consciência geral como há uma gramática geral, e também há exceções em cada língua e que chamais, vós outros, sábios... ajudai-me... chamais... EU — Idiotismos. ELE — Exatamente. Muito bem. Cada posição social tem suas exceções à consciência geral, e de bom grado eu lhes daria o nome de idiotismos do ofício. EU — Compreendo. Fontenelle fala bem, escreve bem, embora seu estilo fervilhe de idiotismos. ELE — E o soberano, o ministro, o financista, o magistrado, o militar, o homem de letras, o advogado, o procurador, o comerciante, o banqueiro, o artesão, o professor de canto, o professor de dança são gente muito honesta, embora sua conduta se afaste da consciência geral em vários pontos e esteja repleta de idiotismos morais. Quanto mais antiga a instituição de uma coisa, mais idiotismos terá. Quanto mais desgraçados os tempos, mais os idiotismos se multiplicarão. O ofício vale tanto quanto o homem e, reciprocamente, ao fim e ao cabo, o homem vale tanto quanto o ofício. Por isso faz-se valer o ofício tanto quanto se pode. EU — Nessa enrascada toda só percebo claramente que há poucos ofícios exercidos com honestidade, ou poucas pessoas honestas em seus ofícios. ELE — Bem, não há mesmo, mas, em troca, poucos pulhas ficam fora de suas lojas. E tudo iria melhor se não houvesse certa gente denominada assídua, correta, pontual, que cumpre rigorosamente seus deveres, ou, o que dá no mesmo, que está sempre em suas lojas a cuidar de seu ofício de manhã à noite e não fazendo outra coisa. Por isso são os únicos que se tornam opulentos e os únicos estimados. EU — Pela força dos idiotismos. ELE — Isso mesmo. Vejo que me compreendestes. Há idiotismos comuns a todas as posições sociais, a todos os países e a todos os tempos, assim como há tolices comuns. Um desses idiotismos comuns é o de tentar proporcionar a si mesmo o maior número possível de práticas, mais do que se pode efetivamente praticar. E isto vem de uma besteira comum: acreditar que o mais hábil é aquele que mais práticas possui. Eis aí duas exceções à consciência geral a que devemos curvar-nos. É uma espécie de crédito. Em si mesmo nada vale, mas vale muito perante a opinião. Mais vale a fama do que a dourada cama, mas quem tem boa fama não costuma ter cama dourada, e, hoje em dia, quem tem a cama garante sua fama. É preciso ter ambas. Eis meu objetivo quando me faço valer pelo que qualificais de manobras vis, de pequenos ardis indignos. Dou minha aula, e muito bem: eis a regra geral. Faço crer que tenho mais para dar do que há horas no dia: eis o idiotismo. EU — Mas, dais bem vossas aulas? ELE — Sim, não muito mal. Razoavelmente. O baixo fundamental do caro tio facilitou bem as coisas. Antigamente roubava dinheiro do meu aluno. Sim, certamente roubava dele. Atualmente eu o ganho, pelo menos tanto quanto os outros. EU — E roubáveis sem remorso? ELE — Mas claro! Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão! Deus sabe como os pais ganharam a fortuna que regurgitavam. Era gente da corte, financistas, grandes comerciantes, banqueiros, gente de negócios. Eu os ajudava na devolução, eu e um bando de outros, empregados como eu. Na natureza todas as espécies se devoram; todas as condições se entre devoram na sociedade. Nós nos justiçamos uns aos outros sem que a lei se intrometa. Outrora a Deschamps, hoje a Guimard, vingam o príncipe contra o financista. Amanhã, a modista, o joalheiro, o tapeceiro, a costureira, o escroque, a camareira, o cozinheiro, o seleiro vingarão o financista contra a Deschamps. No meio disso tudo só saem lesados os imbecis e os preguiçosos, lesados sem terem prejudicado ninguém, e é muito bem feito. Donde podeis concluir que as exceções à consciência geral, os idiotismos morais que provocam tanto barulho sob a denominação de “golpes”, nada são. No final das contas, o que vale mesmo é ter um golpe de vista certeiro. EU — Admiro o vosso. ELE — E, além disso, a miséria não conta? A voz da consciência e da honra é muito fraca quando as tripas gritam. Para mim isso já é suficiente. Se ficar rico farei a devolução, e estou mesmo disposto a devolver de todas as maneiras possíveis: pela mesa, pelo jogo, pelo vinho, pelas mulheres. EU — Mas temo que nunca fiqueis rico. ELE — Também tenho essa suspeita. EU — Mas, se acontecesse, que faríeis? ELE — Como todos os novos-ricos. Seria o mais insolente patife que já se terá visto. Recordaria tudo que me fizeram suportar, devolveria todos os insultos que recebi. Gosto de mandar e mandarei. Gosto que me adulem e me adularão. Terei a meu serviço toda a tropa Vilmoriana, a quem direi, como já me disseram: “Vamos, tratantes, divirtam-me!” E me divertirão. “Caluniem as pessoas honestas!” E serão caluniadas, se é que ainda existem. Depois teremos raparigas e nos tutearemos quando já bêbados. Ébrios, contaremos casos, teremos todos os tipos de defeitos e vícios. Será delicioso. Provaremos que Voltaire não tem gênio, que Buffon, sempre escorado em andadeiras e contraído numa linguagem afetada, não passa dum declamador empolado, que Montesquieu é apenas um pedante; relegaremos D’Alembert à sua matemática; espancaremos todos os pequenos Catões como vós, que nos desprezam por inveja, cuja modéstia é a capa do orgulho, e cuja sobriedade é a lei da carência. E a música? Aí, sim! Seremos nós a tocá-la. EU — Pelo belo uso que fareis da riqueza, vejo que é uma pena serdes mendigo. Viveríeis de uma maneira muito honrosa para a espécie humana, bem útil para vossos concidadãos e bem gloriosa para vós próprio. ELE — Ora, parece que estais a zombar de mim. Senhor filósofo, não sabeis com quem brincais. Não desconfiais que neste momento represento a parte mais importante da cidade e da corte. Nossos nababos, qualquer que seja a sua posição social, talvez tenham ou não tenham dito a si próprios exatamente o mesmo que acabo de vos confiar. O fato é que a vida que eu levaria em seus lugares é justamente a vida que levam. Vós outros, filósofos, pensais de maneira diversa, pois acreditais que a mesma felicidade é feita para todos. Que estranha visão! Vossa felicidade supõe certa propensão romanesca que não temos, uma alma singular, um gosto particular. Enfeitais essa esquisitice com o nome de virtude, chamando-a, também, filosofia. Mas a virtude e a filosofia são feitas para todo mundo? Quem pode tem; quem pode conserva. Imaginai o universo sensato e filosofante. Que terrível chatice! Escutai. Viva a filosofia, viva a sabedoria de Salomão: beber bons vinhos, saborear petiscos delicados, rolar sobre belas mulheres, repousar em camas macias. O resto é vaidade. EU — Como? E servir à pátria? ELE — Vaidade! Não há mais pátria. De um polo ao outro só vejo tiranos e escravos. EU — Servir aos amigos? ELE — Vaidade! Quem tem amigos? E quem os tivesse deveria torná-los ingratos? Atentai e vereis que é sempre isso o que se recolhe dos favores prestados. O reconhecimento é um fardo e todo fardo deve ser sacudido. EU — Ter uma posição na sociedade e cumprir os deveres? ELE — Vaidade! Que importa que se tenha ou não uma posição, desde que se seja rico, pois só se arranja uma posição para isso. Cumprir os deveres? Aonde isso leva? Ao crime, à perturbação, à perseguição. É assim que se progride? Fazer a corte, raios! Fazer a corte! Ver os grandes, estudar seus gostos, prestar-se às suas fantasias, servir aos seus vícios, aprovar suas injustiças. Eis o segredo. EU — Cuidar da educação de seus filhos? ELE — Vaidade! É tarefa de um preceptor. EU — Mas, se o preceptor, convicto de vossos princípios, negligenciar seus deveres, quem deverá ser castigado? ELE — Palavra! Garanto que não serei eu! Talvez, um dia, o marido de minha filha, ou a mulher de meu filho. EU — Mas, se ambos caírem na orgia e no vício? ELE — Será uma consequência de sua posição. EU — Se se desonrarem? ELE — Faça o que fizer, o rico nunca se desonra. EU — Se se arruinarem? ELE — Pior para eles. EU — Creio que, se podeis vos dispensar de velar pela conduta de vossa mulher, de vossos filhos, de vossos domésticos, podeis muito bem negligenciar vossos negócios. ELE — Com mil perdões! Geralmente é muito difícil arranjar dinheiro, de modo que é prudente ocupar-se desde logo e sempre com tal questão. EU — Dareis pouca preocupação à vossa mulher? ELE — Nenhuma. O melhor procedimento com a cara-metade é fazer o que lhe convém. Em vossa opinião, o convívio não seria muito divertido se cada um se ocupasse apenas com suas próprias coisas? EU — Por que não? A noite é sempre mais bela para mim quando estou contente com meu dia. ELE — Para mim também. EU — É o ócio profundo que torna as pessoas da alta roda tão delicadas em suas diversões. ELE — Não acrediteis nisso. Agitam-se muito. EU — Como nunca se cansam, nunca descansam. ELE — Não acrediteis nisso. Estão sempre exaustas. EU — Para elas, o prazer é sempre uma ocupação agradável, nunca uma carência. ELE — Tanto melhor. A carência é sempre dolorosa. EU — Esbanjam tudo. Sua alma embrutece, presa do tédio. Aquele que lhes tirasse a vida no meio de sua acabrunhante abundância lhes prestaria um favor. Da felicidade, só conhecem a parte que se embota mais depressa. Não desprezo os prazeres dos sentidos. Também tenho um paladar que se delicia com iguarias delicadas ou com vinho delicioso. Tenho coração e olhos. Gosto de ver uma bela mulher, de sentir em minha mão a firmeza roliça de seu seio, de apertar seus lábios contra os meus, de buscar a volúpia em seus olhos e de expirar em seus braços. Às vezes, com meus amigos, uma reunião devassa, até mesmo um pouco tumultuosa, não me desagrada. Mas não vos esconderei que me é infinitamente mais doce ter socorrido um desgraçado, ter acabado um caso espinhoso, ter dado um conselho salutar, ter feito uma leitura agradável, ter passeado com um homem ou com uma mulher queridos de meu coração, ter passado algumas horas instrutivas com meus filhos, ter escrito uma boa página, ter cumprido os deveres de minha condição, ter dito àquela que amo coisas ternas e doces que trazem seus braços ao redor de meu pescoço. Conheço uma ação e teria dado tudo o que possuo para tê-la praticado. Maomé é uma obra sublime, mas eu preferiria ter reabilitado a memória de Calas. Um meu conhecido refugiara-se em Cartagena; era o caçula de uma família numa região onde o costume transfere todos os bens aos primogênitos. Ali, fica sabendo que seu irmão mais velho, criança mimada, depois de haver despojado o pai e a mãe de tudo quanto possuíam, expulsara-os de seu castelo e os bons velhinhos morriam como indigentes numa aldeia da província. Que faz então o caçula, tratado tão duramente pelos pais, obrigado a fazer fortuna tão longe? Envia-lhes ajuda; apressa-se em arranjar seus negócios, volta opulento, reconduz pai e mãe ao velho domicílio, casa as irmãs. Ah! meu caro Rameau, esse homem encarava aquele momento como o período mais feliz de sua vida! Falava-me disso com lágrimas nos olhos. E ao vos contar a estória sinto meu coração conturbado de alegria e prazer, quase sem poder falar. ELE — Que gente singular! EU — E vós, gente lamentável, se não podeis imaginar que é possível elevar-se acima do destino e que é impossível a infelicidade no abrigo de duas belas ações como essas! ELE — Eis aí uma espécie de felicidade com que dificilmente me familiarizaria, pois é tão raro encontrá-la. Mas, em vossa opinião, devemos ser gente honesta? EU — Para ser feliz? Seguramente. ELE — Contudo, vejo uma infinidade de gente honesta que não é feliz, e uma infinidade de gente feliz que não é honesta. EU — É o que vos parece. ELE — Não foi justamente por ter tido senso comum e franqueza durante um momento que agora não sei onde comer? EU — Claro que não! Mas justamente por não os ter tido sempre, por não ter compreendido muito antes que é preciso arranjar recursos sem apelar para o servilismo. ELE — Apelando ou não, os recursos que obtive eram pelo menos mais fáceis. EU — E os menos seguros e menos honestos. ELE — Mas os mais conformes ao meu caráter de vadio, de tolo e de velhaco. EU — Concordo. ELE — E visto que posso ser feliz usando os vícios de minha natureza, adquiridos sem trabalho e conservados sem esforço, adaptados aos costumes de minha nação, bem do gosto daqueles que me protegem e mais parecidos com suas pequenas carências particulares do que com virtudes que os embaraçariam acusando-os de manhã à noite, seria muito estranho que eu começasse a me atormentar como um condenado para me deformar e me tornar diferente do que sou; para me dar um caráter estranho ao meu, qualidades muito estimáveis (concordo só para não discutir) mas que me custariam muito adquirir, praticar, que não me levariam a nada (talvez a pior do que nada), pela sátira contínua dos ricos junto aos quais os mendigos como eu têm que ganhar a vida. Louva-se a virtude, mas é odiada e dela se foge. Enregela, e é preciso ter os pés quentes. Além do mais, ficaria de mau humor, infalivelmente. Por que vemos frequentemente devotos tão duros, tão irritados, tão insociáveis? Porque impuseram a si próprios uma tarefa que não é natural; sofrem, e quem sofre faz os outros sofrerem também. Isto não me interessa, nem aos meus protetores. É preciso que eu seja alegre, ágil, divertido, bufão, gozado. A virtude faz-se respeitar, e o respeito é incômodo. A virtude faz-se admirar, e a admiração não é divertida. Lido com gente que se entedia e devo fazê-la rir. Ora, só o ridículo e a loucura fazem rir. Portanto, devo ser ridículo e louco. E, mesmo que minha natureza não me tivesse feito assim, o mais cômodo seria aparentá-lo. Felizmente não careço ser hipócrita; já há tantos, de tantos matizes, sem contar aqueles que o são consigo mesmos. O cavaleiro de la Morlière, que levanta a aba do chapéu sobre a orelha, anda de cabeça erguida, olha-nos por cima do ombro ao passar, traz uma longa espada batendo contra a coxa e tem o insulto pronto para quem não carrega uma, e que parece desafiar todos os que chegam, que faz ele? Tudo o que pode para se persuadir que é corajoso, embora seja um covarde. Dai-lhe um sopapo no nariz. Não reagirá. Quereis que baixe a voz? Elevai a vossa. Mostrai-lhe vossa bengala ou dai-lhe um pontapé no traseiro. Muito espantado por perceber que é covarde, perguntará como o soubestes, quem vo-lo disse, se ele próprio o ignorava um momento atrás. Impusera-se um longo e habitual arremedo de bravura e de tanto fingir acabara acreditando na coisa. E aquela mulher que se mortifica, visita prisões, assiste a todas as reuniões de caridade, que caminha cabisbaixa, não ousando encarar um homem, incessantemente em guarda contra a sedução dos sentidos. No entanto, como poderia impedir que seu coração queime, seu temperamento se acenda, os desejos a obsedem, sua imaginação, noite e dia, a faça rever as imagens do Porteiro dos Cartuxos ou das Posições do Aretino? Que lhe acontecerá então? Que pensará sua camareira levantando de camisola e voando em socorro de sua senhora que desfalece? Justine, voltai ao leito, não sois vós que vossa senhora chama em seu delírio. E o amigo Rameau, se um dia se metesse a desprezar a fortuna, as mulheres, a boa mesa, o lazer, e se pusesse a catonizar, que seria? Um hipócrita. É preciso que Rameau seja o que é: um patife feliz no meio de patifes opulentos, e não um fanfarrão de virtudes ou mesmo um homem virtuoso, roendo sua côdea de pão, solitário ou na companhia de mendigos. E, para acabar de vez com a lenga-lenga, não me acomodo à vossa felicidade, nem à de alguns visionários como vós. EU — Vejo, meu caro, que não sabeis o que ela é, e que não fostes feito para aprendê-la. ELE — Tanto melhor, com mil demônios! Ela me faria morrer de fome, de tédio e, talvez, de remorso. EU — Depois de tudo, o único conselho que vos posso dar é o de regressardes bem depressa à casa de onde vos fizestes imprudentemente expulsar. ELE — E fazer o que não desaprovais no próprio, mas vos repugna um pouco no figurado. EU — É minha opinião. ELE — Independentemente desta metáfora que me desagrada no momento e que não me desagradará num outro. EU — Que excentricidade! ELE — Não há nada excêntrico nisto. Posso ser abjeto, mas sem constrangimento. Posso descer de minha dignidade... Rides? EU — Sim, vossa dignidade faz-me rir. ELE — Cada um com a sua. Posso bem esquecer a minha, mas por tê-lo decidido e não porque me foi ordenado. Será preciso que possam dizer-me: “Rasteja”, para que eu seja obrigado a rastejar? É a marcha do verme, é o meu jeito. Seguimos assim se nos deixam em paz, mas nos empertigamos quando nos pisam no rabo. Pisaram no meu rabo? Já me empertigo todo. E depois, não fazeis ideia da barafunda reinante — uma casa sem rei nem roca. Imaginai uma personagem melancólica e maçante, devorada por vapores, envolvida em duas ou três voltas do roupão, contente consigo mesma e a quem tudo desagrada; que mal se consegue fazer sorrir mesmo contorcendo o corpo e o espírito de mil maneiras. Considerai friamente as caretas engraçadas de meu rosto e as de meu juízo, ainda mais engraçadas. Cá entre nós, o tal padre Noel, esse beneditino desagradável tão afamado por suas caretas, malgrado seus sucessos na corte, perto de mim é um polichinelo de pau. Não que eu queira me gabar, e muito menos gabá-lo. Posso torturar-me à vontade para alcançar o sublime dos hospícios, não adianta. Rirá? Não rirá? Fico a me perguntar no meio de minhas contorções. Podeis imaginar como essa inquietação prejudica meu talento. Meu hipocondríaco, a cabeça enfiada numa touca que lhe cobre os olhos, tem o ar de um pagode imóvel em cujo queixo se teria amarrado um cordão que passasse por baixo de sua poltrona. Espera-se que o cordão estique, mas não estica. Se a mandíbula se entreabre, é apenas para articular uma palavra desoladora, uma palavra que vos indica que sequer fostes percebido e que todas as vossas macaquices foram inúteis. Ou então, uma palavra que é resposta para uma questão que lhe fizestes quatro dias atrás. A palavra pronunciada, a mola mastoideana se distende e a mandíbula se fecha... (Em seguida, começa a imitar o homem. Coloca-se numa cadeira, cabeça fixa, chapéu quase sobre as pálpebras, olhos semicerrados, braços pendentes, remexendo a mandíbula como um autômato e dizendo: “Sim, tendes razão, senhorita, é preciso acrescentar-lhe finura”.) É que isso aí decide, decide sempre, sem remissão, de noite, de manhã, na hora do banho, no jantar, no café, no teatro, no jogo, na ceia, na cama e, Deus me perdoe, até nos braços de sua amante! Não estou capacitado para ouvir estas últimas decisões, mas estou cansado das primeiras. Nosso patrão: sorumbático, obscuro e categórico como o destino. Seu par é uma presunçosa que se dá ares de importância, a quem a gente poderia chamar de bonita, porque ainda o é, apesar de alguns cravos e espinhas espalhados pelo rosto, e embora comece a competir com o volume da Sra. Bouvillon. Gosto das carnes quando são belas, mas assim já é demais; e o movimento é tão essencial à matéria! Artigo 1.°: é mais maldosa, mais empafiada e mais besta do que uma gansa; artigo 2.°: quer ser espirituosa; artigo 3.°: é preciso persuadi-la de que é acreditada como ninguém; artigo 4.°: não sabe nada e decide também; artigo 5.°: é preciso aplaudir suas decisões com os pés e as mãos, saltar de alegria, estremecer de admiração: “Como é belo, delicado, bem dito, como é visto com finura, como é sentido com originalidade! Como as mulheres o conseguem? Sem estudo, apenas pela força do instinto, apenas pela luz natural — é um prodígio! E depois há quem diga que a experiência, o estudo, a reflexão, a educação têm algo a ver com isto!” E outras besteiras do mesmo teor; chorar de alegria; dez vezes por dia curvar-se, um joelho dobrado na frente, a outra perna puxada para trás, os braços estendidos para a deusa, procurar seus desejos nos olhos, ficar suspenso aos seus lábios, esperar sua ordem e partir como um corisco. Quem pode sujeitar-se a semelhante papel? Somente o miserável que aí encontra, três ou quatro vezes por semana, com que acalmar a atribulação de seu intestino. Que pensar de outros como Palissot, Fréron, Poinsinet, Baculard, que possuem alguma coisa e cuja baixeza não pode ser desculpada pelo burburinho de um estômago sofredor? EU — Nunca teria acreditado que fôsseis tão difícil. ELE — Não o sou. No começo, via os outros fazerem e fazia como eles, um pouco melhor, porque sou mais francamente desavergonhado, melhor comediante, mais esfomeado e provido de melhores pulmões. Parece que descendo em linha reta do fauno Stentor. E, para me dar uma ideia da força dessa víscera, põe-se a tossir com tamanha violência, que abala os vidros do café e desvia do tabuleiro a atenção dos jogadores. EU — Para que esse talento? ELE — Não adivinhais? EU — Não, sou um tanto limitado. ELE — Imaginai a discussão começada e a vitória incerta. Levanto-me. Desdobro meu trovão e digo: “É como a senhorita afirma. Isto sim é saber julgar! Desafio qualquer espírito brilhante a igualá-la. A expressão é genial”. Mas não se deve aprovar sempre da mesma maneira. Seria monótono, soaria falso, tornar-se-ia insípido. Só se escapa disso pelo raciocínio, pela fecundidade. É preciso preparar e colocar os tons maiores e peremptórios, apanhar no ar a ocasião e o momento. Por exemplo: quando há uma divisão dos sentimentos, a discussão tendo chegado a um grau de extrema violência, ninguém mais se entende, todos falam ao mesmo tempo, é preciso colocar-se a distância, no ângulo do apartamento mais afastado do campo de batalha, preparar a explosão com um longo silêncio e despencar subitamente no meio dos combatentes, como uma bomba. Ninguém melhor do que eu nessa arte. Mas sou realmente surpreendente na oposta: pequenos tons acompanhados de sorriso, uma variedade infinita de expressões aprovadoras. Nessa hora o nariz, a boca, os olhos, a testa entram no jogo. Minhas cadeiras são flexíveis, tenho um jeito especial de contorcer a espinha, abaixar e levantar os ombros, esticar os dedos, inclinar a cabeça, fechar os olhos e fazer uma cara estupefata, como se ouvisse uma voz angélica e divina descida do céu. É o que lisonjeia. Não sei se percebeis a energia dessa última atitude. Não a inventei, mas ninguém me vence em sua execução. Vede, vede. EU — É verdade. Sois único. ELE — Acreditais que haja mulher de miolo mole que resista? EU — Não. É preciso convir que haveis levado ao extremo o talento de criar loucos e de se aviltar. ELE — Todos poderão esforçar-se quanto quiserem, nunca me alcançarão. O melhor deles, Palissot, será sempre e apenas um bom escolar. Mas, se o papel nos diverte no começo, e se desfrutamos algum prazer em gozar por dentro a idiotice daqueles que deleitamos, com o passar do tempo a coisa já não espicaça tanto; e por fim, depois de um certo número de descobertas, somos forçados a nos repetir. O espírito e a arte têm seus limites, menos para Deus e para alguns espíritos raros que veem a estrada alongar-se à medida que avançam. Bouret talvez seja um destes. Alguns de seus traços chegam a produzir em mim — sim, em mim — ideias sublimes. O cãozinho, o Livro da Felicidade, os archotes na estrada de Versalhes — são coisas que me confundem e humilham. Acho que poderia até me enojar do ofício. EU — Que quereis dizer com “o cãozinho”? ELE — Donde vindes, então? Como?! Sério?! Ignorais como esse homem raro se arranjou para separar-se de um cãozinho e prendê-lo a um ministro das Finanças que dele gostava? EU — Ignoro-o, confesso. ELE — Tanto melhor. É uma das coisas mais belas que já se imaginaram. Toda a Europa maravilhou-se. Não houve uma cortesã que não ficasse com inveja. Vós, que não careceis de sagacidade, vejamos como faríeis em seu lugar. Imaginai que Bouret era amado por seu cão; imaginai que a roupagem esquisita do ministro assustava o animalzinho; imaginai que dispunha apenas de oito dias para vencer a dificuldade. É preciso conhecer bem todos os dados do problema para avaliar o mérito da solução. Pois bem! EU — Pois bem, é preciso que vos confesse que, nesse domínio, as coisas mais fáceis me embaraçam. ELE — Escutai (diz-me, dando-me um tapinha no ombro, pois é muito familiar). Escutai e admirai. Mandou confeccionar uma máscara parecida com o ministro. Pede emprestada ao camareiro a toga volumosa. Cobre o rosto com a máscara, veste a toga, chama o cão, acaricia-o, dá-lhe um biscoito. Depois, subitamente, muda de decoração. Já não é mais o ministro. É Bouret que chama o cão e o chicoteia. Em menos de dois ou três dias, com o exercício ininterrupto de manhã à noite, o cão sabe fugir de Bouret, fiscal de impostos, para os braços de Bouret, ministro das Finanças. Mas sou muito bom. Sois profano e não mereceis ser informado a respeito dos milagres que se operam ao vosso lado. EU — Apesar disso, peço-vos: e o livro, os archotes? ELE — Não, não. Dirigi-vos às pedras e elas vos contarão essas coisas. Aproveitai a circunstância que nos aproximou para conhecer coisas que só eu sei. EU — Tendes razão. ELE — Emprestar a toga e a peruca; tinha-me esquecido da peruca do ministro! Fazer uma máscara! O que mais me tonteou foi a tal máscara! E, assim, esse homem goza da mais alta consideração e possui milhões. Há muita cruz de São Luís que não tem o que comer. Então, por que correr atrás da cruz, com o risco de se estropiar, em vez de procurar uma posição sem perigo e cheia de recompensas? Isto sim, é subir na vida! Tais modelos são desencorajadores, fazem a gente apiedar-se de si próprio e entediar-se. A máscara! A máscara! Daria meus dedos para ter inventado a máscara! EU — Com vosso entusiasmo pelas belas coisas e com vosso gênio tão fértil, será que não haveis inventado alguma coisa? ELE — Perdão. Por exemplo, a atitude admirativa da espinha contorcida de que vos falei — considero-a minha, embora possa ser-me contestada por invejosos. Creio que já fora empregada antes, mas quem descobriu como era cômoda para rir por trás do impertinente que se admirava? Tenho mais de cem maneiras de encetar a sedução de uma moça, ao lado de sua mãe, sem que esta se aperceba, e sou mesmo capaz de torná-la cúmplice. Mal havia entrado na carreira e já desprezava as maneiras vulgares de passar um bilhete amoroso; tenho dez meios para fazê-lo ser arrancado de mim, e entre esses meios gabo-me de ter inventado alguns novos. Possuo especialmente o talento para encorajar um rapaz tímido; fiz triunfarem alguns que não tinham espírito nem porte. Se tais coisas fossem escritas, creio que me atribuiriam algum gênio. EU — Dar-vos-iam uma honra bastante singular. ELE — Não duvido. EU — Em vosso lugar, lançaria tais coisas no papel. Seria uma pena que se perdessem. ELE — É verdade, mas não suspeitais como faço pouco caso de métodos e preceitos. Aquele que precisa de um protocolo nunca irá longe. Os gênios leem pouco, praticam muito e se fazem por si próprios. Vede César, Turenne, Vauban, a Marquesa de Tencin, seu irmão, o cardeal, o secretário deste, o Abade Troublet. E Bouret? Quem deu lições a Bouret? Ninguém. A natureza forma os homens raros. Acreditais que a estória da máscara e do cachorro esteja escrita nalgum lugar? EU — Mas, em vossas horas perdidas, quando a angústia de vosso estômago vazio ou a fadiga de vosso estômago sobrecarregado afastam o sono... ELE — Pensarei nisto. É melhor escrever grandes coisas do que executar pequenas. Então a calma se eleva, a imaginação se aquece, se inflama, se expande, enquanto, permanecendo junto à pequena Hus, se retrai espantada com os aplausos que o público tolo se obstina em prodigalizar a essa dengosa Dangeville, tão rasteira ao representar, andando toda curvada sobre o palco; que tem o vezo de olhar insistentemente nos olhos daqueles com quem fala mas que representa por trás do pano; que toma suas próprias caretas por finura e seu trotezinho por graça; a essa Clairon mais magra, mais espalhafatosa, mais estudada, mais engomada do que se poderia supor. A platéia imbecil arrebenta-se em aplausos sem perceber que somos o pelotão das artes recreativas. É verdade que o pelotão engorda dia a dia, mas que importa? E nem percebe que temos a pele mais bela, os olhos mais lindos, o bico mais bonito, poucas entranhas, é verdade, um andar não muito leve, mas que também não é tão desajeitado como se diz. Mas, em troca, não há uma que nos vença nos sentimentos. EU — Como podeis dizer tais coisas? É ironia ou verdade? ELE — O mal é que esse diabo do sentimento fica todo para dentro, não escapa uma faísca para fora. Mas eu que vos falo, eu sei, eu sei bem que ela o tem. Se não é exatamente isso, é qualquer coisa parecida. É preciso ver, quando nos dá na telha, como tratamos os criados, como as camareiras são sopapeadas, como damos pontapés nas sisas desde que nos faltem com o devido respeito. Escutai o que vos digo, é um diabrete, cheio de sentimento e de dignidade... Esta, agora, vos deixou completamente desnorteado, não? EU — Confesso que não consigo distinguir até onde vão vossa boa-fé e vossa maldade. Sou um homem simples. Tende, pois, a bondade de não usar meias palavras. Falai francamente e deixai vossa arte para lá. ELE — Ora, estas coisas que dizemos sobre a Dangeville ou sobre a Clairon são apenas nosso jeito de engambelar a pequena Hus. Não percebestes como entremeamos certas palavras para que um ouvinte como vós logo perceba o que realmente queremos dizer? Consinto que me tomeis por um sabujo, mas não por um tonto, pois só um tonto ou um homem perdido de amores poderia falar a sério dizendo tais impertinências. EU — Mas como se decide dizê-las? ELE — É claro que não é de repente. Chega-se aí bem devagarzinho. Ingenii largitur venter. EU — É preciso estar morto de fome. ELE — É possível. No entanto, por mais fortes que sejam minhas palavras, crede, aqueles a quem são dirigidas estão mais acostumados a ouvi-las do que nós a arriscá-las. EU — Então, há alguém que tenha a coragem de ter a vossa opinião? ELE — Alguém? Que quereis dizer com isto? É o sentimento e a linguagem de toda a sociedade. EU — Neste caso, entre vós, aqueles que não forem grandes sabujos só poderão ser grandes tontos. ELE — Tontos? Aqueles? Pois eu vos juro que há um só e é justamente aquele que nos festeja para que o iludamos. EU — Mas como se deixar iludir tão grosseiramente? Porque, afinal, a superioridade dos talentos da Dangeville e da Clairon é coisa decidida. ELE — Engolimos em grandes sorvos uma mentira que nos lisonjeia; bebemos gota a gota uma verdade que nos amargura. Além disso, assumo um ar tão compenetrado, tão verdadeiro... EU — Entretanto, penso que de vez em quando deveis pecar contra os princípios da arte e que por descuido deixais escapar algumas dessas verdades amargas que ferem, pois, a despeito do papel miserável, abjeto, vil, abominável que fazeis, creio que no fundo tendes a alma delicada. ELE — Eu? De jeito nenhum! O diabo que me carregue se eu souber o que sou no fundo. Em geral, tenho o espírito transparente como cristal e franco como o vime: nunca falso, por pouco que me interesse ser verdadeiro, nunca verdadeiro, por pouco que me interesse ser falso. Digo as coisas que me vêm. Se sensatas, tanto melhor. Se impertinentes, ninguém liga. Uso plenamente minha franqueza. Em toda a minha vida nunca pensei antes de falar, nem falando, nem depois de ter falado. E assim não ofendo ninguém. EU — Porém, foi o que fizestes quando vivíeis com aquela gente honesta, tão bondosa convosco. ELE — Que quereis? Foi uma desgraça, um mau momento, como há muitos na vida. A felicidade é sempre curta. Eu estava muito bem, não podia durar. Como sabeis, vivemos na mais numerosa e seleta companhia. Nossa casa é uma verdadeira escola de humanidade, uma renovação da hospitalidade antiga, Um poeta cai? Lá estamos nós para apanhá-lo e recolhê-lo. Primeiro tivemos Palissot, depois de sua Zara; mais tarde veio Bret, depois do seu Falsos Generosos; todos os músicos decadentes, todos os autores não lidos, todas as atrizes e atores vaiados, um monte de pobres envergonhados, súcia de parasitas que encabeço, bravo chefe de uma tímida tropa. Sou eu que os exorto a comer na primeira vez que vêm. Sou eu que peço bebida para eles. Ocupam tão pouco lugar! Alguns jovens esfarrapados que não sabem onde cair mortos, mas que têm uma bela estampa; outros, celerados que bajulam o patrão e o adormecem, para ir, depois dele, bolinar a patroa. Parecemos alegres, mas no fundo vivemos de mau humor e com muito apetite. Nem os lobos são mais famintos, nem os tigres, mais cruéis. Somos vorazes como lobos depois de um longo inverno. Como tigres, dilaceramos tudo que triunfa. Algumas vezes os arruaceiros Bertin, Monsague e Vilmorien se reúnem em algazarra — aí, sim, é que há um belo fuzuê no viveiro. Quanto bicho triste, frenético, daninho e encolerizado! Só se ouvem os nomes de Buffon, Duclos, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, D’Alembert, Diderot. E Deus sabe acompanhados de que epítetos! Só terá espírito quem for idiota como nós. O plano da comédia Os Filósofos foi concebido aí. A cena do mexeriqueiro foi fornecida por mim, inspirada na Teologia à Moda do Fuso e da Roca. Não fostes poupado, como, aliás, nenhum dos outros. EU — Melhor. Talvez me honrem mais do que mereço. Sentir-me-ia humilhado se aqueles que falam mal de tanta gente boa resolvessem falar bem de mim. ELE — Somos muitos e é preciso que cada um pague sua cota. Depois do sacrifício dos grandes animais imolaremos os outros. EU — Insultar a ciência e a virtude para viver. Como se paga caro o pão... ELE — Já vos disse, somos inconsequentes. Injuriamos todo mundo, mas não afligimos ninguém. Algumas vezes temos entre nós o pesado abade D’Olivet, o gordo abade Leblanc, o hipócrita Batteux. O gordo só fica zangado antes de comer. Depois do café, joga-se numa poltrona, os pés apoiados no batente da lareira, adormece como um papagaio no poleiro. Se a algazarra se torna violenta, boceja, estira os braços, esfrega os olhos e diz: “— Ora, ora. O que é que há? — Trata-se de saber se Piron tem mais espírito do que Voltaire. — Entendamo-nos. Falais de espírito e não de gosto? Porque, em questão de gosto, Piron nunca se engana. — Nunca? — Nunca.” E aí embarcamos numa dissertação sobre o gosto. Nessa hora o patrão faz um gesto, pois em matéria de gosto jacta-se de ter a última palavra. “O gosto... o gosto é uma coisa...” Juro que não sei que coisa dizia que era. Aliás, nem ele sabia. Algumas vezes temos o amigo Robbé. Regala-nos com seus contos cínicos, com os milagres dos convulsionários de que foi testemunha ocular, com alguns cantos de seu poema sobre um assunto que conhece a fundo. Odeio seus versos, mas gosto de ouvi-lo recitá-los: tem o ar de um energúmeno. Todos gritam à sua roda: “Isto sim é que é poeta!” Cá entre nós, sua poesia é uma barulheira, vozerio bárbaro dos habitantes da Torre de Babel. Também vem ver-nos um pobre simplório, de ar rasteiro e besta, mas espirituoso como um demônio e mais malicioso do que um macaco velho. É um desses sujeitos que provocam gracejos e escárnio e que foram feitos por Deus para corrigir as pessoas que julgam pela cara e cujo espelho deveria ensinar-lhes que é tão fácil ser um homem de espírito com cara de trouxa como esconder um trouxa sob uma cara espirituosa. Imolar um bom homem para a diversão dos outros é uma fraqueza bem comum. Sempre chamamos o nosso simplório. É uma peça que pregamos nos recém-chegados e não vi um único que não tivesse caído nela. Várias vezes surpreendi-me com a justeza das observações desse louco sobre os homens e os caracteres. E dei-lhe mostras de meu espanto. ELE — É que se tira partido da má companhia tanto quanto da libertinagem. A perda dos preconceitos reembolsa a perda da inocência. A gente aprende a conhecer bem os perversos porque em sua sociedade o vício se exibe sem máscaras. Além disso, já li um bocado. EU — O que lestes? ELE — Li, leio e releio incessantemente Teofrasto, La Bruyère e Molière. EU — São livros excelentes. ELE — São melhores do que se pensa, mas quem sabe lê-los? EU — Todo mundo, conforme a capacidade de seu espírito. ELE — Quase ninguém. Sabereis dizer o que se procura neles? EU — Diversão e instrução. ELE — Mas que instrução? Este é o ponto. EU — O conhecimento de seus deveres, o amor da virtude e o ódio do vício. ELE — De minha parte, aprendo tudo o que se deve fazer e tudo o que não se deve dizer. Quando leio O Avarento, digo a mim mesmo: “Sê avarento, se quiseres, mas cuida-te para não falares como ele”. Quando leio Tartufo, digo a mim mesmo: “Sê hipócrita, se quiseres, mas não fales como ele. Conserva os vícios que te forem úteis, mas não tenhas nem o tom nem a aparência deles, porque senão te tornarás ridículo”. Para garantir o tom e aparência é preciso conhecê-los. Ora, foram excelentemente pintados por esses autores. Sou eu e permaneço o que sou, mas ajo e falo como convém. Não sou desses que desprezam os moralistas. Aproveita-se muito com eles, sobretudo com aqueles que puseram a moral em ação. O vício fere os homens só de quando em quando. Os sinais aparentes do vício os ferem da manhã à noite. Talvez fosse preferível ser um insolente do que ter sua fisionomia. O insolente de caráter só insulta de tempos em tempos. O insolente de fisionomia insulta sempre. Ademais, não imagineis que eu seja o único leitor de minha espécie. Meu mérito exclusivo consiste em ter feito por sistema, por justeza de espírito, por uma visão razoável e verdadeira, aquilo que a maioria faz por instinto. Por isso as leituras que fazem não os tornam melhores do que eu; permanecem sempre ridículos a despeito deles próprios, enquanto eu o sou somente quando quero e, então, deixo-os muito aquém de mim, pois a arte que me ensina a fugir do ridículo em certas ocasiões é a mesma que, noutras, me ensina a contraí-lo com superioridade. Nesses momentos, lembro-me de tudo que os outros disseram, de tudo que li e acrescento o que sai de meu próprio cabedal, que nesse gênero é surpreendentemente fecundo. EU — Fizestes bem revelando-me esses mistérios, senão julgaria que havíeis caído em contradição. ELE — Não caio nunca, e por uma simples questão de proporção, pois, para uma vez que se deve evitar o ridículo, felizmente há cem outras em que é preciso lançar-se nele. Junto aos grandes não há melhor papel do que o de um louco. Durante muito tempo houve o título de louco do rei. Que eu saiba, nunca houve o de sábio do rei. Sou o louco de Bertin e de muitos outros, o vosso talvez, neste momento. Ou quem sabe se vós sois o meu? Aquele que fosse sábio não teria um louco; portanto, o que tem um louco não é sábio. Ora, se não é sábio talvez seja louco, e talvez, se fosse rei, o louco de seu louco. Além disso, lembrai-vos de que, num assunto tão controvertido como o dos costumes, nada há que seja absoluta, essencial e geralmente verdadeiro ou falso, mas que se deve ser aquilo que o interesse deseja que sejamos: bom ou mau, sábio ou louco, decente ou ridículo, honesto ou vicioso. Se, por acaso, a virtude tivesse conduzido à fortuna, eu teria sido virtuoso ou simulado a virtude como outro qualquer. Quiseram-me ridículo, assim me fiz. Quanto aos vícios; a despesa ficou por conta da natureza. Quando digo vicioso, digo-o apenas para falar vossa língua, pois, se viéssemos a nos explicar, poderia ocorrer que chamásseis vício o que chamo virtude, e virtude o que chamo vício. Temos também em nosso grupo os autores da Ópera Cômica, seus atores e atrizes, e frequentemente seus empresários, Corbi e Moerre. É gente de recursos e provida de méritos superiores. E me esquecia dos grandes críticos literários e toda a súcia de jornalistas — Os Pequenos Cartazes, O Ano Literário, O Censor Hebdomadário. EU — O Ano Literário? O Observador Literário? Não pode ser! Detestam-se! ELE — E verdade, mas os mendigos se reconciliam quando comem na mesma gamela. Maldito Observador Literário, tomara que o diabo o carregue junto com suas folhas! É esse padreco cachorro, avarento, fedorento e usurário, a causa do meu desastre. Ontem apareceu pela primeira vez em nosso horizonte. Chegou naquela hora em que saímos da toca — na hora do jantar. Quando o tempo está ruim, feliz daquele de nós que tem algum vintém no bolso para pagar um fiacre. Feliz daquele que pode caçoar de seu confrade que chega de manhã enlameado até a espinha e molhado até os ossos e volta para casa à noite no mesmo estado. Houve um, já não me lembro qual, que teve uma briga violenta com um saboiano que se pusera à nossa porta. Tinham uma conta-corrente; o credor queria que o devedor a liquidasse, mas este não tinha recursos e, contudo, não podia entrar porque o outro lhe barrava a porta. Serve-se, fazem-se as honras da mesa ao abade, colocado na cabeceira. Entro. Vejo-o. “Como, abade? Presidis?” — digo-lhe. “Hoje está ótimo, mas amanhã descereis um prato, depois de amanhã mais um e assim, de prato em prato, tanto à direita quanto à esquerda, até o lugar que ocupei uma vez antes de vós, Fréion uma vez depois de mim, Palissot uma vez após Dorat, até que permanecereis estacionado ao meu lado, pobre traste como vós, que ‘siedo sempre come un maestoso cazzo fra duoi coglioni’.” O abade, que é um bom sujeito e que leva tudo por bem, põe-se a rir. A senhorita, compenetrada da verdade de minha observação e da justeza da comparação, desata a rir. Todos que estão sentados à direita e à esquerda do abade e que por causa dele haviam baixado de posto põem-se a rir. Todo mundo ri, menos o patrão, que se zanga e me diz coisas que não teriam a menor importância, se estivéssemos sozinhos. “— Rameau, sois um impertinente. — Bem o sei. É por isso que me recebeis. — Um patife. — Como outro qualquer. — Um mendigo. — Estaria aqui se não o fosse? — Eu vos expulsarei. — Depois do jantar irei por minha própria conta. — Assim vos aconselho.” Jantamos. Não perco uma garfada. Depois de ter comido e bebido regaladamente já que as coisas não poderiam melhorar nem piorar e Messer Gaster teria feito o mesmo (é uma personagem que nunca me agastou), tomo minha decisão e disponho-me a ir embora. Havia empenhado minha palavra na frente de muita gente e precisava mantê-la. Passo um tempão a rodar pelo apartamento procurando minha bengala e meu chapéu onde não estão, esperando sempre que o patrão transborde numa nova torrente de injúrias, que alguém interfira e que nos acomodemos à custa de tanta briga. Viro e mexo, pois não tenho peso no coração. O patrão, porém, está mais sombrio que o Apoio de Homero quando arremessava seus dardos contra o exército grego — o gorro ainda mais enfiado do que de costume, passeando de cá para lá, de mão no queixo. A senhorita se aproxima de mim: “— Mas, senhorita, o que há de extraordinário? Fui diferente do que costumo ser? — Quero que ele saia. — Sairei, não fiz asneira. — Perdoai; convida-se o senhor abade e... — Asneira fez ele convidando o abade e recebendo a mim e a outros biltres como eu... — Vamos, meu pequeno Rameau. Vamos. É preciso pedir perdão ao senhor abade. — Não tenho o que fazer com seu perdão. — Vamos, vamos, assim tudo se acalmará...” Toma-me pela mão, arrasta-me até a poltrona do abade. Estendo os braços, contemplo o abade com cara de admiração, pois quem já pediu perdão a um abade? “Abade”, digo-lhe, “tudo isso é bastante ridículo, não é mesmo?” E logo me ponho a rir e o abade também. Eis-me desculpado deste lado. Mas ainda é preciso abordar o outro e o que tenho a lhe dizer já é outra conversa. Não me lembro direito como foi que inventei minha desculpa. “Senhor, aqui está o louco... — Há muito que me aborrece, não quero mais ouvir falar. — Estais desolado. — Sim, muito desolado. — Isso não acontecerá mais. — O primeiro patife que...” Não sei se está num desses dias de mau humor, nos quais a senhorita teme se aproximar dele e só ousa tocá-lo com luvas de veludo, ou se ouve mal o que lhe digo, ou se me exprimo mal: foi pior a emenda do que o soneto. Que diabo! Então não me conhece? Não sabe que sou como criança e que de vez em quando deixo escapar tudo por baixo? E depois creio, Deus me perdoe, que não teria um momento de sossego. Gastariam um pagode de aço de tanto puxar o cordel, da manhã à noite, da noite à manhã. É preciso que eu os desentedie, é a condição, mas é preciso que me divirta algumas vezes. No meio dessa embrulhada, um pensamento funesto passou-me pela cabeça. Um pensamento que me encheu de arrogância, orgulho e insolência. Pensei que não poderiam passar sem mim, que era um homem indispensável. EU — Sim, creio que lhes sois muito útil, mas que eles vos são ainda mais. Não vos será fácil encontrar outra casa tão boa, enquanto eles encontrarão cem loucos para um que lhes falte. ELE — Cem loucos como eu? Senhor filósofo, não sou tão comum. Encontrarão cem loucos rasteiros. A tolice é mais difícil do que a virtude ou o talento. Sou raro em minha espécie; sim, muito raro. Que fazem, agora que não me têm? Entediam-se como cães. Sou um saco inesgotável de impertinências. A cada instante eu tinha uma saída que os fazia rir até as lágrimas. Para eles, eu era o Hospício inteiro. EU — Também tínheis cama, mesa, roupa, sapatos e gorjeta mensal. ELE — Eis o lado bom, o lucro. Mas, e as tarefas? Delas nada dizeis. Se havia rumor de uma nova peça, fosse qual fosse o tempo, era preciso fuçar em todos os sótãos de Paris até encontrar o autor; arranjar a leitura da obra e insinuar habilmente que havia um papel que poderia ser maravilhosamente representado por alguém de minhas relações. “— E por quem, fazei o favor? — Por quem? Bela pergunta! Pela graça, gentileza e fineza! — Quereis dizer, a senhorita Dangeville? Por acaso a conheceis? — Sim, um pouco, mas não se trata dela. — De quem, então?” Eu dizia o nome baixinho. “— Ela?! — Sim, ela”, repetia um pouco envergonhado, pois algumas vezes tenho pudor, e quando o nome era pronunciado precisava-se ver a cara do poeta encompridando, ou, então, sua explosão de riso. Entretanto, bom grado, mau grado, era preciso que eu levasse o homem para jantar, e ele, temeroso de empenhar-se, carranqueava, agradecia. Era preciso ver como eu era tratado se mal sucedido em minha negociação: era um rústico, um tolo, um bronco, um imprestável que não valia o copo de vinho que me davam para beber. Era ainda pior quando a peça chegava a ser representada, pois, em meio às vaias de um público que julga bem, digam o que disserem, era preciso intrepidamente fazer com que ouvissem meu aplauso, os estalidos de minhas mãos solitárias, atrair os olhares para mim, roubar à atriz os assobios, e ouvir cochicharem do meu lado: “É um criado disfarçado daquele que dorme com ela. Afinal, o sem-vergonha não vai ficar quieto?” Ignora-se o que possa levar a isso; crê-se que é a inépcia, quando é um motivo que desculpa tudo. EU — Até a infração das leis civis. ELE — Por fim, acabei conhecido e dizia-se: “Ora, é Rameau”. Meu recurso era lançar algumas palavras irônicas que salvassem do ridículo meu aplauso solitário e mal interpretado. Deveis admitir que é preciso um forte interesse para desafiar assim o público reunido, e que cada uma dessas estopadas valia mais do que uma moedinha. EU — Divíeis fazer com que vos dessem mão forte. ELE — Também acontecia e eu tirava bom proveito. Antes de ir ao lugar do suplício entupia a memória com os trechos brilhantes onde era preciso dar o tom. Se por acaso me esquecesse ou me enganasse, na volta tremia. Não podeis imaginar o rebuliço! E, depois, havia em casa uma matilha de cães para cuidar. É bem verdade que estupidamente eu me impusera essa tarefa. E gatos cuja superintendência eu exercia. Ficava todo contente se Micou me favorecia com uma unhada que rasgava meu punho ou dilacerava minha mão. Criquete está sujeita a cólicas — sou eu que esfrego sua barriga. Antigamente a senhorita sofria de gases, hoje são os nervos. Não falo de outras indisposições leves de que não se tem acanhamento em minha frente. Aliás, nunca pretendi constranger alguém. Li, não sei onde, que um príncipe cognominado o Grande às vezes passava horas debruçado sobre o encosto da privada de sua amante. Com os familiares a gente fica à vontade e nesses dias eu era o mais íntimo de todos. Sou o apóstolo da familiaridade e do desembaraço. Eu lhes dava o exemplo sem que se formalizassem — bastava que me soltassem. Esbocei o patrão. A senhorita começa a tornar-se enfadonha. É preciso ouvir as belas estórias que o pessoal inventa a seu respeito. EU — E participais disso? ELE — Por que não? EU — Porque é indecente ridicularizar seus benfeitores. ELE — Mas não é ainda pior usar as benfeitorias para aviltar o protegido? EU — Mas, se o protegido não fosse vil por si próprio, o protetor não teria essa autoridade. ELE — Mas, se as personagens não fossem ridículas por si próprias, não se inventariam boas estórias a seu respeito. E, depois, que culpa tenho eu se foram traídos e achincalhados desde que se acanalharam? Quando se decide viver com gente de minha laia e se tem senso comum deve-se esperar muitas negruras. Quando nos recebem já não sabem que somos almas interesseiras, vis e pérfidas? Se nos conhecem, vai tudo muito bem. Há um pacto tácito que nos beneficiará e cedo ou tarde devolveremos com um mal o bem que nos tiverem feito. Não é um pacto deste que subsiste entre um homem e seu macaco ou seu papagaio? Brun grita em altos brados que Palissot escreveu copias contra ele. Palissot deve tê-las escrito e a culpa é de Brun. Poinsinet grita em altos brados que Palissot jogou em suas costas as copias que fizera contra Brun. Palissot deve ter jogado nas costas de Poinsinet as copias que fizera contra Brun e a culpa é de Poinsinet. O pequeno Abade Rey grita em altos brados que seu amigo Palissot surrupiou-lhe a amante a quem o apresentara: ora, não se deve introduzir um Palissot em casa de uma amante, a menos que se tenha decidido perdê-la. Palissot cumpriu seu dever e a culpa é do Abade Rey. O livreiro David grita em altos brados que seu associado Palissot dormiu ou quis dormir com sua mulher. Que Palissot tenha ou não dormido com a mulher do livreiro, o que é difícil de decidir, pois a mulher deve ter negado o que acontecera e Palissot deve ter sugerido o que não acontecera. Seja lá como for, Palissot executou seu papel e a culpa é de David e sua mulher. Que Helvetius grite em altos brados que Palissot o coloca em cena como um homem desonesto, depois de ter-lhe emprestado dinheiro para cuidar da saúde, vestir-se e nutrir-se, é esperar do homem mais do que prometia. Como esperar outra coisa de um homem enxovalhado por todo tipo de infâmia; que como passatempo levou um amigo a abjurar a religião; que se apossa dos bens de seus associados; que não tem fé, nem lei, nem sentimento; que anda de déu em déu por fás e nefas; que conta os dias por suas perversidades; que numa peça colocou a si próprio como personagem, exibindo-se como o mais perigoso dos malandros, numa impudência inédita, sem exemplo no passado, no presente e no porvir? Não, a culpa não é de Palissot, mas de Helvetius. Se se leva um jovem provinciano ao viveiro de Versalhes, e tolamente resolve passar a mão por dentro das grades da jaula do tigre ou da pantera, deixando o braço na goela do bicho feroz, de quem é a culpa? Tudo isto está escrito no pacto tácito, e pior para aquele que o ignora ou esquece. Por esse pacto universal e sagrado eu poderia justificar muita gente acusada de malevolência, quando deveríamos acusar a nós próprios de idiotice! Sim, gorda condessa, é nossa culpa reunir à vossa volta gente que os de vossa posição chamam de insignificantes; é nossa culpa se os espécimes vos fazem vilanias e vos obrigam a fazê-las também, expondo-vos ao ressentimento das pessoas honestas. Estas fazem o que devem e os espécimes também e é vossa culpa se os acolheis. Se Bertinhus e sua amante vivessem pacatamente, se a honestidade de seus caracteres os tivesse feito relacionar-se com gente honesta, se tivessem chamado à sua volta homens de talento, conhecidos na sociedade por sua virtude, se tivessem reservado uma pequena companhia bem esclarecida e escolhido as horas de distração que roubariam à doce convivência amorosa, onde se falariam no silêncio do retiro, acreditaríeis que se inventariam boas ou más estórias sobre eles? O que lhes aconteceu? O que mereceram. Foram punidos por sua imprudência. E a Providência destinou-nos desde toda a eternidade para justiçarmos os Bertin de hoje, como destinar nossos sobrinhos para justiçarem os Monsauges e os Bertin por vir. Mas, enquanto executamos seus justos decretos sobre a idiotice, vós, que nos descreveis como somos, executais seus justos decretos sobre nós. O que pensaríeis de nós se, com nossos costumes vergonhosos, pretendêssemos gozar da consideração pública? Que insensatos somos! E serão sábios aqueles que esperam procedimentos honestos de gente nascida viciosa, de caráter vil e baixo? Tudo tem seu preço verdadeiro neste mundo. Há dois procuradores gerais à vossa porta: um castiga os delitos contra a sociedade; o outro é a própria natureza, que conhece todos os vícios que a lei não alcança. Entregais-vos à orgia com mulheres — ficareis hidrópico. Sois devasso — ficareis tuberculoso. Abris vossas portas aos bisbilhoteiros e viveis com eles — sereis traído, zombado e desprezado. O mais fácil é resignar-se à equidade desse julgamento e dizer a si próprio: bem feito. Dar a volta por cima, emendar-se ou permanecer o que se é, mas sob as condições acima. EU — Tendes razão. ELE — Voltando ao assunto das estórias desagradáveis. Não inventei nenhuma. Sou um sim-simples leva e traz. Dizem que há alguns dias houve um rebuliço dos infernos; todas as campainhas dispararam, havia gritos entrecortados e abafados de um homem se asfixiando: “Socorro, socorro; sufoco, morro...” Os gritos partiam do apartamento do patrão. Chega-se, socorre-se o homem. Nossa gorda criatura, desvairada, fora de si, cega, como acontece nessas horas, continuava a pressioná-lo com seu movimento, elevava-se sobre as duas mãos e deixava cair sobre as sisas um peso de duzentas a trezentas libras, excitada pelo furor provocado pelo prazer. Foi um custo tirá-la de cima do coitado. Que raios de fantasia há de ter um martelinho metendo-se sob uma pesada bigorna? EU — Sois obsceno. Mudemos de conversa. Desde que começamos a prosear, tenho uma pergunta na ponta da língua. ELE — E por que a segurastes tanto? EU — Temia uma indiscrição. ELE — Depois do que acabo de vos revelar, ignoro que segredo poderia ter para vós. EU — Não duvidais de qual possa ser meu julgamento sobre vosso caráter? ELE — De jeito nenhum. Aos vossos olhos sou um ser muito abjeto, muito desprezível — algumas vezes vejo-me assim, mas raramente. Na maioria das vezes felicito-me de meus vícios em vez de censurar-me por eles. Sois mais constante em vosso desprezo. EU — É verdade. Mas por que exibir-me toda vossa torpeza? ELE — Primeiro, porque conheceis um bocado dela; segundo, porque consequentemente via mais lucro do que perda contando-vos o resto. EU — Como? Não entendi. ELE — Se há um gênero onde é importante ser sublime, este gênero é o mal. Cospe-se num pequeno gatuno, mas não é possível recusar certa consideração por um grande criminoso: sua coragem espanta, sua atrocidade arrepia. Estima-se muito a coerência do caráter. EU — Mas não possuis ainda essa estimável coerência do caráter. De vez em quando noto que vossos princípios vacilam. Não se tem certeza de que vossa maldade provenha da natureza ou do estudo, nem de que este vos tenha levado tão longe quanto possível. ELE — Concordo, mas fiz o melhor que pude. Não tive a modéstia de reconhecer que há outros superiores a mim? Não vos falei de Bouret com profunda admiração? A meu ver, Bouret é o maior homem do mundo. EU — Mas, imediatamente depois de Bouret, sois vós? ELE — Não. EU — Então é Palissot? ELE — Palissot, mas não sozinho. EU — E quem pode ser digno de ocupar o segundo lugar junto com ele? ELE — O renegado de Avignon. EU — Nunca ouvi falar de um renegado de Avignon, mas deve ser um homem espantoso. ELE — Se é. EU — A história das grandes personagens sempre me interessou. ELE — Acredito. O tal renegado vivia em casa de um desses bons e honestos descendentes de Abraão, prometidos ao pai dos crentes em número igual ao das estrelas. EU — Em casa de um judeu? ELE — Em casa de um judeu, em quem despertara inicialmente a comiseração, depois a benevolência e por fim a mais completa confiança. Assim acontece sempre: contamos tanto com nossas benfeitorias, que raramente escondemos nosso segredo àquele que cumulamos com nossas bondades. Como impedir que haja ingratos, se expomos o homem à tentação de sê-lo impunemente? Reflexão justa que nosso judeu não fez. Confiou, então, ao renegado que em sã consciência não podia comer carne de porco. Vereis o partido que um espírito fecundo soube tirar dessa confissão. Passaram-se alguns meses, durante os quais o renegado redobrou o apego do judeu. Quando acreditou que este já estivesse bem impressionado, bem cativado, bem convencido de que com seus cuidados adquirira um amigo melhor do que qualquer outro em todas as tribos de Israel... Admirai a circunspecção do homem! Não se apressa, deixa o fruto amadurecer antes de sacudir o galho — muito ardor teria posto a perder o projeto. Geralmente a grandeza de caráter resulta do equilíbrio natural de várias qualidades opostas. EU — Ei! Deixai para lá vossas reflexões e continuai vossa estória. ELE — Não é possível. Há dias em que é preciso que eu reflita. É uma doença cujo curso não deve ser impedido. Onde estava? EU — Na intimidade bem estabelecida entre o judeu e o renegado. ELE — Então, a fruta ficou madura... Mas não me escutais? No que pensais? EU — Nas vossas mudanças de tom. Ora alto, ora baixo. ELE — Como o tom de um homem vicioso poderia ser uno? Uma noite, chega à casa do amigo, com ar assustado, a voz entrecortada, o rosto pálido como a morte, trêmulo da cabeça aos pés. “— Que tendes? — Estamos perdidos. — Perdidos? Como? — Perdidos, repito, perdidos e sem salvação. — Explicai-vos... — Um momento, deixai-me recompor-me do susto. — Vamos, tranquilizai-vos.” Em vez disso, o judeu deveria ter-lhe dito: “És um velhaco rematado, não sei o que tens a contar-me, mas sei que és um velhaco rematado. Bancas o aterrorizado”. EU — E por que deveria falar-lhe assim? ELE — Porque era um falso e se excedia — está bem claro para mim. E basta de interrupções. “Estamos perdidos, perdidos sem salvação.” Então não percebeis a afetação destes “perdidos” repetidos? “Um traidor acusou-nos à Santa Inquisição: vós, como judeu, eu, como renegado, como infame renegado.” E o traidor nem enrubesceu usando expressões tão odiosas. É preciso mais do que coragem para chamar-se pelo próprio nome. Não podeis imaginar como custa chegar a isso. EU — Não, certamente. Mas, e o infame renegado? ELE — É falso, mas sua falsidade é hábil. O judeu se assusta, arranca as barbas, rola pelo chão, vê os esbirros à porta, vê-se enfarpelado num sambenito, vê seu auto-da-fé preparado. “— Meu amigo, meu terno amigo, meu único amigo, que fazer? — Que fazer? Mostrar-se, fingir grande segurança, conduzir-se como de hábito. O procedimento desse tribunal é secreto, mas lento. É preciso usar seus prazos para vender tudo. Alugarei um barco ou mandarei um terceiro alugar; sim, um terceiro será melhor; colocaremos ali vossa fortuna, pois é esta que querem, e iremos juntos procurar sob outro céu a liberdade para servir nosso Deus e seguir em segurança a lei de Abraão e de nossa consciência. Na situação perigosa em que nos achamos, o mais importante é não cometer imprudências.” Dito e feito. O barco é alugado, provido com víveres e marinheiros. A fortuna do judeu vai para bordo. Amanhã, ao alvorecer, soltarão as velas. Podem cear alegremente e dormir com segurança: amanhã escaparão dos perseguidores. Durante a noite, o renegado se levanta, tira a carteira, a bolsa e as joias do judeu, mete-se a bordo e lá se vai. E pensais que é tudo? Bom, vejo que não percebeis o alcance da trama. Quando me contaram a estória, adivinhei aquilo que agora calei a fim de avaliar vossa sagacidade. Ainda bem que sois um homem honesto, caso contrário serieis um pobre vagabundo. Até aqui o renegado é apenas um malandro desprezível com quem nenhum de nós quer parecer-se. O sublime em sua maldade está em ter sido o próprio delator de seu bom amigo israelita, aprisionado pela Santa Inquisição ao despertar, e que dias depois virou um belo fogo de artifício. Foi assim que o renegado se tornou o tranquilo possuidor da fortuna do descendente maldito daqueles que crucificaram Nosso Senhor. EU — Não sei o que me horroriza mais: se a perfídia de vosso renegado ou o tom em que falais dele. ELE — Mas era o que eu vos dizia! A atrocidade da ação vos arrasta para além do desprezo e é a razão de minha sinceridade. Quis que conhecêsseis quanto me sobressaio em minha arte, arrancar-vos a confissão de que sou pelo menos original em meu aviltamento, obrigar-vos a colocar-me na linhagem dos grandes infames e gritar: Vivat Mascarillus, fourbum imperator! Vamos, alegria, meu caro senhor filósofo! Coro! Vivat Mascarillus, fourbum imperator! E começa um canto em fuga muito curioso. Ora a melodia é grave e cheia de majestade, ora leve e folgazã. Num momento imita o baixo, num outro o tenor. Com o braço e o pescoço espichados indica-me os sustenidos. Executa e compõe por si próprio um canto de triunfo. Sem dúvida, entende mais de boa música do que de bons costumes. Quanto a mim, não sabia se deveria ficar ou fugir, rir ou irar-me. Fiquei. Tinha o propósito de desviar a conversa para algum assunto que expulsasse o horror que invadia minha alma. Começava a suportar com dificuldade a presença de um homem que discutia uma ação horrível, uma prevaricação execrável como um especialista em pintura ou poesia examina as belezas de uma obra de gosto, ou como um moralista ou historiador releva e ilumina uma ação heroica. Tornei-me sombrio malgrado eu próprio. Percebeu e disse-me: ELE — Que tendes? Estais mal? EU — Um pouco, mas passará. ELE — Tendes o ar inquieto de um homem atormentado por alguma ideia desagradável. EU — É isso. Por um instante permanecemos em silêncio, enquanto passeia assobiando e cantando. Para trazê-lo de volta ao seu talento, digo-lhe: EU — Que fazeis no momento? ELE — Nada. EU — É fatigante. ELE — Como se já não fosse suficientemente idiota, ainda fui ouvir a música de Douni e de nossos outros jovens fazedores. Isto acabou comigo. EU — Aprovais, então, esse gênero? ELE — Sem dúvida. EU — E encontrais beleza nesses novos cantos? ELE — Se encontro? Raios me partam! Como é declamado! Que verdade! Que expressão! EU — O modelo de toda arte imitativa encontra-se na natureza. Qual o modelo de um músico quando compõe um canto? ELE — Por que não começar mais de cima? O que é o canto? EU — Confessarei que a questão está acima de minhas forças. Somos todos assim: temos na memória somente palavras que cremos compreender por seu uso frequente e por sua aplicação correta; mas no espírito há somente noções vagas. Quando pronuncio o termo canto, não tenho uma noção mais clara do que vós e os de vossa laia ao pronunciardes os termos reputação, censura, honra, vício, virtude, pudor, decência, vergonha, ridículo. ELE — Por meio da voz ou do instrumento, o canto é uma imitação sonora de ruídos físicos e dos acentos da paixão inventada pela arte ou inspirada pela natureza, conforme vos agrade. E vede que, mudando aqui e acolá o que for preciso, tem-se a definição conveniente da pintura, da eloquência, da escultura e da poesia. Voltando à vossa questão. Qual o modelo do músico ou do canto? A declamação, se o modelo for um vivente ou um pensante. O ruído, se inanimado. A declamação deve ser considerada como uma linha e o canto como outra que serpenteia sobre a primeira. Quanto mais forte e verdadeira a declamação tanto mais o canto que a ela se conforma cortá-la-á em numerosos pontos e será mais verdadeiro. Quanto mais verdadeiro o canto, mais belo. Foi o que sentiram muito bem nossos jovens músicos. Quando se ouve “Sou um pobre diabo”, crê-se reconhecer o lamento de um avaro. Se não cantasse, falaria no mesmo tom à terra quando lhe confia seu ouro e lhe diz: “Ó terra, recebe meu tesouro”. E a menina que sente o coração palpitante, enrubescida e perturbada, suplicando ao seu senhor que a deixe partir, poderia exprimir-se de outro modo? Há nessas obras todo tipo de caracteres, uma variedade infinita de declamações. É sublime, sou eu que vos digo. Ide, ide ouvir o trecho em que o rapaz, sentindo-se morrer, grita: “Vai-se meu coração”. Escutai o canto, escutai a sinfonia e depois me direis qual a diferença entre as verdadeiras vozes de um moribundo e a forma desse canto. Vereis se a linha da melodia não coincide inteiramente com a da declamação. Não vos falo do compasso, também uma das condições do canto. Atenho-me à expressão, e nada mais evidente do que a seguinte passagem que li em algum lugar: Musicis seminarium accentus — a música é a sementeira da melodia. Por aí podeis julgar a dificuldade e a importância de saber compor um bom recitativo. Não há uma bela ária que não permita um belo recitativo, e nenhum recitativo de que um homem hábil não consiga tirar uma bela ária. Não quero assegurar que quem recita bem cantará bem, mas ficaria surpreso se quem canta bem não souber recitar bem. Podeis crer, tudo que vos disse é verdadeiro. EU — Não pediria outra coisa, mas há um pequeno inconveniente. ELE — Qual? EU — Se essa música for sublime, então a do divino Lúlio, a de Campra, Destouches, Mouret, a do querido tio devem ser um pouco rasteiras. ELE — (Chegando perto de meu ouvido.) Não gostaria de ser ouvido, pois há muita gente que me conhece. Mas é mesmo. Não que eu me preocupe com o caro tio, visto que me custa caro. É uma pedra. Poderia ver-me de língua de fora que não me daria um copo de água. Mas, faça quantas oitavas ou sétimas quiser, faça “la Ia la ra, tra tralalalá” quanto quiser, numa balbúrdia dos diabos; nunca será aceito por aqueles que começam a entender do riscado e que não tomam ruído por música. Dever-se-ia proibir com uma ordem policial que qualquer pessoa, de qualquer posição ou condição social, cantasse o Stabat de Pergolese. Palavra, esses malditos palhaços, com suas Serva Amante, Tracollo, nos deram um rude pontapé na bunda. Outrora, um Tancredo, uma Isséia, uma Europa Galante, as Índias, Castor, Talentos Líricos ficavam cinco ou seis meses nos teatros. Arrnida teve representações infindáveis. Atualmente uns caem sobre os outros como um castelo de cartas. Rebel e Francoeur deitam azeite na fogueira. Dizem que está tudo perdido, que estão arruinados e que, se a canalha de saltimbancos for tolerada por mais tempo, a música nacional levará a breca, restando à Academia Real do beco-sem-saída o trabalho de fechar as portas. Há alguma verdade nisso. As velhas perucas que há trinta ou quarenta anos baixam aí todas as sextas-feiras não se divertem mais — entediam-se e bocejam sem saber por quê. Mesmo que perguntassem, não saberiam responder. Ah! Se me perguntassem... A predição de Douni cumprir-se-á. Do jeito que a coisa vai, quero morrer se em quatro ou cinco anos ainda houver um gato pingado no célebre beco. Os coitados renunciaram às suas próprias sinfonias para executar as italianas. Pensaram que poderiam entregar os ouvidos a ela sem consequências para sua música vocal, como se a sinfonia não estivesse para o canto (com um pouco de libertinagem inspirada pela extensão do instrumento e mobilidade dos dedos) como o canto está para a declamação real. Como se o violino não fosse o imitador do cantor, que um dia, quando o difícil substituir o belo, se tornará o imitador do violino. O primeiro que executou Locatelli foi o apóstolo da nova música. Vão cantar noutra freguesia! Vão dizer isso a quem quiserem, mas não a mim! Irão acostumar-nos pelo canto, voz e instrumentos com a imitação dos tons da paixão ou dos fenômenos da natureza, objetos da música, e, no entanto, conservaremos nosso gosto pelos voos, lances, glórias, triunfos, vitórias? Ora, vão ver se estou na esquina! Imaginaram que chorariam nas cenas de tragédia e ririam nas de comédia musicada; que trariam aos ouvidos as inflexões de furor, ódio, ciúme, das verdadeiras queixas de amor, as ironias e as graças do teatro italiano e francês, e no entanto permaneceriam admiradores de Ragonda e Plateia. Eu vos respondo, seus palermas, que os coitados que imaginaram essa salada musical logo sentiriam com que facilidade, com que flexibilidade e doçura a harmonia, a prosódia, as elipses e inversões da língua italiana se prestam à arte, ao movimento, à expressão, às voltas do canto e ao valor dos sons. E, assim, os coitados continuariam a ignorar como a sua é rígida, surda, pesada, pedante e monótona. Claro! Claro! Persuadiram-se de que, depois de haver misturado suas lágrimas com o pranto de uma mãe desolada com a morte do filho, ou tremido com a ordem de assassinato ditada por um tirano, não se entediariam com sua própria féerie, sua insípida mitologia, seus pequenos madrigais adocicados que assinalam mais a miséria da arte que os aceita do que o mau gosto do poeta que os compõe. Pobres coitados, não é possível. O verdadeiro, o bom e o belo têm seus direitos. Podemos contestá-los, mas, por fim, passamos a admirá-los. O que não estiver cunhado nesses metais pode ser admirado durante certo tempo, mas depois acabamos bocejando. Bocejai, meus caros senhores! Bocejai sem cerimônia! À vontade! O império da natureza e de minha trindade, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão jamais, firma-se suavemente — o verdadeiro, o Pai que engendra o bom, o Filho, donde procede o belo, o Espírito Santo. O deus estrangeiro coloca-se humildemente ao lado do ídolo do país. Fortifica-se pouco a pouco. Um belo dia, dá uma cotovelada em seu companheiro e, catapum!, lá vai o ídolo abaixo. Parece que foi assim que os jesuítas implantaram o cristianismo na China e nas Índias. E os jansenistas podem esbravejar à vontade: em minha opinião, esse método, que atinge o alvo sem alarde, sem derramamento de sangue, sem mártires e sem arrancar um fio de cabelo, é o melhor. EU — O que dizeis chega a ser razoável. ELE — Razoável? Ótimo! O diabo que me carregue se me empenhei nisso. Vou dizendo como me dá na telha. Sou como os músicos do teco na ocasião em que meu tio apareceu. Acerto na mosca porque o filho de um carvoeiro sempre falará melhor de seu ofício do que uma academia inteira ou todos os Duhamel do mundo... E novamente começou a passear, esgoelando-se numa ária de A Ilha dos Loucos, e depois numa de O Pintor Amoroso por seu Modelo, e noutra de O Marechal Ferrant. De vez em quando grita levantando as mãos e os olhos para o céu: “Macacos me mordam! Então isso é bonito? Como alguém pode carregar um par de orelhas na cabeça e ainda perguntar se é bonito?” Entra em transe e começa a cantar em voz baixa. Eleva o tom à medida que se apaixona. Gesticula, careteia, contorce o corpo. Digo para mim mesmo: “Perde a cabeça outra vez. Uma nova cena está a caminho”. Com efeito, lá vai ele num novo lance dramático: “Sou um pobre miserável... Monsenhor, monsenhor, deixai me partir... Ó terra, recebe meu ouro, conserva bem o meu tesouro... Minh’alma, minh’alma, minha vida! Ó terra!... Lá vem o amiguinho, lá vem o amiguinho... Aspettare e non venire... A Zerbina penserete... Sempre in contrasti con te si sta...” Junta e embaralha trinta árias italianas, francesas, trágicas, cômicas, de todo tipo. Ora a voz de baixo descendo até os infernos, ora esganiçando como um falsete, rasga o alto das árias, imitando as diferentes personagens cantoras pelo andar, porte e gesto — sucessivamente furioso, abrandado, imperioso, gozador. Agora uma moça que chora — imita todos os dengos. Depois, vira padre, rei, tirano. Ameaça, comanda, transporta-se. Agora é escravo e obedece. Apazigua-se, desola-se, queixa-se, ri. Nunca desafina. Não perde o tom, o compasso, o sentido das palavras e o caráter da ária. Todos os empurradores de pauzinhos deixam os tabuleiros e o rodeiam. As janelas do café ficam lotadas com os passantes que param por causa do barulho. Estouram de rir. O teto parece vir abaixo. Mas ele não percebe coisa alguma. Continua presa de uma alienação profunda, de um entusiasmo tão próximo da loucura, que não é certo que volte a si e que talvez seja preciso jogá-lo numa carruagem e levá-lo direto para o hospício. Cantando um fragmento das Lamentações de Ioumelli, repete os mais belos trechos com precisão, verdade e calor incríveis. Rega com uma torrente de lágrimas o belo recitativo onde o profeta pinta a desolação de Jerusalém. A emoção ganha a sala; todos choram. Há tudo na voz e na fisionomia de Rameau: a delicadeza do canto, a força da expressão e a dor. Insiste nos trechos em que o músico se revela mestre. Deixa a parte de canto pela dos instrumentos e volta subitamente à primeira, entrelaçando-as para conservar a ligação e a unidade do todo. Apossa-se de nossas almas, deixando-as suspensas na situação mais estranha que já vivi... Admiro-o? Sim, eu o admiro! Estou cheio de piedade? Sim, estou cheio de piedade. E, no entanto, certo ridículo mescla-se nesses sentimentos desnaturando-os. Mas também vós haveríeis de morrer de rir ao vê-lo remedar os diferentes instrumentos. Bochechas cheias e estufadas, som rouco e sombrio: são as trompas e os fagotes. Som explosivo e anasalado: eis os oboés. A voz se precipita numa incrível rapidez: são os instrumentos de corda com seus sons bem aproximados. Assobia: são os flautins. Arrulha: são as flautas. Gritando, cantando, saltando como um condenado, representa sozinho os dançarinos, as dançarinas, os cantores, as cantoras, toda a orquestra, um teatro lírico inteiro, dividindo-se em vinte e três papéis diferentes. Corre, para como um iluminado, os olhos faiscantes, a boca espumante. Faz um calor infernal e o suor, acompanhando as rugas da testa e descendo por suas faces, mistura-se com o pó de seus cabelos, jorra e sulca a gola de seu casaco. O que não faz? Chora, ri, suspira, olha enternecido, tranquilo ou furioso. É uma mulher que se esvai de dor; um desgraçado abandonado ao desespero; um templo que se ergue; pássaros silentes à hora do crepúsculo; águas murmurejantes a escoar num lugar solitário e fresco ou a despencar torrencialmente do alto duma montanha; um temporal, uma tempestade, queixume dos que vão perecer mesclado ao assobio dos ventos e ao estrondo do trovão; a noite com suas trevas, a sombra e o silêncio, pois o próprio silêncio pode ser descrito pelos sons. Sua cabeça está longe dali, perdida. Esgotado de fadiga, como um homem que sai de um sono profundo ou de um longo devaneio, permanece imóvel, estúpido, surpreso. Olha à volta como um homem que se extraviou e procura reconhecer onde se acha. Espera o retorno das forças e dos espíritos. Maquinalmente enxuga o rosto. Como alguém que ao despertar visse seu leito rodeado de muita gente, num total esquecimento ou numa profunda ignorância do que teria feito, exclama: “Ora, senhores! O que há? Por que os risos e a surpresa? O que há?” Em seguida, acrescenta: “Eis o que se deve chamar de música e de músico! Entretanto, senhores, não se devem desprezar certos trechos de Lúlio. Desafio quem julgue fazer melhor e sem mudar as palavras a cena ‘Ah! eu te esperarei’. Também não se devem desprezar certos trechos de Campra, as árias para violino de meu tio, bem como suas gavotas, entradas de soldados, padres, sacrificadores... ‘Pálidos archotes, noite mais tenebrosa do que as trevas... Deus do Tártaro, Deus do Esquecimento...’” Emposta a voz, sustenta os sons — os vizinhos metem-se nas janelas e nós metemos os dedos nos ouvidos. Acrescenta: “Para isto é mister pulmão, um grande órgão, um volume de ar. Mas ontem assim, hoje assado. Vão-se os anéis e também os dedos. Ainda não sabem o que devem pôr em música e, consequentemente, o que convém ao músico. A poesia lírica ainda está para nascer. Mas conseguirão. De tanto ouvir Pergolese, Saxon, Terradoglias, Trasetta e outros, e de tanto ler Metastas, terão que conseguir”. EU — Como? Quinault, La Motte, Fontenelle não compreenderam nada? ELE — Não, no tocante ao estilo novo. Não há seis versos seguidos em seus poemas encantadores que possam ser musicados. São sentenças engenhosas, madrigais leves, ternos e delicados, mas, para avaliar como são incapazes de ajudar nossa arte, basta mandar recitar um deles, mesmo o mais violento como o de Demóstenes — vereis como são frios, lânguidos e monótonos. Neles não há o que sirva como modelo para o canto. Preferia ter que musicar as Máximas de La Rochefoucauld ou os Pensamentos de Pascal. O grito animal da paixão deve ditar a linha que nos convém. É preciso que as expressões fiquem prensadas umas nas outras; que seu sentido fique cortado, suspenso; que a frase seja curta; que o músico possa dispor do todo e de cada parte, omitir uma palavra ou repeti-la, acrescentar uma que falte, virá-la e revirá-la como um pólipo, sem destruí-la. Tudo isso dificulta a poesia lírica francesa quando comparada com a de línguas que por si próprias já apresentam todas essas vantagens... “Bárbaro, cruel, crava teu punhal em meu seio. Eis-me aqui, pronta para receber o golpe fatal. Crava. Ousa... Ah! enlanguesço, morro... Um fogo secreto se acende em meus sentidos... Cruel amor, que queres de mim?... Deixa-me a doce paz que desfrutei... Devolve-me a razão...” É preciso que as paixões sejam fortes. A ternura do músico e do poeta lírico deve ser extrema. Quase sempre a ária é a peroração da cena. Precisamos de exclamações, interjeições, suspensões, interrupções, afirmações, negações. Chamamos, invocamos, gritamos, gememos, choramos, rimos francamente. Nada de espírito, nada de epigramas ou de bonitos pensamentos. Estão longe da simplicidade da natureza. Não acrediteis que o jogo e as declamações dos atores no teatro possam servir-nos de modelo. Puf! Precisamos de algo mais enérgico, menos amaneirado e mais verdadeiro. Quanto mais a língua for monótona e menos enfática, tanto mais necessitaremos de discursos simples e das vozes comuns da paixão. O grito do animal ou do homem apaixonado dão à língua o que não possui por si própria. Enquanto me fala assim, a multidão que nos rodeava, não entendendo ou não se interessando, afastou-se. A criança como o homem, o homem como a criança preferem divertir-se a instruir-se. Cada um retorna ao seu jogo e permanecemos sozinhos em nosso canto. Sentado numa banqueta, a cabeça apoiada na parede, os braços caídos e os olhos fechados, diz-me: “Não sei o que tenho. Quando cheguei estava fresco e disposto, agora estou moído, alquebrado como se tivesse andado dez léguas. Fiquei assim de repente”. EU — Quereis refrescar-vos? ELE — Com prazer. Sinto-me rouco. Faltam-me forças. Sofro um pouco do peito. Acontece-me todos os dias sem que eu saiba por quê. EU — Que desejais? ELE — O que vos agradar. Não sou difícil. A indigência ensinou-me a adaptar-me. Servem-nos cerveja, limonada. Enche um copázio que esvazia duas ou três vezes seguidas. Depois, como um homem reanimado, tosse fortemente, sacode-se, retoma: Em vossa opinião, senhor filósofo, não é uma estranha esquisitice que um estranho, um italiano, um Douni, nos venha ensinar como realçar nossa música, submeter nosso canto a todos os movimentos, compassos, intervalos e declamações, sem ferir a prosódia? E, no entanto, não era um bicho-de-sete-cabeças. Qualquer um que tivesse escutado um mendigo pedindo esmola, um homem no transporte da cólera, uma mulher ciumenta e furiosa, um amante desesperado, um bajulador, sim, um bajulador adocicando o tom, arrastando as sílabas com voz melosa, em uma palavra, uma paixão, não importa qual, desde que por sua energia pudesse servir de modelo para o músico, qualquer um, repito, teria percebido duas coisas: primeiro, que as sílabas breves e longas não têm duração fixa, e não há sequer uma relação determinada entre suas durações; segundo, que a paixão dispõe a prosódia como lhe agradar, executando os maiores intervalos. Aquele que grita do fundo de sua dor: “Ah! desgraçado que sou!” eleva a sílaba da exclamação para o tom mais alto e agudo e abaixa as outras para os tons mais baixos e graves, fazendo uma oitava ou até mesmo um intervalo maior, dando a cada som a quantidade que convém ao volteio da melodia, sem magoar o ouvido, sem que a sílaba longa e a breve tenham conservado o comprimento que possuem num discurso tranquilo. Quanto chão pisamos desde que citávamos como prodígios de declamação musical os parênteses da Armida: “O vencedor de Renaud (se alguém pode sê-lo)”, o “Obedeçamos sem vacilar” das índias Galantes! Hoje em dia estes prodígios nos fazem dar de ombros com piedade. No ritmo em que a arte avança, não sei onde chegará. Esperando, bebamos um trago. Bebe dois ou três sem saber o que está fazendo. Puxo a garrafa antes que se embebede como se esgotou antes: sem perceber. Digo-lhe então: EU — Como é possível que com um tato tão fino, uma sensibilidade tão aguçada para as belezas da arte musical sejais tão cego para as belas coisas da moral, tão insensível aos encantos da virtude? ELE — Aparentemente porque parece haver para elas um sentido que não tenho, uma fibra que não me foi dada ou que é tão frouxa que não adianta beliscá-la porque não vibra. Ou talvez porque tenha vivido sempre entre bons músicos e má gente, e, assim, meu ouvido tornou-se muito fino e meu coração, surdo. E depois parece que a raça também conta. O mesmo sangue corre nas veias de meu pai e de meu tio. A molécula paterna deve ter sido dura e obtusa e esta maldita primeira molécula deve ter sido assimilada por todo o resto. EU — Amais vosso filho? ELE — Se amo o selvagenzinho? Sou louco por ele. EU — Não deveríeis ocupar-vos seriamente de interromper o efeito da maldita molécula paterna sobre ele? ELE — Trabalharia inutilmente, creio. Se estiver destinado a ser um homem de bem, não o prejudicarei. Mas, se a molécula quisesse que fosse um pulha como o pai, os esforços para torná-lo um homem de bem ser-lhe-iam altamente prejudiciais: a educação, atravessando incessantemente o caminho da molécula, faria com que fosse atraído por duas forças contrárias e estaria sempre cambaleando no caminho da vida, como muitos que vejo coxeando no bem e no mal; é o que chamamos de insignificante — o pior dos epítetos porque marca a mediocridade e o último grau do desprezo. Um grande patife é um grande patife, e não um insignificante. Antes que a molécula paterna retomasse a dianteira e o levasse à perfeita abjeção, como a minha, precisaria de um tempo infinito, perderia seus mais belos anos. Nada faço no momento. Deixo-o crescer. Examino-o. Já é glutão, astuto, trapaceiro, preguiçoso e mentiroso. Quem sai aos seus não degenera. Creio que suas qualidades são hereditárias. EU — E o fareis músico para que a semelhança seja completa? ELE — Músico! Músico! Algumas vezes olho para ele e rangendo os dentes digo-lhe: “Se souberes uma nota, torcerei teu pescoço”. EU — E por que, fazei o favor? ELE — Porque não leva a nada. EU — Leva a tudo. ELE — Sim, quando nos sobressaímos, mas quem poderá garantir ao filho que excederá os outros? Pode-se apostar dez mil contra um como seria um mísero arranhador de cordas, como eu. Sabeis que talvez seja mais fácil fazer de uma criança um grande rei do que um grande violino? EU — Tenho a impressão de que num povo sem moral, corrompido pelo deboche e pelo luxo, os talentos agradáveis, mesmo medíocres, lançam um homem no caminho da fortuna. Eu, que vos falo, ouvi a seguinte conversa entre um protetor insignificante e um protegido insignificante. Este fora encaminhado ao primeiro como um homem obsequioso que pudesse servi-lo: “— Senhor, que sabeis? — Conheço um pouco de matemática. — Pois bem, senhor, mostrai a matemática. Depois de vos enlameardes durante dez ou doze anos pelas ruas de Paris, devereis ter trezentas ou quatrocentas libras de renda. — Estudei leis e sou versado em direito. — Se Puffendorf e Grotius voltassem ao mundo, morreriam de fome em cima de uma fronteira. — Conheço bem história e geografia. — Se houvesse pais interessados na educação de seus filhos, vossa fortuna estaria garantida. Mas não há. — Sou bom músico. — Ora, por que não mo dissestes antes? E tenho uma filha para vos mostrar a vantagem que se pode tirar deste talento. Vinde todos os dias das sete e meia às nove horas da noite, lecionareis para ela e eu vos darei vinte e cinco luíses por ano. Almoçareis, jantareis, ceareis conosco. O resto de vosso dia vos pertencerá e disporeis dele como vos aprouver.” ELE — Que aconteceu com o homem? EU — Se tivesse sido sensato, teria feito fortuna, única coisa que tendes em mira. ELE — Sem dúvida. Ouro, ouro. O ouro é tudo, e o resto, sem ouro, nada. Em vez de rechear-lhe a cabeça com belas máximas que precisaria esquecer se não quisesse ser mendigo, quando possuo uma moeda de ouro (o que é raro) planto-me diante dele, tiro a moeda do bolso e mostro-lha com admiração. Levanto os olhos para o céu, beijo a moeda, e, para que compreenda bem a importância da moeda sagrada, gaguejo e aponto com o dedo todas as belas coisas que pode adquirir com ela. Depois, coloco a moeda no bolso, passeio orgulhosamente, levanto a aba de meu casaco, dou um tapinha no bolso — e assim mostro-lhe que a segurança que vê em mim nasce da moeda que ali está. EU — Não poderia ser melhor. Contudo, se acontecesse que, estando profundamente compenetrado do valor da moeda, um dia... ELE — Entendo. E preciso fechar os olhos. Não há princípio moral sem um inconveniente. No pior dos casos, será um mau quarto de hora e tudo estará terminado. EU — Apesar dessa visão sensata e corajosa, continuo achando que o melhor seria que se tornasse músico. Não conheço meio mais rápido para se aproximar dos grandes, servir aos vícios deles e tirar proveito para os seus próprios. ELE — É verdade, mas tenho projetos para um sucesso mais rápido e seguro. Ah! Se fosse moça! Mas como não se faz o que se quer, deve-se pegar o que vier e tirar o melhor partido. E a primeira coisa há de ser a de não dar a educação da Lacedemônia a uma criança que viverá em Paris. Se os pais fossem menos bestas não fariam isto, considerando que seriam responsáveis pela infelicidade de seus filhos se o fizessem. Se Pária é má, a culpa não é minha, mas dos costumes de minha nação. Fale quem quiser, o que quero é que meu filho seja feliz ou, o que dá no mesmo, que seja honrado, rico e poderoso. Conheço mal e mal as vias mais fáceis para atingir este alvo, e ensinar-lhas-ei quando chegar a hora e a vez. Se vós, sábios, me condenardes, a multidão e o sucesso me absolverão. Haverá ouro, sou eu quem vo-lo diz. Se houver bastante, nada lhe faltará, nem mesmo vossa estima e vosso respeito. EU — Poderíeis estar enganado. ELE — Ou dispensá-lo-á, como muitos outros. Havia em suas palavras muita coisa que pensamos, que dirige nossa conduta, mas que calamos. Na verdade, esta é a diferença mais notável entre meu homem e a maioria de nossa vizinhança. Confessava seus vícios, que são dos outros também, mas não era hipócrita. Não era mais nem menos abominável do que os outros, somente mais franco, mais consequente e por vezes mais profundo em sua depravação. Eu estremecia pensando no que seria seu filho com tal mestre. É certo que, com ideias pedagógicas tão rigorosamente calcadas sobre nossos costumes, o menino iria longe, a menos que fosse prematuramente detido no caminho. ELE — Oh! Não temais. O ponto importante e difícil que deve preocupar realmente o pai não é dar ao seu filho vícios que o enriqueçam, ridículos que o tornem precioso para os grandes. Isto todos fazem, se não sistematicamente como eu, pelo menos pelo estudo e pelo exemplo. O ponto fundamental é ensinar-lhe a justa medida, a arte de esquivar-se da vergonha, da desonra e das leis. É preciso saber situar, preparar e salvar as dissonâncias na harmonia social. Nada mais sem graça do que uma sequência de acordes perfeitos. É preciso algo espicaçante que separe o feixe e disperse os raios. EU — Muito bem. Com esta comparação retornamos dos costumes à música, de que me afastei a contragosto. Estou grato, pois, sem querer ofender-vos, prefiro o músico ao moralista. ELE — Entretanto, sou subalterno em música e grande em moral. EU — Duvido, mas, mesmo que assim fosse, sou um homem direito e vossos princípios não são os meus. ELE — Pior para vós. Ah! se eu tivesse vossos talentos! EU — Deixemos meus talentos e voltemos aos vossos. ELE — Se soubesse exprimir-me como vós! Mas tenho um diacho de chilreio extravagante, metade estilo da gente da alta roda e da gente das letras, metade da gente do mercado. EU — Falo mal. Só sei dizer a verdade, o que nem sempre é um sucesso, como sabeis. ELE — Mas não é para dizer a verdade que ambiciono vosso talento. Pelo contrário, é para dizer bem a mentira. Se soubesse escrever, engalanar os livros, tornear primorosamente uma boa epístola dedicatória, embriagar um tolo com seu mérito, insinuar-me junto às mulheres! EU — Sabeis fazer tudo isso mil vezes melhor do que eu. Não seria digno sequer de ser vosso aluno. ELE — Quantas qualidades perdidas cujo preço ignorais! EU — Colho o que semeio. ELE — Se assim fosse não usaríeis este casaco grosseiro, este paletó de estamenha, estas meias de lã, estes sapatos grossos, esta peruca antiquada. EU — Concordo. É preciso ser muito desastrado quando não se é rico e se permite tudo para vir a sê-lo. Mas é que há gente como eu que não encara a riqueza como a coisa mais preciosa do mundo; gente extravagante. ELE — Muito extravagante. Não se nasce desse jeito. Inventa-se, pois não está na natureza. EU — Do homem? ELE — Do homem. Tudo que vive, sem excetuar o homem, procura seu bem-estar às expensas de quem o possuir. Estou certo de que, se deixasse vir um selvagenzinho sem nada lhe dizer, ele bem gostaria de estar ricamente vestido, esplendidamente nutrido, querido pelos homens, amado pelas mulheres, e reunir para si todas as felicidades da vida. EU — Se o pequeno selvagem estivesse abandonado a si próprio, conservando toda a sua imbecilidade e reunindo o pouco de razão da criança de berço à violência das paixões do homem de trinta anos, torceria o pescoço de seu pai e dormiria com sua mãe. ELE — O que prova a necessidade de uma boa educação. E quem o contesta? E que é uma boa educação, senão aquela que conduz a todos os gozos sem perigo e sem inconveniente? EU — Pouco importa que eu não seja de vossa opinião, mas guardemos-nos de explicar-nos. ELE — Por quê? EU — Porque temo que só concordemos em aparência e que se entrarmos na discussão dos perigos e inconvenientes a evitar não nos entenderemos mais. ELE — E que mal há nisso? EU — Deixemos esse assunto, repito. Não conseguiria vos ensinar o que sei sobre a questão, e não conseguiríeis instruir-me mais facilmente naquilo que ignoro e que sabeis sobre música. Caro Rameau, falemos de música, e dizei-me como não haveis feito nada que preste tendo a facilidade de sentir, reter e executar os mais belos trechos dos grandes mestres, com o entusiasmo que vos inspiram e que transmitis aos outros. Em vez de me responder, meneia a cabeça e erguendo o dedo para o céu acrescenta: “E o astro? E o astro? A natureza sorriu ao fazer Leo, Vinci, Pergolese, Douni. Tomou um ar imponente e grave formando o caro tio Rameau, que será chamado durante uma dezena de anos o grande Rameau, e de quem em breve não se falará mais. Quando modelou seu sobrinho, careteou, careteou outra vez, e ainda mais uma vez. (Ao dizer isto faz todo tipo de caretas com o rosto: desprezo, ironia, desdenho; parece modelar um pedaço de massa nas mãos, sorrindo com as formas ridículas que lhe dá. Terminando, joga longe o boneco heteróclito e diz:) Assim me fez e lançou-me ao lado de outros bonecos, uns de pança proeminente e pregueada, pescoço curto, olhos fora das órbitas, apopléticos; outros, de pescoço torto; outros ainda, secos, olho vivo, nariz adunco. Todos começaram a rir quando me viram, e eu botei as mãos nas cadeiras esborrachando-me de rir ao vê-los, pois os trouxas e os loucos se divertem uns com os outros. Procuram-se. Atraem-se. Se ao chegar não tivesse encontrado já pronto o provérbio que diz que ‘o dinheiro dos trouxas é patrimônio dos sabidos’, eu o teria inventado. “Percebi que a natureza pusera o meu dote na bolsa dos bonecos e inventei mil maneiras para readquiri-lo”. EU — Conheço os meios; já me dissestes quais são e admirei-os muito. Mas, com tantos recursos, por que não tentar uma bela obra? ELE — Esta proposta é a mesma que um homem da alta roda fez ao Abade Le Blanc. Este dizia: “A Marquesa de Pompadour toma-me pelas mãos, leva-me até a soleira da Academia, tira as mãos, caio e quebro as duas pernas...” O outro respondeu: “Ora, abade, é preciso levantar-se e arrebentar a porta com uma cabeçada”. O abade replicou: “Foi o que tentei. Sabeis o que me aconteceu? Fiquei com um galo na testa”. Depois da estorieta, meu homem começa a andar cabisbaixo, ar pensativo e abatido. Suspira, chora, desola-se, ergue as mãos e os olhos, esmurra a cabeça com os punhos quase quebrando a testa ou os dedos, e acrescenta: “Parece que aí dentro há alguma coisa, mas, por mais que esmurre e sacuda, não sai nada”. Recomeça a sacudir a cabeça e esmurrar ainda mais a testa, dizendo: “Ou não há ninguém, ou não quer responder”. Um momento depois recupera o ar altaneiro, levanta a cabeça, põe a mão direita sobre o coração, anda e diz: “Sinto, sim, sinto”. Arremeda um homem que se irrita, se indigna, se enternece, comanda, suplica e de improviso discursa com cólera, comiseração, ódio, amor. Esboça os caracteres passionais com fineza e verdade surpreendentes. E depois acrescenta: “É isto, creio. Lá vem. Isto sim é encontrar um parteiro que sabe estimular, precipitar as dores e fazer a criança sair. Quando a sós comigo mesmo, pego da pena e decido escrever. Rôo as unhas, esfrego a testa. Adeus, atenciosamente subscrevo-me vosso humilde servidor... lá se foi a inspiração. O deus está ausente. Pensei que tivesse gênio; porém, no final da linha, leio que sou um palerma. Mas a coisa muda de figura quando se trata de sentir, de elevar-se, pensar e pintar com cores fortes, frequentando gente da laia daquela que é preciso ver para poder viver, ouvindo e fazendo mexericos: “— Hoje o bulevar estava encantador. Ouvistes a marmotinha? Representa divinamente. O senhor fulano estava com uma parelha de cavalos cinzentos bamboleantes que era uma beleza. A bela senhora cicrana já começa a ficar passadona, tem cabimento usar aquele penteado aos quarenta e cinco anos? A jovem beltrana está coberta de diamantes que nada lhe custaram. — Quereis dizer que lhe custaram... caro? — Mas não! — Onde a vistes? — N’O Filho de Arlequim Perdido e Reencontrado. — A cena do desespero foi representada como nunca. O Polichinelo da Feira tem goela, mas nenhuma sagacidade, nenhum sentimento. A senhora fulana deu à luz gêmeos; cada pai ficará com um...” Acreditais que estas coisinhas ditas e reditas, ouvidas todos os dias, aquecem e conduzem a grandes coisas? EU — Não. Seria preferível trancar-se no sótão, passar a pão e água e buscar-se a si mesmo. ELE — Talvez, mas não tenho coragem. E depois, sacrificar a felicidade por um sucesso incerto? E o nome que carrego? Rameau! Chamar-se Rameau! É um estorvo. Os talentos não se transmitem como a nobreza, que é transmissível e cuja celebridade aumenta passando do avô ao pai, do pai ao filho, do filho ao neto, sem que o antepassado outorgue qualquer mérito ao descendente. A velha cepa se ramifica num enorme caule de idiotas, mas que importa? Com o talento é diferente. Para ser mais renomado do que o pai é preciso ser mais hábil do que ele. É preciso herdar sua fibra. Não a herdei, mas o punho readquiriu destreza, o arco desliza e a panela está cheia — se não é a glória, pelo menos é a sopa. EU — Em vosso lugar não acharia que é fato consumado. Tentaria. ELE — E pensais que não tentei? Não tinha ainda quinze anos e já me dizia: “Que fazes, Rameau? Sonhas? E com quê? Que gostarias de fazer, algo que provocasse a admiração do universo? Pois bem. Basta soprar e agitar os dedos”. Mas falar é fácil, fazer é que são elas. Anos depois repeti a proposta de minha infância, e repito ainda, mas permaneço em torno da estátua de Memnão. EU — Que quereis dizer com isso? ELE — O óbvio, parece-me. Em torno da estátua de Memnão havia inúmeras outras igualmente banhadas pelos raios do sol, mas somente a dele ressoava. Um poeta? Voltaire. Quem mais? Voltaire. E o terceiro? Voltaire. E o quarto? Voltaire. Um músico? Rinaldo de Cápua, Hasse, Pergolese, Alberti, Tartini, Locatelli, Terradoglias, meu tio, o pequeno Douni, com sua cara tão inexpressiva, sua sensibilidade tão aguçada, e, raios me partam, capaz de canto e expressão. O resto, em torno desses poucos Memnãos, puras orelhas cravadas numa estaca. E, assim, somos mendigos, tão mendigos que chega a ser uma bênção. Ah! senhor filósofo, a miséria é uma coisa terrível. Vejo-a acocorada, a bocarra escancarada para receber algumas gotas de água que escapam do tonel das Danaidas. Não sei se aguça o espírito do filósofo, mas esfria terrivelmente a cabeça do poeta. Canto mal por baixo deste tonel. E o pior é que a gente ainda deve dar-se por feliz se puder ficar embaixo dele. Eu estava e não soube continuar. Já fiz essa besteira numa outra ocasião. Viajei pela Boêmia, Alemanha, Suíça, Holanda, Flandres, por ceca e meca. EU — Sob o tonel furado? ELE — Sob o tonel furado. Havia um judeu opulento e perdulário que gostava de minha música e de minhas loucuras. Musicava como Deus manda. Bancava o louco. Nada me faltava. O judeu era um homem que conhecia sua lei e a observava rigidamente, às vezes com o amigo, às vezes com o estranho. Fez um mau negócio. Foi muito divertido e é preciso que vos conte. Havia em Utrecht uma prostituta encantadora. Foi tentado pela cristã. Enviou-lhe um empregadinho com uma letra de câmbio bem gorda. A esquisita criatura recusou a oferta. O judeu ficou desesperado. O empregadinho lhe disse: Por que tanta aflição? Quereis dormir com uma bela mulher? Nada mais fácil. Podeis até mesmo dormir com uma ainda mais bela do que a que perseguis: a minha. Cedo-a pelo mesmo preço. Dito e feito. O empregadinho guarda a letra de câmbio e o judeu dorme com sua mulher. O vencimento da letra chega. O judeu deixa que vá ao protesto e declara que é falsa. Processo. O judeu dizia: “Nunca o homenzinho dirá como obteve a letra e não vou pagá-la”. Na audiência, ele próprio interroga o empregadinho: “— De quem obtivestes a letra? — De vós. — Por dinheiro emprestado? — Não; mas o caso não é este. Sou o possuidor, foi assinada por vós e ireis saldá-la. — Não a assinei. — Quereis dizer que sou um falsário? — Vós, ou outro de quem sois agente. — Sou um poltrão, mas sois um patife. Se me pressionardes direi tudo. Ficarei desonrado, mas estareis perdido...” O judeu não deu ouvidos à ameaça, o empregadinho contou tudo na sessão seguinte. Ambos foram repreendidos, o judeu foi condenado a pagar a letra e o dinheiro foi enviado a uma instituição de assistência aos pobres. Então separei-me dele e voltei para cá. Que fazer? Definhar na miséria ou fazer alguma coisa? Milhares de projetos atravessavam-me a cabeça. Uma hora, iria partir no dia seguinte com uma companhia provinciana, tão ruim para o teatro como para a orquestra. Noutra hora, pensava pintar um desses cartazes que se penduram nas encruzilhadas onde teria berrado a plenos pulmões: “Eis a cidade onde nasceu; ei-lo despedindo-se de seu pai boticário, chegando à capital à procura da casa de seu tio; ei-lo ajoelhado diante do tio que o expulsa; ei-lo com um judeu, etc., etc.”. No dia seguinte levantava-me disposto a me associar aos cantores de rua; não seria o pior a fazer: iríamos fazer serenata à janela do caro tio que se torceria de raiva. Tomei outra decisão. Detém-se, passando sucessivamente da atitude de um homem que segura um violino, apertando as cordas com os braços, à de um pobre-diabo extenuado de fadiga, sem forças, as pernas vacilantes, prestes a expirar se não lhe jogarem um bocado de pão. Designava sua profunda carência com um gesto do dedo voltado para a boca entreaberta. Acrescenta: “É óbvio. Jogavam-me restos. Éramos quatro famintos a brigar por eles. E depois vinde pensar grandiosamente, vinde fazer belas coisas no meio de tanto desamparo”. EU — É difícil. ELE — De escorregão em escorregão vim cair aqui. Estava como peixe na água. Mas saí. De agora em diante terei que dar um nó nas tripas e voltar à gesticulação do dedo na boca aberta. Nada é estável neste mundo. Hoje no topo da roda, amanhã embaixo. Somos dirigidos pelas malditas circunstâncias, e mal dirigidos. Depois, bebendo num trago o fundo da garrafa, dirige-se ao vizinho: “— Senhor, por caridade, uma pitadinha. Tendes aí uma bela caixa. Não sois músico? — Não. — Melhor para vós, pois são uns pobres trastes lamentáveis. A sina me fez um, enquanto há em Montmartre, talvez em um moinho, um moleiro, um criado de moleiro que só ouvirá o ruído da catraca e que poderia ter encontrado os mais belos cantos. Rameau! Para o moinho, para o moinho! É lá o teu lugar. EU — Qualquer que seja a ocupação de um homem, a natureza destinou-o a ela. ELE — Mas comete lapsos estranhos. Quanto a mim, não me sinto alçado a essas alturas onde tudo se confunde, o homem que poda árvores com tesouras, a lagarta que rói folhas, e de onde se veem dois insetos diferentes cada um cumprindo seu dever. Empoleirai-vos no epiciclo de Mercúrio, se vos convier, e, assim como Reaumur distribuiu a classe das moscas em costureiras, agrimensoras e ceifeiras, imitando-o, podeis distribuir a espécie humana em marceneiros, carpinteiros, corredores, dançarinos, cantores. É vosso ofício. Não me intrometo. Estou neste mundo e aqui fico. Mas, se está na natureza ter apetite (pois é sempre ao apetite que volto, à sensação que está sempre presente em mim), não acho que seja uma boa ordem aquela onde não se tem sempre o que comer. Que diabo de economia! Homens que regurgitam tudo, enquanto outros, dotados de um estômago tão inoportuno quanto o deles, não têm o que pôr entre os dentes. O pior é a postura constrangida que a necessidade nos força a assumir. O homem necessitado não caminha como outro — salta, rasteja, se arrasta, se contorce, passa a vida a tomar e executar posições. EU — Que são posições? ELE — Perguntai a Noverre. O mundo oferece coisa melhor do que aquilo que sua arte pode imitar. EU — Estais também, para servir-me de vossa expressão, ou de Montaigne, “empoleirado no epiciclo de Mercúrio” fazendo considerações sobre as pantomimas do gênero humano. ELE — Não, não. Sou muito pesado para elevar-me tão alto. Deixo aos palermas a viagem pelo nevoeiro. Sou terra-a-terra. Olho à minha volta, tomo minhas posições, divirto-me com as dos outros. Sou um excelente pantomimista, como ireis julgar. Começo a rir, remeda o admirador, o suplicante, o complacente. Põe o pé direito para a frente e o esquerdo para trás, dobra as costas, ergue a cabeça, o olhar como se estivesse preso sobre outros olhos, a boca entreaberta, o braço estendido para algum objeto. Espera uma ordem. Recebe-a e parte como um corisco; volta, cumpriu e presta contas. Está atento a tudo. Apanha o que cai; coloca um travesseiro ou um tamborete sob os pés; segura um pires; aproxima uma cadeira; abre uma porta; fecha uma janela; puxa uma cortina; observa o patrão e a patroa, fica imóvel, braços pendurados, pernas paralelas; escuta, procura ler nos rostos e acrescenta: “Aí está minha pantomima, mais ou menos como a dos bajuladores, dos cortesãos, dos criados e dos mendigos”. As loucuras deste homem, os contos do Abade Galiani,as extravagâncias de Rabelais muitas vezes me fizeram meditar profundamente. São três armazéns onde pude prover-me de máscaras ridículas que coloco sobre os rostos das mais graves personagens. Vejo Pantalon num prelado, um sátiro num presidente, um suíno num cenobita, uma avestruz num ministro, uma gansa em seu primeiro oficial. EU — Mas pela vossa conta há muitos patifes no mundo e não conheço um que saiba alguns passos de vossa dança. ELE — Tendes razão. Em um reino somente o soberano anda. O resto só faz posições. EU — O soberano? Ainda há algo a dizer. Acreditais que quando em vez não encontra ao seu lado um pezinho, uma trancinha ou um narizinho que não o levem a fazer um pouco de pantomima? Todo aquele que precisa de outrem é indigente e faz posições. O rei faz posições diante de sua amante e de Deus — dá seu passo de pantomima. O ministro dança como cortesão, bajulador, criado ou patife diante do rei. A massa de ambiciosos, diante do ministro, dança vossos passos de mil modos, um mais vil do que o outro. O abade de categoria, em peitilho rendado e manto longo, diante do depositário da folha de pagamento, pelo menos uma vez por semana. Palavra, o que chamais pantomima dos mendigos é a grande ciranda da terra. Cada um tem sua pequena Hus e seu Bertin. ELE — Isso me consola. Mas, enquanto eu falava, ele rolava de rir arremedando as posições das personagens que eu ia citando. Por exemplo, para o abadezinho, punha o chapéu sob o braço, segurava o breviário com a mão esquerda e com a direita levantava a cauda do manto. Avançava com a cabeça meio jogada sobre o ombro, olhos baixos, imitando tão perfeitamente o hipócrita, que acreditei ver o autor das Refutações diante do bispo de Orléans. Para os aduladores e ambiciosos, rastejava. Era Bouret diante do tesoureiro-geral. EU — Soberbamente executado. Há, porém, um ser que não precisa da pantomima — o filósofo, que nada tem e nada pede. ELE — E onde está esse animal? Se nada tem, sofre; se nada pede, nada obterá e sofrerá sempre. EU — Não. Diógenes zombava das carências. ELE — Mas é preciso vestir-se. EU — Não. Andava completamente nu. ELE — Às vezes fazia frio em Atenas. EU — Menos do que aqui. ELE — Comia-se lá. EU — Sem dúvida. ELE — Às expensas de quem? EU — Da natureza. A quem se dirige o selvagem? À terra, aos animais, aos peixes, às árvores, às ervas, às raízes, aos regatos. ELE — Mesa ruim. EU — Grande. ELE — Mal servida. EU — Contudo, é dela que se tira para cobrir as nossas. ELE — Mas deveis convir que a habilidade de nossos cozinheiros, confeiteiros, vendedores de assados, quituteiros põe um pouco de seu. Com a dieta austera de vosso Diógenes não deveria ter órgãos muito indóceis. EU — Estais enganado. Outrora, o hábito do cínico era nosso hábito monástico com a mesma virtude. Os cínicos eram os carmelitas e franciscanos de Atenas. ELE — Agora vos peguei. Diógenes também dançou a pantomima, se não diante de Péricles, pelo menos diante de Laís e de Frinéia. EU — Enganais-vos ainda. Os outros compravam caro a cortesã que se entregava a ele por prazer. ELE — E se a cortesã estivesse ocupada e o cínico apertado? EU — Entrava em seu tonel e passava sem ela. ELE — E me aconselhais imitá-lo? EU — Quero morrer se isto não for preferível a rastejar, aviltar-se e prostituir-se. ELE — Mas preciso de boa cama, boa mesa, roupa quente no inverno, roupa fresca no verão, repouso, dinheiro e muitas outras coisas. Portanto, prefiro devê-los à benevolência do que adquiri-los pelo trabalho. EU — É que sois preguiçoso, glutão, frouxo, e tendes uma alma enlameada. ELE — Creio que eu próprio vo-lo disse. EU — Sem dúvida, na vida todas as coisas têm um preço. Mas ignorais o do sacrifício que fazeis para obtê-las. Dançais, dançastes e continuareis a dançar a pantomima vil. ELE — É verdade. Mas custou-me pouco e agora já não me custa mais. Por isso faria mal assumindo outro jeito que me penalizaria e que não poderia conservar. Mas, pelo que acabais de dizer, vejo que minha pobre mulherzinha era uma espécie de filósofa. Tinha coragem como um leão. Algumas vezes faltava-nos pão e não tínhamos níquel. Vendêramos todos os trapos, jogava-me na cama e quebrava a cabeça tentando descobrir alguém que nos emprestasse uns miúdos (que não lhe devolveríamos, claro). Ela, alegre como um passarinho, punha-se ao cravo e cantava. Tinha a goela dum rouxinol. É uma pena que não a tenhais ouvido. Quando eu participava de algum concerto, levava-a comigo e pelo caminho lhe dizia: “Vamos, senhora, fazei-vos admirar, exibi vosso talento e vossos encantos, arrebatai, perturbai”. Chegávamos. Arrebatava e perturbava. Ai de mim. Perdi-a, pobrezinha. Além de talento, que boquinha! Que dentes! Uma fieira de pérolas. Que olhos! E os pés? A pele, as faces, as tetas, as pernas de corça, coxas e nádegas para um escultor. Cedo ou tarde teria pelo menos o chefe das finanças. Que andar! Que bunda! Bom Deus, que bunda! E lá vai ele: começa a imitar o andar da sua mulher. Passinhos miúdos, cabeça solta, brinca com um leque, requebra o traseiro. Era a mais ridícula e divertida caricatura de mulher provocante. Depois, retomando a sequência de seu discurso, acrescenta: Eu a levava a toda parte: às Tulherias, ao Palais-Royal, aos bulevares. Era impossível que ficasse comigo. Quando, pela manhã, atravessava a rua, sem peruca, numa baeta curta e transparente, teríeis parado para vê-la e poderíeis abraçá-la com quatro dedos sem apertá-la. Os que a seguiam, apressavam o passo vendo-a trotar com seus pezinhos, medindo sua bundona, cuja forma era modelada pela saia leve. Ela os deixava chegar, depois dardejava sobre eles seus olhos negros e detinham-se imediatamente. É que o anverso da moeda não destoava do reverso. Ai de mim! Perdi-a, e minhas esperanças de fortuna foram-se com ela. Eu só a apanhara para isso. Confiei-lhe meus projetos e era muito perspicaz para perceber quanto valiam e muito ajuizada para desaprová-los. Soluça e chora, dizendo: “Não, nunca me consolarei. Desde então tomei o hábito e o solidéu”. EU — De dor? ELE — Se quereis. Mas, na verdade, para ter minha escudela sobre a cabeça... Que horas são? Preciso ir à Ópera. EU — O que estão levando? ELE — Dauvergne. Há belas coisas em sua música. Pena que não tenha sido o primeiro a dizê-las. Entre os mortos há sempre alguns que entristecem os vivos. Que quereis? Quisque suos patimur manes. São cinco e meia. Ouça os sinos que tocam as vésperas do Abade Canaye e as minhas. Adeus, senhor filósofo. Não é verdade que sou sempre o mesmo? EU — Sim, desgraçadamente. ELE — Que essa desgraça dure pelo menos quarenta anos. Ri melhor quem ri por último.