Friedrich Nietzsche – Ecce Homo Como se chega a ser o que se é Índice Prefácio Porque sou tão sábio Porque sou tão sagaz Porque escrevo tão bons livros O Nascimento da Tragédia As Considerações Intempestivas Humano, Demasiado Humano Aurora A Gaia Ciência Assim Falou Zaratustra Para Além do Bem e do Mal Genealogia da Moral Crepúsculo dos Ídolos O Caso Wagner Porque sou um destino PREFÁCIO 1 Na previsão de que em breve terei de surgir perante a humanidade com a mais difícil exigência que se lhe fez, parece-me indispensável dizer quem eu sou. No fundo, todos o deviam saber: não deixei, com efeito, de dar testemunho de mim. Mas a incongruência entre a grandeza da minha tarefa e a pequenez dos meus contemporâneos expressou-se no facto de que não me ouviram, nem também me viram. Vivo do meu próprio crédito, ou será talvez apenas um preconceito supor que vivo?... Basta-me dirigir a palavra a qualquer pessoa «culta» que venha no Verão à Alta Engadine para me convencer de que não vivo... Nestas circunstâncias, há um dever contra o qual, no fundo, se revoltam os meus hábitos, e mais ainda o orgulho dos meus instintos, isto é, o dever de clamar: Escutai-me! Pois, sou este assim. Sobretudo, não me confundam com outro! 2 Não sou, por exemplo, um espantalho, um monstro moral – sou antes uma natureza contrária à espécie de homens que, até agora, se veneraram como virtuosos. Aqui só para nós, parece-me que isto se ajusta precisamente ao meu orgulho. Sou um discípulo do filósofo Dioniso, prefiro ser um sátiro a ser um santo. Leia-se, porém, apenas este escrito. Coube-me talvez, e porventura este escrito não terá outro sentido, expressar este contraste de um modo sereno e humanitário. A última coisa que eu prometeria seria «melhorar» a humanidade. Não serão por mim erigidos novos ídolos; os antigos podem elucidar-nos sobre o que assenta em pés de barro! Derrubar ídolos (a minha palavra para «ideais») – eis o que já constitui o meu ofício. Subtraiu-se à realidade o seu valor, o seu sentido, a sua veracidade, na medida em que se inventou um mundo ideal... O «mundo verdadeiro» e o «mundo aparente » – em vernáculo: o mundo fictício e a realidade... A mentira do ideal foi, até agora, o anátema sobre a realidade, a própria humanidade foi por ela falsificada e viciada até aos seus mais profundos instintos – até à adoração dos valores contrários àqueles com que lhe estaria garantida a prosperidade, o futuro, o sublime direito ao futuro. 3 – Quem sabe respirar o ar dos meus escritos sabe que é um ar das alturas, uma atmosfera forte. É preciso estar preparado para as alturas, de outro modo o perigo de aí enregelar não é pequeno. Próximo está o gelo, atroz é a solidão – mas como todas as coisas repousam tranquilas na luz! Como livremente se respira! Quantas coisas se sentem abaixo de si! – A filosofia, como até aqui a entendi e vivi, é a vida voluntária no meio do gelo e nas altas montanhas – a procura de tudo o que é estranho e problemático na existência, de tudo o que até agora foi banido pela moral. Graças à longa experiência que uma tal peregrinação no reino do interdito me proporcionou, aprendi a examinar as causas, a partir das quais até agora se moralizou e idealizou, de um modo muito diverso do que era de desejar: a história oculta dos filósofos, a psicologia dos seus grandes nomes, veio para mim à luz do dia. – Quanta é a verdade que um espírito suporta, quanta é a verdade a que ele se aventura? – Eis o que sempre foi para mim o genuíno critério dos valores. O erro (– a fé no ideal –) não é cegueira, o erro é cobardia... Toda a realização, todo o passo em frente no conhecimento resulta da coragem, da dureza contra si mesmo, da integridade para consigo... Não refuto os ideais, calço simplesmente luvas diante deles... Nitimur in vetitum (aspiramos ao proibido): neste sinal há-de, um dia, a minha filosofia vencer, pois a verdade foi, até agora, sempre fundamentalmente apenas proibida. 4 – Entre os meus escritos, o meu Zaratustra aguenta-se por si. Com ele, fiz à humanidade a maior dádiva que até agora lhe foi feita. Este livro, com uma voz que se eleva por cima dos milénios, não é apenas o maior livro que existe, o genuíno livro da atmosfera das alturas – a realidade integral do homem encontra-se abaixo dele a uma distância imensa – é também o mais profundo, nascido da mais íntima riqueza da verdade, o poço inesgotável a que nenhum alcatruz desce sem vir à superfície cheio de ouro e de bondade. Aqui, não fala um «profeta», um daqueles híbridos horríveis de enfermidade e vontade de poder, que se chamam fundadores de religiões. É preciso, inicialmente, ouvir corretamente o som que sai desta boca, som alciónico, para não ofender desditosamente o sentido da sua sabedoria. «As palavras mais secretas é que suscitam a tempestade; os pensamentos que chegam com passo de pomba dirigem o mundo». Os figos caem das árvores, são bons e doces: e, ao caírem, rasga-se-lhes a pele rosada. Sou o vento norte para os figos maduros. Assim, semelhantes a figos, caem entre vós, amigos meus, estas doutrinas: bebei o seu sumo e tomai a sua doce polpa! É outono em redor, puro é o céu e límpida a tarde. Aqui, não fala um fanático, aqui não se «prega», aqui nenhuma fé se exige: de uma infinita plenitude de luz e de uma profundidade ditosa cai gota a gota, palavra a palavra – uma suave lentidão é o ritmo destes discursos. Coisas assim acontecem apenas aos eleitos; é um privilégio sem igual ser aqui ouvinte; ninguém dispõe, sem mais, de ouvidos para Zaratustra... Não será, apesar de tudo, Zaratustra um sedutor?... Que diz ele, todavia, quando pela primeira vez retorna à sua solidão? Justamente o contrário do que num caso semelhante diria qualquer «sábio», «santo», «salvador do mundo» e outro décadent... Não só fala de outro modo, é também diferente... Agora vou sozinho, discípulos meus! Também agora vos ides e sozinhos! Assim o quero. Afastai-vos de mim e resisti a Zaratustra! Melhor ainda: tende dele vergonha! Talvez vos tenha ludibriado. O homem de conhecimento não deve apenas amar os seus inimigos, deve também poder odiar os seus amigos. Retribui mal a um mestre quem sempre permanece apenas discípulo. E por que não ousais desfazer a minha grinalda? Venerais-me: mas que acontecerá, se um dia a vossa veneração esmorecer? Tende cuidado, não vos mate uma estátua! Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que interessa Zaratustra?! Sois meus crentes, mas que interessam todos os crentes!? Não vos tínheis ainda procurado: e eis que me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso vale tão pouco toda a fé. Agora, intimo-vos a perder-me e a encontrar-vos; e só quando todos me tiverdes renegado, é que retornarei para o meio de vós... Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não apenas as uvas se tornam douradas, um raio de sol cai justamente sobre a minha vida: olhei para trás, olhei para a frente, e nunca vi ao mesmo tempo tantas e tão boas coisas. Não foi em vão que, hoje, sepultei o meu quadragésimo quarto ano, era-me permitido sepultá-lo – o que nele era vida está salvo, é imortal. A Transmutação de todos os valores, os Ditirambos de Dioniso e, para recriação, o Crepúsculo dos Ídolos – tudo prendas deste ano, e até do seu último trimestre! Como não deveria estar reconhecido por toda a minha vida? Eis porque a mim próprio narro a minha vida. PORQUE SOU TÃO SÁBIO 1 A ventura da minha existência, porventura a sua singularidade, consiste na sua fatalidade: estou, para me exprimir em forma de enigma, já morto quanto a meu pai, mas, no tocante à minha mãe, vivo ainda e vou ficando velho. Esta dupla herança, por assim dizer a partir do mais alto e do mais baixo degrau na escada da vida, décadent e ao mesmo tempo começo – isto, sim, se é que alguma coisa, explica a neutralidade, a independência de partidismos em relação a todos os problemas da vida, que quiçá me caracteriza. Para os indícios de ascensão e decadência tenho um faro mais apurado do que alguma vez o teve outro homem, sou a este respeito o mestre par excellence – sei ambas as coisas, sou essas duas coisas. Meu pai morreu aos trinta e seis anos; era terno, afável e mórbido, como um ser predestinado à transiência – foi mais uma benéfica recordação da vida do que a própria vida. No mesmo ano em que a sua força vital declinou, também a minha começou a baixar: no meu trigésimo sexto ano de vida, desci ao mais ínfimo ponto da minha vitalidade – vivia ainda, sem dúvida, mas sem ver três passos à minha frente. Então – era o ano de 1879 – renunciei ao cargo de professor em Basileia, vivi durante o Verão como uma sombra em Saint-Moritz e, no Inverno seguinte, o mais pobre de sol da minha vida, como uma sombra em Naumburg. Foi o meu ponto mais baixo: apareceu então «O viandante e a sua sombra». Eu era na altura entendido em sombras... No Inverno seguinte, o meu primeiro Inverno em Génova, aquela doçura e espiritualização, condicionada porventura por uma extrema pobreza de sangue e de músculos, suscitou a «Aurora». A plena claridade e serenidade, e até a exuberância do espírito, que a obra mencionada espelha, compaginam-se em mim não só com a mais profunda fraqueza fisiológica, mas até com um excesso do sentimento de dor. No meio dos martírios que consigo trouxe uma ininterrupta dor de cabeça, durante três dias, com penosos vómitos, possuía uma clareza de dialético par excellence e pensava friamente em coisas para as quais, em melhores condições de saúde, não sou um alpinista suficientemente subtil e frio. Sabem porventura os meus leitores até que ponto tenho a dialética por sintoma de décadence: no caso de Sócrates. – Todas as perturbações doentias do intelecto e até aquele semi-torpor que se segue à febre, são coisas que até hoje me permaneceram totalmente estranhas, acerca de cuja natureza e frequência só me informei através do estudo. O meu sangue corre devagar. Jamais alguém em mim conseguiu constatar a febre. Um médico, que durante muito tempo me tratou como doente dos nervos, acabou por dizer: «Não! Não há nada nos seus nervos, eu é que começo a ficar nervoso». Há, sem lugar para dúvidas, uma qualquer degeneração local, mas indetectável; não é nenhuma doença de estômago organicamente condicionada embora, como consequência do esgotamento geral, se depare com a mais profunda fraqueza do sistema gástrico. A própria doença dos olhos, que de vez em quando se aproxima perigosamente da cegueira, é só efeito, e não causa: de modo que quando aumenta a força vital também se intensifica de novo o poder visual. – Uma longa, demasiado longa série de anos significa em mim a cura – mas, infelizmente, significa também ao mesmo tempo recaída, ruína, periodicidade de uma espécie de décadence. Depois disto tudo, precisarei talvez de dizer que sou perito em questões de décadence? Soletrei-as para a frente e para trás. Até mesmo aquela arte de filigrana da apreensão e da compreensão em geral, aquele tacto para as nuances, aquela psicologia de «visão dos recantos» e tudo o que aliás me é peculiar foi então aprendido, é esta a prenda verdadeira daquele tempo em que tudo em mim se apurou, a observação e ainda todos os órgãos da observação. Lançar um olhar desde a óptica do enfermo aos conceitos e valores mais sãos e, de novo, inversamente desde a plenitude e da auto certeza da vida abundante ao trabalho secreto dos instintos de décadence – eis o que foi o meu mais longo exercício, a minha genuína experiência, e nisso tornei-me um mestre. Está agora em meu poder, tenho mão para inverter perspectivas: primeira razão por que só a mim será talvez possível em geral uma «transmutação dos valores». 2 Deixando de lado o facto de ser um décadent, sou igualmente o seu contrário. A minha prova disso é que, entre outras coisas, escolhi sempre instintivamente os meios corretos nas piores condições; ao passo que o décadent em si escolhe sempre os meios que lhe são nocivos. Como summa summarum, eu era saudável; como mero ângulo, como especialidade, era décadent. A energia para o absoluto isolamento e a libertação das condições habituais, a coerção feita a mim mesmo de não me deixar curar, tratar, medicar – tudo isso trai a incondicional certeza instintiva sobre aquilo de que então eu mais necessitava. Peguei em mim mesmo, restituí a mim próprio a saúde: a condição para tal – todo o fisiologista o admitirá – é estar fundamentalmente são. Um ser tipicamente doente não se pode tornar são, e menos ainda curar-se a si mesmo; para quem é tipicamente saudável, estar doente pode, pelo contrário, ser até um enérgico estímulo de vida, de mais vida. Assim me surge agora efetivamente aquele longo período de enfermidade: descobri, por assim dizer, de novo a vida, avaliei-me a mim próprio, saboreei todas as coisas boas e até mesmo as coisas pequenas, como não é fácil que os outros as possam saborear – da minha vontade de saúde, de vida, fiz a minha filosofia... Atenda-se, pois, ao seguinte: os anos da minha mais baixa vitalidade foram aqueles em que deixei de ser pessimista; o instinto do auto restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo... E onde se reconhece, no fundo, a boa constituição? No facto de um homem bem constituído ser agradável aos nossos sentidos; em ser talhado de uma madeira que é, ao mesmo tempo, dura, suave e olorosa. Apetece-lhe apenas o que lhe é benéfico; o seu agrado, o seu prazer cessa quando é ultrapassada a medida do suportável. Adivinha remédios contra o que causa danos, utiliza casos nocivos em sua própria vantagem; o que não o mata torna-o mais forte. Compila instintivamente a sua suma a partir de tudo o que vê, ouve, vive: é um princípio seletivo, e deixa de lado muitas coisas. Está sempre na sua sociedade, lide ele com livros, com homens ou com paisagens; honra ao escolher, ao admitir, ao confiar. Reage lentamente a todo o estímulo, com aquela lentidão que lhe ensinaram uma longa circunspecção e um orgulho deliberado – perscruta o fascínio que dele se aproxima, mas está longe de lhe sair ao encontro. Não crê nem na «infelicidade», nem na «culpa»: sente-se realizado, consigo, com os outros, sabe esquecer – é suficientemente forte para que tudo redunde em seu maior proveito. Muito bem, sou o contrário de um décadent: pois descrevi-me justamente a mim mesmo. 3 Considero um grande privilégio ter tido semelhante pai: os camponeses, perante os quais ele pregava – de facto, depois de ter vivido alguns anos em Altenburger Hofe, foi pregador nos últimos anos – diziam que parecia um anjo. – E com isto afloro a questão da raça. Sou um fidalgo polaco pur sang, e nele não se encontra também misturada uma gota de mau sangue, pelo menos, alemão. Se buscar a mais profunda oposição a mim, a vulgaridade incontável dos instintos, deparo sempre com a minha mãe e com a minha irmã – crer-me aparentado com semelhante canaille seria uma blasfémia contra a minha divindade. O tratamento que, até este instante, recebo por parte da minha mãe e da minha irmã infunde em mim um horror indizível: está aqui em ação uma perfeita máquina infernal, com segurança infalível sobre o instante em que com crueldade me podem ferir nos meus instantes mais altos,... pois falta então toda a força para se defender entra o verme venenoso... A contiguidade fisiológica possibilita uma tal disharmonia praestabilita... Mas confesso que a mais profunda objecção contra o «eterno retorno», o meu pensamento genuinamente mais abissal, são sempre a mãe e a irmã. – Mas, enquanto polaco, sou também um atavismo monstruoso. Haveria que recuar séculos para encontrar, na pureza dos instintos, a mais nobre raça que existiu sobre a terra, na medida como eu a represento. Tenho frente a tudo o que hoje se chama noblesse um soberano sentimento de distinção – não concederia ao jovem imperador alemão a honra de ser meu cocheiro. Não há um único caso em que eu reconheça alguém como igual a mim – confesso-o com profunda gratidão. A senhora Cosima Wagner é, de longe, a mais nobre natureza; e, para não proferir palavras a menos, digo que Richard Wagner, que era, de longe, o homem com maior afinidade comigo... O resto é silêncio... Todos os conceitos dominantes sobre graus de afinidade são um contrassenso fisiológico, que não pode ser ultrapassado. O Papa ainda hoje comercializa com semelhante contrassenso. É mínima a afinidade com os seus pais: o mais extremo sinal de mesquinhez seria aparentar-se com os seus pais. As naturezas mais elevadas têm a sua origem infinitamente lá para trás, para elas foi necessário, durante muitíssimo tempo, coligir, poupar, acumular. Os grandes indivíduos são os mais antigos: não compreendo, mas Júlio César poderia ser meu pai – ou Alexandre, esse Dioniso personificado... No instante em que escrevo isto, o correio traz-me uma cabeça de Dioniso... 4 Nunca captei a arte de precatar alguém contra mim – eis o que igualmente devo ao meu incomparável pai – mesmo quando isso me parecia de grande valor. Nem sequer me preveni contra mim, por mais que isso possa parecer pouco cristão. Pode em todos os sentidos revolver-se a minha vida que não se descobrirá nela, a não ser muito raramente, nenhum vestígio de que alguém tenha tido contra mim má vontade – mas talvez se descortinem demasiados vestígios de boa vontade... As minhas próprias experiências com aqueles a cujo lado todos têm experiências más falam, sem excepção, a seu favor; domestico todos os ursos, torno até modestos os arlequins. Durante os sete anos em que ensinei grego na classe superior do Instituto de Basileia, nunca tive ocasião alguma de infligir um castigo; os mais preguiçosos eram comigo diligentes. Estive sempre à altura do acaso; devo estar muito mal preparado para ser o meu próprio mestre. Seja qual for o instrumento, por mais desafinado que esteja, tal como só o instrumento «homem» pode estar desafinado – conseguirei sempre, a não ser que esteja doente, extrair dele algo que se pode ouvir. E quantas vezes ouvi os próprios «instrumentos » dizer que nunca assim se tinham ouvido a si mesmos... Foi o que se passou, do modo mais divertido, talvez com Heinrich von Stein, irremediavelmente morto na juventude, o qual, após ter diligentemente obtido licença, esteve três dias em Sils-Maria, declarando a toda a gente que não viera por causa de Engadine. Este homem excelente, que com toda a inocência impetuosa de um Junker prussiano, vadeava no pântano wagneriano (e, além disso, também no de Dühring) foi, nestes três dias, como que transformado por um furacão da liberdade, como alguém que subitamente é elevado à sua altura e a quem nascem asas. Dizia-lhe eu sempre que isso era ali fruto do bom ar, que o mesmo acontecia a cada um, que não era em vão que se estava seis mil pés acima de Bayreuth – mas ele não queria acreditar em mim... Se, apesar de tudo, me fez algumas pequenas e grandes maldades, a causa não era a «vontade», pelo menos a má vontade: eu teria antes – acabei justamente de tal referir – de me queixar da boa vontade, que durante a minha vida não me causou nenhum pequeno dano. As minhas experiências conferem-me em geral o direito à desconfiança relativamente aos chamados impulsos «desinteressados», ao «amor ao próximo» sempre disposto ao conselho e à ação. Tal amor surge-me em si como fraqueza, como caso particular da incapacidade de resistência aos estímulos – a compaixão só entre os décadents se chama virtude. Reprovo os compassivos porque facilmente perdem o pudor, o respeito, o tacto perante as distâncias; porque a compaixão cheira, num abrir e fechar de olhos, a populaça e parece confundir-se com as más maneiras – porque as mãos misericordiosas podem, em determinadas circunstâncias, ter uma ação destruidora num grande destino, numa solidão ferida, num privilégio de pesada responsabilidade. A superação da piedade é por mim incluída entre as virtudes nobres: imaginei, sob o nome de «A tentação de Zaratustra», aquele caso em que um grande grito de angústia lhe chega aos ouvidos, em que a compaixão o assalta como um último pecado, e o quer alienar de si mesmo. Tornar-se aqui senhor, conservar aqui a sublimidade da sua tarefa pura de todos os impulsos inferiores e mesquinhos, que atuam nas chamadas ações desinteressadas – eis a prova, talvez a prova derradeira, que um Zaratustra deve prestar – a verdadeira prova da sua força... 5 Também ainda noutro ponto sou simplesmente o que o meu pai foi e, por assim dizer, a sua sobrevivência, após uma morte prematura. Como todo aquele que jamais viveu entre iguais e para o qual é tão inadequado o conceito de «retaliação» como, por exemplo, o conceito de direitos iguais», abstenho-me, nos casos em que contra mim se cometeu uma loucura pequena ou muito grande, de toda a medida preventiva, de toda a precaução – por conseguinte, também de toda a defesa e de toda a «justificação». A minha espécie de retaliação consiste em retribuir tão depressa quanto possível a uma palavra estúpida um dito inteligente: talvez assim ela ainda se recupere. Para me expressar com uma comparação: ofereço um boião de compota para me libertar de uma ocorrência ácida: se alguém me faz uma maldade, «desforro-me», pode disso ficar certo: encontro sem demora uma oportunidade para expressar o meu agradecimento ao «malfeitor» (por vezes, até pela ofensa) – ou para lhe pedir algo, o que pode ser mais compulsivo do que dar algo... Afigurasse-me também que a palavra mais grosseira, a carta mais inconveniente são ainda mais benignas, ainda mais honradas do que o silêncio. Aos que se calam falta quase sempre a delicadeza e a cortesia do coração; o silêncio é uma objecção, a ingurgitação produz necessariamente um mau carácter – arruína o estômago. Todos os que se calam são dispépticos. – Não gosto, como se está a ver, que se minimize a rudeza, ela é de longe a mais humana forma da contradição e, no meio da pusilanimidade moderna, uma das nossas primeiras virtudes. – Se alguém for para tal suficientemente rico, é até uma felicidade ser injusto. Um deus que viesse à terra nada mais faria do que cometer injustiças – tomar sobre si não o castigo, mas a falta, eis o que seria verdadeiramente divino. 6 A ausência de ressentimento, a clarividência sobre o ressentimento – quem sabe se, em última análise, por elas devo também ser grato à minha longa enfermidade? O problema não é simples: há que ter feito a experiência a partir da força e da fraqueza. Se algo em geral se deve objetar contra a doença, contra a fraqueza, é que nela o genuíno instinto da cura, isto é, o instinto de defesa e de combate, se enfraquece no homem. Não sabemos desembaraçar-nos de nada, não sabemos acabar seja com o que for, nada sabemos repelir – tudo nos fere. O homem e a coisa aproximam-se de modo obstrutivo, as vivências afetam-nos com demasiada profundidade, a recordação é uma ferida purulenta. Estar doente é também uma espécie de ressentimento. – Contra isto o doente tem apenas um grande remédio – dou-lhe o nome de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com que um soldado russo, para o qual é demasiado dura a campanha, se deita por fim na neve. Nada mais tomar em geral, não absorver em si seja o que for – não mais reagir... A grande razão deste fatalismo, que nem sempre é apenas a coragem para a morte, conservador da vida nas circunstâncias para ela mais perigosas, é a redução do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie de vontade de hibernação. Alguns passos mais nesta lógica e tem-se o faquir, que dorme durante semanas num esquife... Porque o homem se esgotaria demasiado depressa, se em geral reagisse, então não reage: eis a lógica. E com nada mais ele se consome a não ser com os afetos do ressentimento. O despeito, a susceptibilidade mórbida, a impotência para a retaliação, a inveja, a sede de vingança, o que há de venenoso em cada sentido – eis decerto, para o esgotado, o modo mais desvantajoso de reagir: condiciona-se assim um rápido desgaste de energia nervosa, uma intensificação doentia de secreções nocivas, por exemplo, a bílis no estômago. O ressentimento é em si o que está proibido aos doentes – o seu mal: infelizmente, é também a sua tendência mais natural. – Isso foi o que entendeu muito bem aquele profundo fisiólogo, Buda. A sua «religião», que antes se deveria denominar higiene, para não a confundir com coisas tão lastimosas como o cristianismo, fez depender a sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar dele a alma – eis o primeiro passo para a cura. «Não é pela inimizade que se chega ao fim da inimizade, é pela amizade que se põe fim à inimizade...: eis o começo da doutrina de Buda – aqui não fala a moral, mas a fisiologia. – O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém é mais nocivo do que ao próprio fraco – noutros casos, onde o pressuposto é uma natureza rica, um sentimento excessivo, um sentimento de que assenhorear-se é quase a prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que a minha filosofia empreendeu a luta contra os sentimentos de vingança e de simpatia até à doutrina da «vontade livre» – a luta com o cristianismo constituí apenas um seu caso particular – compreenderá porque é que aqui trago à plena luz a minha conduta pessoal, a minha segurança do instinto na prática. Nos momentos da décadence, interditava-os a mim como nocivos; logo que a vida se tornava de novo rica e assaz altiva, opunha-me a eles como abaixo de mim. Aquele «fatalismo russo», de que falei, emergiu em mim porque me ative tenazmente, ao longo dos anos, a situações, lugares, habitações, companhias quase insuportáveis, após me terem sido dadas por acaso – era melhor do que modificá-las, do que sentir que se poderiam modificar – do que contra elas se rebelar. Considerava então como mortalmente mau o que em semelhante fatalismo me perturbava e dele à força me despertava: - na verdade, isso era de cada vez mortalmente perigoso. – Considerar-se a si mesmo como um não querer ser «outro» – tal é em semelhantes circunstâncias a própria grande razão. 7 Outra coisa é a guerra. Por índole, sou guerreiro. Atacar faz parte dos meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo pressupõe talvez uma natureza forte; de qualquer modo, é condicionado em toda a natureza forte. Esta precisa de resistências, portanto busca a resistência: o pathos agressivo pertence tão necessariamente à força como o sentimento de vingança e a simpatia à fraqueza. A mulher, por exemplo, é vingativa: isso está implícito na sua fraqueza, tal como a sua sensibilidade perante a miséria alheia. – A força do agressor tem na oposição, de que ele precisa, uma espécie de medida; toda a expansão se revela na busca de um adversário – ou problema – poderoso: de facto, um filósofo belicoso provoca também problemas para o duelo. A tarefa não consiste em dominar as resistências, mas em superar aquelas a que se deve aplicar toda a sua força, versatilidade e mestria nas armas – consiste em dominar adversários iguais... Igualdade perante o inimigo – eis o primeiro pressuposto para um duelo leal. Onde há desprezo, não pode travar-se uma guerra; onde se decreta, onde algo se divisa abaixo de si, não deve travar-se uma guerra. – A minha prática da guerra enuncia-se em quatro proposições. Primeiro: Só ataco causas que são vitoriosas - em determinadas circunstâncias, espero até que elas sejam vitoriosas. Segundo: Só ataco causas em que não encontrarei qualquer aliado, onde me encontro sozinho – onde apenas a mim me comprometo... Nunca dei publicamente um passo que não me comprometesse: eis o meu critério da ação justa. Terceiro: Nunca ataco pessoas – sirvo-me da pessoa só como de um forte vidro de aumento, com o qual se pode tornar visível uma calamidade geral, mas furtiva e pouco apreensível. Por isso, ataquei David Strauss, mais exatamente, o sucesso de um livro velho e decrépito na «cultura alemã» – apanhei esta cultura em flagrante delito de... Também por isso ataquei Wagner, mais exatamente, a falsidade, a frouxidão do instinto própria da nossa «cultura», que confunde a subtileza com a riqueza, os epígonos com os grandes. Quarto: Só ataco coisas em que está excluída toda a diferença de pessoas, onde falta todo o fundo de más experiências. Pelo contrário, atacar é em mim uma prova de benevolência e, em certas circunstâncias, de gratidão. Honro, distingo uma coisa, uma pessoa, em virtude de a ela associar o meu nome: pró ou contra tem, para mim, o mesmo valor. Se movo a guerra ao cristianismo, tenho direito a isso, porque nunca experimentei, por parte dele, quaisquer fatalidades e impedimentos – os cristãos mais sérios foram sempre, para mim, amistosos. Eu próprio, um adversário do cristianismo de rigueur, estou longe de associar a um indivíduo o que é uma catástrofe de milénios. 8 Ousarei ainda indicar um último traço da minha natureza que me suscita, no trato com os homens, não pequenas dificuldades? É-me de tal modo peculiar uma sensibilidade perfeitamente estranha do instinto de limpeza que percepciono fisiologicamente – farejo – a proximidade ou – que digo eu? – o mais íntimo, as “vísceras” de cada alma. . . Tenho nesta sensibilidade antenas psicológicas, com que tateio e agarro todo o mistério: a múltipla imundície escondida no fundo de muitas naturezas, condicionada talvez pelo mau sangue, mas envernizada pela educação, torna-se-me já consciente quase ao primeiro contacto. Se bem observei, tais naturezas, insuportáveis à minha limpeza, pressentem também, por seu lado, a minha náusea: mas nem por isso se tornam mais perfumadas... Tal como sempre me habituei – uma extrema pureza para comigo é um pressuposto da existência, morro em condições impuras –, nado, banho-me e chapinho, por assim dizer, constantemente na água, num elemento de todo transparente e brilhante. Isto faz do meu comércio com os homens uma não pequena prova de paciência; a minha humanidade não consiste em simpatizar com o homem, mas em suportar com ele simpatizar... A minha humanidade é uma permanente auto superação. – Preciso, porém, da solidão, quero dizer, da cura, do retorno a mim, do sopro de uma brisa solta e que suavemente se agita... Todo o meu Zaratustra é um ditirambo à solidão ou, se alguém me compreendeu, à pureza... Felizmente, não há loucura casta. – Quem tem olhos para as cores, chamar-lhe-á uma pureza diamantina. – A náusea do homem, da «ralé», foi sempre o meu maior perigo... Querem ouvir as palavras com que Zaratustra expressa a libertação da náusea? Que me aconteceu? Como libertar-me da náusea? Quem rejuvenesce o meu olhar? Como voar para os píncaros, onde já nenhuma turba se senta ao pé da fonte? Deu-me asas e forças para pressentir as fontes a minha própria náusea? Na verdade, eu devia voar para as alturas e reencontrar aí a fonte da alegria! Oh! Irmãos meus, encontrei-a! Aqui, no ponto mais alto, jorra para mim a fonte da alegria! E há uma vida, em que nenhuma ralé bebe! Para mim manas, quase com excessiva violência, ó fonte da alegria! E muitas vezes esvazias a taça, porque a queres encher. E devo ainda aprender a aproximar-me de ti com maior discrição: com demasiado ímpeto pulsa ainda o meu coração, ao ir ao teu encontro: – Meu coração, em que se consome o meu Verão, o meu breve, quente, melancólico e superditoso Verão: como anseia pela tua frescura o meu coração estival! Foi-se a aflição hesitante da minha Primavera! Acabaram-se os flocos de neve da minha maldade no mês de junho! Todo eu me tornei verão e meio-dia estival! – Verão nas alturas com frescas fontes e silêncio bem-aventurado: oh! amigos meus, vinde, para que este silêncio se torne ainda mais bem-aventurado! Pois esta é a nossa altura e a nossa pátria: habitamos aqui num lugar demasiado alto e íngreme para toda a impureza e a sua sede. Mergulhai, amigos meus, o vosso olhar puro na fonte da minha alegria! Como haveria ela de com isso se turvar? Sorrir-vos-á também com a sua pureza. Na árvore do futuro, construímos o nosso ninho; nos seus bicos, as águias trazem-nos, a nós solitários, o alimento! Na verdade, não é alimento que possamos partilhar com os impuros! Estes imaginariam estar a comer fogo e queimariam a boca. Não temos aqui, na verdade, morada para os impuros! Para os seus corpos e os seus espíritos, a nossa felicidade seria uma gruta de gelo! E acima deles, como ventos impetuosos, vizinhos das águias, perto da neve e junto ao sol, queremos viver: assim vivem os ventos impetuosos. E, tal como o vento, quero ainda soprar no meio deles e com o meu espírito tirar ao seu espírito todo o alento: assim o quer o meu futuro. Na verdade, Zaratustra é um vento forte para todas as terras baixas: e a todos os seus inimigos e a tudo o que cospe e vomita dá este conselho: guardai-vos de cuspir contra o vento!... PORQUE SOU TÃO SAGAZ 1 Por que é que sei mais alguma coisa? Por que sou em geral tão sagaz? Nunca refleti sobre questões que verdadeiramente o não sejam – não me entreguei ao desperdício. – Genuínas dificuldades religiosas, por exemplo, não as conheço por experiência. Escapa-me totalmente até que ponto poderia eu ser «pecador». Falta-me analogamente um critério fidedigno para o que é um remorso: segundo o que ouvi dizer a tal respeito, um remorso não me parece digno de qualquer atenção... Nunca poderia abandonar uma ação, preferiria eliminar fundamentalmente da questão dos valores o êxito negativo, as consequências. Na consideração do êxito negativo, perde-se com demasiada facilidade a visão correta do que se fez: um remorso parece-me uma espécie de «mau olhado». Ter em maior conta o que se malogrou, porque se malogrou – eis o que já pertence à minha moral. – «Deus», «imortalidade da alma», («redenção», «além», simples conceitos a que não dediquei nenhuma atenção, também nenhum tempo, nem sequer em criança – talvez eu nunca tenha sido bastante infantil para tal? – Não considero o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: em mim decorre do instinto. Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado insolente, para me contentar com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores – no fundo, é mesmo apenas uma grosseira proibição: não deveis pensar!... De modo inteiramente diverso me interessa uma questão da qual, mais do que qualquer outra curiosidade dos teólogos, depende a «salvação da humanidade»: a questão da alimentação. Para uso corrente, pode assim formular-se: «Como hás-de alimentar-te para chegares ao teu máximo de força, de virtù no estilo da Renascença, da virtude isenta de todo o elemento moral?» – As minhas experiências são aqui tão más quanto possível; estou espantado de tão tarde ter dado ouvidos a esta questão, de tão tarde ter aprendido a «razão» a partir de tais experiências. Só a vilania completa da nossa formação alemã – o seu «idealismo» me explica até certo ponto porque é que justamente aqui permaneci antiquado até à santidade. Semelhante «formação», que de antemão ensina a perder de vista as realidades, para ir à caça de objetivos ditos «ideais», inteiramente problemáticos, por exemplo da «cultura clássica»: – como se não fosse algo de previamente condenado unir num conceito «clássico» e «alemão»! Mais ainda, é divertido – pense-se num habitante de Leipzig com «formação clássica»! – De facto, até aos meus anos de maturidade, comi sempre mal - em termos morais, comi de um modo «impessoal», «desinteressado», «altruísta», para salvação dos cozinheiros e de outros correligionários cristãos. Neguei muito a sério, por exemplo, graças à cozinha de Leipzig, na mesma época em que iniciei o estudo de Schopenhauer (1865), a minha «vontade de viver». Ter em vista uma alimentação insuficiente e ainda por cima arruinar o estômago – eis um problema que a mencionada cozinha me pareceu resolver às mil maravilhas. (Diz-se que o ano de 1866 trouxe consigo uma mudança.) Mas a cozinha alemã – quantas coisas não tem ela na consciência! A sopa antes da refeição (ainda em livros venezianos de culinária do século XVI se lhe dá o nome de alla tedesca); a carne muito cozida, a hortaliça grossa e suculenta; a degenerescência dos farináceos em pisa-papéis! Se ainda se tiver em conta a necessidade que os velhos alemães, e não só os velhos, têm de geleia animal, compreender-se-á também a origem do espírito alemão – que provém de entranhas revoltas... O espírito alemão é uma indigestão, nada consegue. – Mas também a dieta inglesa que, em comparação com a alemã, e até com a francesa, é uma espécie de «retorno à natureza », a saber, ao canibalismo, se revela profundamente contrária ao meu instinto; parece-me que dá ao espírito pés pesados – pés de senhoras inglesas... A melhor cozinha é a do Piemonte. – As bebidas alcoólicas são-me prejudiciais; um copo de vinho ou de cerveja num só dia chega perfeitamente para fazer da minha vida um «vale de lágrimas» – em Munique vivem os meus antípodas. Supondo que tenha compreendido isto já um pouco tarde, experimentei-o, porém, desde a infância. Pensava, como garoto, que beber vinho e fumar eram, de início, apenas uma vanitas de rapazes, e mais tarde, um mau hábito. Talvez a culpa deste juízo severo caiba também ao vinho de Naumburg. Para crer que o vinho dá alegria, seria preciso ser cristão, isto é, crer o que para mim constituí uma absurdidade. Coisa curiosa; se entro em extrema irritabilidade por ação de pequenas doses de álcool, muito diluídas, torno-me quase um marinheiro, quando se trata de doses fortes. Já como garoto mostrava aqui a minha bravura. Redigir numa só vigília uma grande dissertação latina e passá-la também a limpo, com a ambição de imitar na pena a severidade e a concisão de Salústio, meu modelo, bebendo sobre o meu latim um copo do maior calibre, já não estava de modo algum (quando eu era aluno da venerável Escola de Pforta) em contradição com a minha fisiologia, nem talvez ainda com a de Salústio – embora, isso sim, com a venerável Escola de Pforta... Mais tarde, lá para o meio da vida, decidi libertar-me com energia de qualquer espécie de bebida «espirituosa»: eu, adversário por excelência do vegetarianismo, tal como Richard Wagner, que me converteu, não sei com suficiente seriedade aconselhar a todas as naturezas intelectuais a incondicional abstenção do álcool. A água basta... Prefiro os lugares onde, acima de tudo, se tem a oportunidade de tirar água dos mananciais (Nice, Turim, Sils); tenho sempre à mão um pequeno copo. In vino veritas: parece que também aqui estou em desacordo com o mundo inteiro quanto ao conceito de «verdade»: para mim, o espírito paira sobre a água... Ainda algumas indicações extraídas da minha moral. Uma refeição forte é mais fácil de digerir do que uma refeição leve. O primeiro pressuposto para uma boa digestão é que o estômago entre em atividade como totalidade. É preciso conhecer a grandeza do seu estômago. Pela mesma razão, devem desaconselhar-se as refeições aborrecidas, que eu chamo as festas sacrificiais interrompidas, as refeições na table d’hôte. – Nada de refeições intermediárias, nada de café: o café ensombra o ânimo. O chá só é vantajoso pela manhã. Pouco, mas forte; se é demasiado fraco, o chá é muito prejudicial e causa má disposição durante o dia inteiro. Cada um tem aqui a sua medida, muitas vezes entre limites multo estritos e delicados. Num clima muito excitante, é desaconselhável começar pelo chá: deve, uma hora antes, começar-se com uma chávena de cacau bem espesso. – Estar o menos possível sentado; não ter fé em qualquer pensamento que não tenha surgido ao ar livre e em plena liberdade de movimento – em que também os músculos não celebrem uma festa. Todos os preconceitos provêm dos intestinos. – A sedentariedade – já uma vez o disse – é o verdadeiro pecado contra o espírito santo. 2 À questão da alimentação está intimamente ligada a questão acerca do lugar e do clima. Ninguém é livre de viver em qualquer parte; e quem tem de resolver grandes tarefas, que exigem toda a sua força, tem mesmo aqui uma escolha muito limitada. A influência climática sobre o metabolismo, a sua inibição, a sua aceleração, vai tão longe que um erro em relação ao lugar e ao clima pode não só alienar alguém da sua tarefa, mas até recusar-lhe: nem sequer a chega a ver. O vigor animal nunca nele foi assaz grande de modo a atingir-se aquela liberdade que transborda para o espiritual, em que alguém confessa: só eu posso isto... – Uma inatividade intestinal, por pequena que seja, e transformada em mau hábito, chega perfeitamente para fazer de um génio algo de medíocre, algo de «alemão»; o clima alemão basta por si só para enfraquecer vísceras fortes e até predispostas ao heroísmo. O ritmo do metabolismo está numa relação exata com a mobilidade ou a paralisia dos pés do espírito; o próprio «espírito» é apenas uma espécie desse metabolismo. Comparem-se os lugares onde há e houve homens de espírito, onde a ironia, a subtileza e a malícia se inseriam na felicidade, onde o génio quase por força se sentia em casa: todos eles apresentam uma atmosfera notavelmente seca. Paris, a Provença, Florença, Jerusalém, Atenas – tais nomes mostram uma coisa: o génio é condicionado pelo ar seco, pelo céu puro – isto é, por um metabolismo rápido, pela possibilidade de estar sempre de novo a fornecer a si grandes e até ingentes quantidades de energia. Tenho diante dos olhos um caso em que um espírito eminente e de disposição livre, simplesmente por falta de agudeza de instinto em matéria de clima, se tornou um especialista e um mal-humorado mesquinho e esquivo. E eu próprio poderia, no fim de contas, ter vindo a ser um caso idêntico, na suposição de que a doença não me tivesse forçado à razão, a refletir sobre a razão na realidade. Agora, quando já em virtude do longo exercício leio em mim como num instrumento muito delicado e fidedigno os efeitos de origem climática e meteorológica, e quando numa viagem breve, por exemplo, de Turim a Milão, calculo por meio da minha própria fisiologia os graus da humidade do ar, penso com pavor no facto terrífico de que a minha vida, até aos últimos dez anos, anos perigosos, decorreu sempre apenas em sítios errados e que me deveriam ser justamente vedados. Naumburg, Schulpforta, a Turíngía em geral, Leipzig, Basileia – outros tantos lugares calamitosos para a minha fisiologia. Se, em geral, não tenho nenhuma recordação agradável de toda a minha infância e juventude, seria uma loucura atribuir aqui um relevo às chamadas causas «morais» – por exemplo, à carência incontestável de suficiente convívio: com efeito, semelhante carência existe hoje como sempre, sem que ela me impeça de ser sereno e corajoso. Mas a incerteza in physiologicis – o maldito «idealismo» – eis a autêntica fatalidade na minha vida, o que nela há de supérfluo e estúpido, algo de que nada de bom procede, para o qual não há nenhuma compensação, nenhum suprimento. A partir das consequências deste «idealismo», explico todos os erros, todos os grandes desvios do instinto e «discrições», para fora e longe da tarefa da minha vida, por exemplo, que me tornasse filólogo – por que não, pelo menos, médico ou então qualquer outra coisa que me abrisse os olhos? No meu tempo de Basileia, toda a minha dieta intelectual, incluindo a distribuição do dia, era um desperdício inteiramente absurdo de energias extraordinárias, sem um fornecimento de energias que, de qualquer modo, compensasse tal consumpção, e mesmo sem reflexão da minha parte acerca de tal desperdício e sua compensação. Faltava toda a refinada ipseidade, toda a proteção de um instinto imperativo; era um equiparar-se a qualquer outro, um «desinteresse», um esquecimento da sua distância – algo que jamais me perdoarei. Quando já quase estava no fim, precisamente por estar quase no fim, pus-me a refletir sobre esta irrazão fundamental da minha vida – o «idealismo». Só a enfermidade é que me trouxe à razão. 3 A escolha na alimentação; a escolha do clima e do lugar; – a terceira, em que a nenhum preço se deve cometer um erro, é a escolha do seu tipo de recreação. Também aqui, e segundo o grau em que um espírito é sui generis, os limites do que lhe é permitido, isto é, útil, são cada vez mais estreitos. No meu caso, toda a leitura faz parte dos meus lazeres: faz parte, por conseguinte, do que me liberta de mim mesmo, do que me permite passear pelas ciências e pelas almas alheias – do que já não tomo a sério. A leitura reabilita-me justamente da minha seriedade. Em épocas de profundo trabalho, não se veem livros ao pé de mim: não permito então a ninguém falar ou pensar junto de mim. Eis o que eu chamo ler... Já porventura se notou que, naquela profunda tensão a que a gestação condena o espírito e, no fundo, todo o organismo, o acaso, qualquer espécie de estímulo vindo do exterior atua com excessiva veemência, «fere» demasiado profundamente? Deve evitar-se tanto quanto possível o acaso, o estímulo que vem de fora; uma espécie de auto-emparedamento constitui uma das primeiras astúcias instintivas da gestação espiritual. Permitirei eu que um pensamento estranho suba secretamente pelas paredes? – E isso é que é ler... Aos tempos de trabalho e de fecundidade segue-se o tempo da recreação: vinde a mim, livros agradáveis, espirituosos, reverenciados! – Haverá livros alemães assim?... Tenho de voltar seis meses atrás para me ver com um livro desses na mão. Que livro era esse? Um excelente estudo de Victor Brochard, les sceptiques grecs, em que também se utilizam bem as minhas Laertiana. Os cépticos, o único tipo respeitável no meio da caterva ambígua e multívoca dos filósofos!... Refugio-me, aliás, quase sempre nos mesmos livros, no fundo, um número pequeno, o dos livros para mim já comprovados. Talvez não faça parte da minha maneira de ser ler muitas coisas e muito diversas: uma sala de leitura põe-me doente. O meu estilo também não é amar muitas coisas ou muito diferentes. A circunspecção, e até mesmo a hostilidade contra os livros novos, é mais própria do meu instinto do que a «tolerância», a «largeur du coeur» e outros «amores ao próximo»... No fundo, é a um pequeno número de velhos franceses que estou sempre a regressar: creio só na cultura francesa e tenho por equívoco tudo o que na Europa se chama «cultura» (Bildung), para não falar da cultura alemã... Os poucos casos de alta cultura, com que deparei na Alemanha, eram todos de origem francesa, sobretudo a senhora Cosima Wagner, de longe a primeira voz em questões de gosto, que já ouvi... Se não leio, mas amo Pascal, como a vítima mais instrutiva do cristianismo, lentamente assassinada, primeiro no corpo, em seguida na psicologia, como a lógica integral dessa forma terrífica de crueldade humana; se tenho no espírito e, quem sabe? – talvez ainda no corpo algo da jocosidade de Montaigne; se o meu gosto de artista toma sob a sua proteção, não sem raiva, perante um génio selvagem como Shakespeare, os nomes de Molière, Corneille e Racine: tudo isso não exclui, por último, que os franceses mais recentes não sejam para mim também uma sociedade charmante. Não vejo de modo algum em que século da história se poderiam pescar conjuntamente psicólogos tão curiosos e, ao mesmo tempo, tão subtis como hoje em Paris: no meio, a título experimental – pois o seu número não é pequeno – os senhores Paul Bourget, Pierre Ioti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaître, ou, para realçar um dos de estirpe mais forte, um autêntico latino, a que sou particularmente afeiçoado, Guy de Maupassant. Prefiro esta geração, aqui para nós, mesma à dos seus grandes mestres, que foram todos contaminados pela filosofia alemã: por exemplo, o Sr. Taine por Hegel, a quem deve a incompreensão dos grandes homens e das épocas. Onde chega a Alemanha, corrompe-se a cultura. Só a guerra «salvou» o espírito em França... Stendhal, um dos mais belos acasos da minha vida – pois tudo o que na minha vida faz época foi-me trazido pelo acaso, e jamais por uma recomendação – é de todo inestimável com o seu antecipador olho de psicólogo, com a sua garra para os factos, que lembra a proximidade do maior entre os realistas (ex ungue Napoleonem); por fim, não menos digno de apreço como ateu sincero, uma species rara em França e já quase dificilmente localizável – é Prosper Mérímée... Estarei porventura com ciúmes de Stendhal? Ele tirou-me o melhor mote ateu, que eu poderia ter inventado: «a única desculpa de Deus é não existir»... Eu próprio disse algures: qual foi, até agora, a maior objecção contra a existência? Deus... 4 O mais alto conceito de lirismo foi-me dado por Heinrich Heine. Em vão procurei em todo o curso dos milénios uma música assim tão doce e apaixonada. Ele possuía aquela ironia divina, sem a qual não consigo imaginar a perfeição – aprecio o valor dos homens e das raças pelo modo como sabem compreender necessariamente Deus, sem o separar do sátiro. – E como maneja ele o alemão! Dir-se-á um dia que Heine e eu fomos, de longe, os primeiros artistas da língua alemã – a uma distância incalculável de tudo o que com ela fizeram os simples alemães. – Devo ter uma profunda afinidade com o Manfredo de Byron: encontro em mim todos esses abismos – com treze anos de idade, eu já estava maduro para esta obra. Não tenho palavras, tenho apenas um olhar para os que, na presença de Manfredo, se atrevem a proferir a palavra «Fausto». Os Alemães são incapazes de qualquer conceito de grandeza: a prova é Schumann. Certa vez, levado pela fúria contra estas coisas melífluas, compus uma anti-abertura de Manfredo, a propósito da qual Hans von Bülow disse que jamais vira coisa semelhante em papel de música: era um estupro de Euterpe. – Quando busco a minha fórmula mais elevada para Shakespeare, encontro sempre apenas esta: concebeu o tipo de César. Tais coisas não se adivinham – ou se é César ou não. O grande poeta cria apenas a partir da sua realidade – até ao ponto de, subsequentemente, já não suportar a sua obra... Quando lanço um olhar ao meu Zaratustra, ando no meu quarto daqui para ali, durante meia hora, incapaz de dominar um acesso incontível de soluços. – Nenhuma leitura conheço que tanto despedace o coração como a de Shakespeare: como deve ter sofrido um homem para assim ter necessidade de ser bobo! Compreender-se-á o Hamlet? Não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece... Mas para assim sentir importa ser profundo, abismo, filósofo... Todos temos medo na presença da verdade... E confesso: estou instintivamente seguro e certo de que lorde Bacon é o autor, o auto verdugo desta sinistra espécie de literatura: que me interessa o palavrório desses cabeças-no-ar e broncos americanos? Mas a força para a mais poderosa realidade da visão não é apenas compatível com a mais poderosa força para a ação, para a monstruosidade da ação, para o crime – também a pressupõe... Não sabemos o suficiente acerca de lorde Bacon, o primeiro realista no sentido pleno da palavra, para saber tudo quanto fez, o que quis, o que experimentou a sós consigo... E, vão para o diabo, senhores críticos! Supondo que eu tivesse atribuído o meu Zaratustra a um nome estranho, por exemplo, ao de Richard Wagner, a perspicácia de dois milénios não teria bastado para adivinhar que o autor de Humano, demasiado humano é o visionário do Zaratustra. . . 5 Ao falar aqui das distrações da minha vida, preciso ainda de uma palavra para expressar a minha gratidão por aquilo que em mim, de longe, me descontraiu no mais íntimo do coração. Tal foi, sem dúvida, o trato muito cordial com Wagner. Desisto sem custo de todas as outras minhas relações com os homens; por nenhum preço gostaria de riscar da minha vida os dias de Tribschen, dias de confiança, de serenidade, de acasos sublimes de instantes profundos... Não sei o que outros sentiram com Wagner: no nosso céu, nunca passou nuvem alguma. – E com isto volto mais uma vez à França – não tenho nenhumas razões, tenho apenas um ricto de desprezo nos lábios contra os wagnerianos e hoc genus omne, que creem honrar Wagner, lá porque o descobrem semelhante a eles mesmos... Assim como, nos meus mais profundos instintos, sou estranho a tudo o que é alemão, de modo que já a proximidade de um alemão atrasa a minha digestão, assim também o primeiro contacto com Wagner foi, na minha vida, a primeira respiração profunda: sentia-o, honrava-o como o estrangeiro, como o contraste, como o protesto personificado contra todas as «virtudes alemãs». – Nós, que fomos crianças na atmosfera pantanosa dos anos cinquenta, somos necessariamente pessimistas quanto ao conceito de «alemão»; nada mais podemos ser do que revolucionários – nunca admitiremos um estado de coisas em que o hipócrita predomine. É-me completamente indiferente se este muda hoje de cores, se veste de vermelho e traz um uniforme de hussardo... Muito bem! Wagner era um revolucionário – fugia diante dos Alemães... Como artista, não se tem nenhuma pátria na Europa exceto em Paris; a délicatesse em todos os cinco gostos artísticos, que a arte de Wagner pressupõe, o faro para as nuances, a morbidez psicológica, encontra-se apenas em Paris. Em nenhum outro lado se depara com esta paixão nas questões de forma, esta seriedade na mise en scène – eis a seriedade parisiense par excellence. Na Alemanha, não se tem noção alguma da ambição enorme que vive na alma de um artista parisiense. O alemão é bonacheirão –Wagner de nenhum modo era bonacheirão... Mas já me expressei suficientemente (em Para além do bem e do mal sobre o lugar em que Wagner tem os seus parentes próximos: é o romantismo tardio francês, aquela espécie sublime e arrebatadora de artistas como Delacroix, como Berlioz, com um fond de doença, de incurabilidade no seu ser, simples fanáticos da expressão, virtuosos de ponta a ponta... Quem foi em geral o primeiro adepto inteligente de Wagner? Charles Baudelaire, o mesmo que primeiramente compreendeu Delacroix, aquele típico décadent, no qual se reconheceu uma geração inteira de artistas – e, porventura, foi ele também o último... O que é que eu nunca perdoei a Wagner? Que ele condescendesse com os Alemães – que se tornasse um alemão imperial... Onde quer que a Alemanha chegue, corrompe a cultura. 6 Bem vistas as coisas, não teria suportado a minha juventude sem a música wagneriana. Estava, pois, condenado aos Alemães. Quando alguém pretende libertar-se de uma opressão intolerável, precisa de haxixe. Muito bem, eu precisava de Wagner. Wagner é par excellence o antídoto de tudo o que é alemão – é um veneno, não o nego... A partir do instante em que apareceu uma partitura de Tristão para piano – os meus cumprimentos, Sr. von Bülow! –, tornei-me wagneriano. Pareciam-me abaixo de mim as anteriores obras de Wagner – eram ainda demasiado vulgares, demasiado «alemãs»... Mas hoje procuro ainda uma obra de fascínio tão perigoso, de uma infinidade tão horrenda e doce como é o Tristão – em vão a procuro entre todas as artes. Todas as estranhas criações de Leonardo da Vinci perdem o seu encantamento às primeiras notas do Tristão. Esta obra é absolutamente o non plus ultra de Wagner; afrouxou em relação a ela com os Mestres cantores e o Anel. Tornar-se mais sadio – eis um retrocesso numa natureza como Wagner... Considero como uma felicidade de primeira ordem ter vivido na época justa e precisamente entre os Alemães, para estar à altura de semelhante obra: a tal ponto existe em mim a curiosidade do psicólogo. O mundo é pobre para quem nunca esteve assaz doente para esta «volúpia infernal»: é lícito, é quase imperativo, utilizar aqui uma fórmula mística. – Julgo saber melhor do que ninguém a imensidade de que Wagner é capaz, os cinquenta mundos de estranhos arroubos para os quais ninguém, exceto ele, teve asas; e, tal como sou, bastante forte para ainda tirar vantagem do que há de mais problemático e de mais perigoso e assim me tornar mais forte, chamo a Wagner o maior benfeitor da minha vida. A nossa afinidade em virtude de termos sofrido também um pelo outro mais profundamente do que os homens deste século podem suportar unirá eternamente os nossos nomes; e se Wagner é, decerto, entre os Alemães apenas um mal-entendido, também eu certamente o sou e sempre serei. – Antes de mais, dois séculos de disciplina psicológica e artística, senhores alemães!... Mas isso não se recupera. 7 – Vou ainda dizer umas palavras para os ouvidos mais seletos: o que propriamente exijo da música. Que ela seja serena e profunda, como uma tarde de outubro. Que seja peculiar, exuberante, terna, uma pequena e doce mulher com insídia e encanto... Nunca admitirei que um alemão possa saber o que é a música. Os chamados músicos alemães, sobretudo os maiores, são estrangeiros, eslavos, croatas, italianos, holandeses – ou judeus; noutros casos, alemães de forte estirpe, alemães extintos, como Heinrich Schütz, Bach e Haendel. Eu próprio sou ainda bastante polaco para contrapor a Chopin o resto da música: excetuo, por três razões, o Idílio de Sigfredo de Wagner, talvez também Liszt, que com os seus nobres acentos orquestrais excede todos os músicos; por fim, ainda tudo o que nasceu além dos Alpes – aquém... Não poderia dispensar Rossini, e menos ainda o meu Sul na música, a música do meu maestro veneziano Pietro Gasti. E quando falo do outro lado dos Alpes, refiro-me apenas a Veneza. Quando busco uma outra palavra para a música, encontro sempre apenas a palavra Veneza. Não sei estabelecer diferença alguma entre as lágrimas e a música, não sei pensar a felicidade, o Sul, sem um frémito de temor. Muito jovem, estava eu na ponte, em plena noite sombria. Veio de longe o canto: na trémula superfície gotas de ouro deslizavam. Gôndolas, luzes, música – ebriamente para o crepúsculo vogavam... Qual lira, a minha alma canta para si, por mão invisível tangida, uma secreta canção de gondoleiro, e vibra de garrida de ventura. Alguém a ouviria?... 8 Em tudo isto – na escolha do alimento, do lugar, do clima, da recreação – impera um instinto de autoconservação, que se expressa sem qualquer ambiguidade como instinto de autodefesa. Não ver e não ouvir muitas coisas, não deixar que de nós se aproximem – eis a primeira astúcia, a primeira prova de que não se é um acaso, mas uma necessidade. A palavra corrente para este instinto de autodefesa é gosto. O seu imperativo manda-nos não só dizer não, onde o sim seria um «desinteresse », mas também dizer não tão pouco quanto possível. Separar-se, afastar-se daquilo em que sempre e repetidamente o não se tornaria necessário. A razão consiste em que os dispêndios na defensiva, mesmo mínimos, ao tornarem-se regra e hábito, condicionam um empobrecimento extraordinário e inteiramente supérfluo. Os nossos grandes dispêndios são os «nãos pequenos» mais frequentes. A defesa, o não deixar aproximar, é um dispêndio – ninguém a este respeito se iluda –, uma força desperdiçada em fins negativos. Ao persistir apenas na necessidade de defesa, pode alguém enfraquecer-se o suficiente para já não ser capaz de se defender. – Se, por suposição, saio da minha casa e, em vez da serena e aristocrática Turim, encontro a pequena cidade alemã, o meu instinto teria de se fechar para repelir tudo o que nele penetrasse desse mundo insípido e covarde. Ou se encontrasse a grande cidade alemã, esse vício construído, onde nada cresce, onde todas as coisas, boas e más, se arrastam. Não deveria eu tornar-me um ouriço? – Mas ter espinhos é um desperdício, e até um duplo luxo, quando nos é dado não ter espinhos alguns, mas mãos abertas... Uma outra astúcia e autodefesa consiste em reagir o menos possível e em subtrair-se a situações e condições em que alguém seria condenado a suspender de algum modo a sua «liberdade», a sua iniciativa, e a tornar-se um simples órgão de reação. Tomo como comparação o trato com os livros. O erudito, que no fundo «folheia» apenas ainda livros – o filólogo com uma taxa média por dia de cerca de duzentos – acaba por perder inteiramente a capacidade de pensar por si. Se não folheia, também não pensa. Responde a um estímulo (– um pensamento lido), quando pensa em última análise, ainda simplesmente reage. O erudito despende toda a sua força em dizer sim e não, na crítica do que já foi pensado – pessoalmente, já não pensa... O instinto de autodefesa extenuou-se nele; caso contrário, pôr-se-ia em guarda contra os livros. O erudito – um décadent. Eis o que vi com os meus olhos: naturezas dotadas, de ricas e livres tendências, já aos trinta anos se tinham tornado uma «desgraça» pela leitura, simples fósforos que, para produzirem faísca – «ideias» –, carecem de fricção. – Ler um livro pela madrugada, ao romper do dia, em todo o vigor, na aurora da sua força – eis aquilo a que chamo vício! 9 Neste lugar, já não devo esquivar-me a fornecer a resposta verdadeira à pergunta: como se chega a ser o que se é. E afloro assim a obra-prima na arte da autoconservação – do egoísmo... Se se admitir que a tarefa está bastante acima de uma medida média, nenhum perigo seria maior do que defrontar-se com semelhante tarefa. Chegar a ser o que se é pressupõe que se tem uma suspeita mínima do que se é. Sob este ponto de vista, têm sentido e valor próprios até os erros da vida, os atalhos e os desvios temporários, os atrasos, as «discrições», a seriedade, que se despenderam em tarefas, que estão para além da tarefa. Pode aí expressar-se uma grande sagacidade, e até mesmo a suprema astúcia: onde o nosce te ipsum seria a receita para a ruína, o esquecimento de si, a auto-incompreensão, a diminuição e a contração de si, a mediocridade, transforma-se em razão de si. Em termos morais: o amor ao próximo, a vida ao serviço de outrem e de outra causa, pode ser a medida de prevenção para conservar a mais inflexível ipseidade. Eis o caso excepcional em que, contra a minha regra e convicção, tomo o partido dos impulsos «desinteressados»: eles trabalham aqui ao serviço do egoísmo, da autodisciplina. – É preciso conservar toda a superfície da consciência – a consciência é uma superfície – pura de qualquer dos grandes imperativos. Cautela com as grandes palavras, com as grandes atitudes! É nítido o risco de o instinto «se compreender » a si demasiado depressa. – Entretanto, cresce progressivamente na profundidade a «ideia» organizadora, a ideia convocada à dominação – começa por imperar, faz-nos lentamente regressar dos atalhos e dos desvios, prepara qualidades e habilidades singulares, que um dia se revelarão como meios indispensáveis em vista do todo – desenvolve em série todas as potências úteis, antes de sugerir qualquer coisa acerca da tarefa dominante, da «meta», do «fim», do «sentido». – Olhada sob esta perspectiva, a minha vida é simplesmente admirável. Para a tarefa de uma transmutação dos valores exigiam-se talvez mais faculdades do que as que alguma vez habitaram, lado a lado, num só indivíduo, sobretudo também oposições de faculdades, sem que estas houvessem de se destruir e perturbar. Hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar, sem hostilizar; nada mesclar, nada «reconciliar »; uma multiplicidade ingente que, apesar de tudo, é o contrário do caos – tal foi a condição preliminar, o longo e secreto trabalho e o dom artístico do meu instinto. A sua superior proteção revelou-se forte, na medida em que eu jamais pressenti sequer o que em mim crescia – que todas as minhas capacidades irromperam um dia de súbito, já maduras, na sua última perfeição. Não tenho nenhuma recordação de que alguma vez me tivesse esforçado – não se detecta na minha vida traço algum de luta, sou o contrário de uma natureza heroica. «Querer algo», «esforçar-se por algo», ter diante dos olhos um «fim», um «desejo » - eis o que não conheço por experiência. Neste instante ainda, olho para o meu futuro – um amplo futuro! –como quem contempla um mar calmo: nenhuma ânsia nele se encrespa. Não quero de modo algum que algo se torne diferente do que é; eu próprio não quero tornar-me diferente. E sempre assim vivi. Nunca tive qualquer desejo. Sou alguém que, aos quarenta e quatro anos de idade, pode dizer que nunca andou atrás de honras, mulheres, dinheiro! – Não é que tais coisas me tivessem faltado... Fui um dia, por exemplo, professor de universidade – nunca, nem sequer de longe, pensara em tal, pois tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Assim também, dois anos antes, fui um dia filólogo: no sentido de que o meu primeiro trabalho filológico, a minha iniciação em todo o sentido, foi solicitado pelo meu mestre Rítschl para ser publicado no seu «Museu renano» (Ritschl – digo-o com veneração – o único erudito genial com que, até hoje, deparei. Possuía aquela agradável depravação que nos caracteriza, aos que nascemos na Turíngia, e com a qual até mesmo um alemão se torna simpático: – para chegar à verdade, preferimos mesmo os caminhos secretos. Não gostaria de modo algum, com estas palavras, de minimizar o meu mais próximo compatriota, o astuto Leopold von Ranke...). 10 Importa aqui fazer uma grande reflexão. Perguntar-me-ão por que é que contei todas estas coisas pequenas e, segundo o juízo tradicional, indiferentes; causarei assim dano a mim próprio, e tanto mais quando estou destinado a representar grandes missões. Resposta: estas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, recreação, toda a casuística do egoísmo – são muito mais importantes do que tudo quanto se concebeu e, até agora, se considerou importante. É aqui justamente que importa começar, aprender de novo. O que a humanidade até agora teve em séria consideração não são sequer realidades, são simples imaginações; em termos mais estritos, mentiras provenientes dos instintos maus de naturezas doentes, perniciosas no sentido mais profundo – todos os conceitos de «Deus», «alma», «virtude», «pecado», «além», «verdade», «vida eterna»... Mas foi neles que se procurou a grandeza da natureza humana, a sua «divindade»... Todas as questões da política, da organização social, da educação, foram de cima ao fundo totalmente falsificadas, porque se tomaram como grandes homens os homens mais perniciosos – porque se ensinou a desprezar as coisas «pequenas», ou seja, as preocupações fundamentais da vida... A nossa cultura hodierna é ambígua em sumo grau... O imperador alemão pactua com o papa, como se o papa não fosse o representante do antagonismo mortal contra a vida!... O que hoje se constrói já não se mantém em pé por três anos. – Se, pois, avalio o que posso, para não falar do que após mim vem, uma subversão, uma construção sem igual, é porque tenho mais do que qualquer mortal a pretensão à palavra grandeza. Pois bem, se me comparo com os homens que, até agora, se honraram como os primeiros, a diferença salta aos olhos. Nem sequer incluo entre os homens em geral esses pretensamente «primeiros» - eles são para mim o refugo da humanidade, monstruosidades da doença e dos instintos de vingança: são simples infra-humanos nocivos, no fundo incuráveis, que se vingam da vida... Quero ser o seu contrário: o meu privilégio é ter a máxima sagacidade para todos os sinais dos instintos sadios. Não tenho em mim qualquer traço doentio; nem sequer nos tempos de grave enfermidade me tornei doentio; em vão se busca no meu ser um rasgo de fanatismo. Em nenhum instante da minha vida se me poderá apontar qualquer atitude arrogante ou patética. O pathos da atitude não pertence à grandeza; quem em geral precisa de atitudes é falso... Circunspecção perante todos os homens pitorescos! – A vida tornou-se para mim suave, e mais suave ainda quando de mim exigia o mais difícil. Quem me viu nos setenta dias deste Outono em que, sem interrupção, fiz coisas de primeira ordem que ninguém pode imitar – ou ostentar, com uma responsabilidade para todos os milénios após mim, não percepcionou em mim traço algum de tensão, mas antes uma frescura e uma serenidade transbordantes. Nunca comi com sentimentos mais agradáveis, jamais dormi melhor. – Não conheço nenhuma outra maneira de lidar com grandes tarefas além do jogo: eis, como sinal da grandeza, um pressuposto essencial. A mínima coação, o rosto sombrio, um modo qualquer de rigidez no pescoço, são tudo objecções contra um homem, e mais ainda contra a sua obra!... Não se deve ter nervos... Sofrer também com a solidão é uma objecção – eu sofri sempre apenas na «multidão»... Numa idade absurdamente prematura, com sete anos, sabia já que jamais alguma palavra humana me feriria: alguém me viu alguma vez magoado a tal respeito? – Hoje ainda, tenho para com toda a gente a mesma afabilidade, mostro-me cheio de apreço pelos mais humildes: em tudo isso não há um grão de orgulho, de secreto desprezo. Quem é objeto do meu desprezo adivinha que é por mim desprezado: graças à minha simples existência, escandalizo tudo o que no corpo tem mau sangue... A minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: nada pretender ter de diferente, nada para a frente, nada para trás, nada por toda a eternidade. O necessário não é apenas para se suportar, menos ainda para se ocultar – todo o idealismo é mentira perante o necessário – mas para o amar... PORQUE ESCREVO TÃO BONS LIVROS 1 Uma coisa sou eu, outra os meus livros. – Antes de a eles me referir, aflorarei aqui a questão da compreensão ou incompreensão destes escritos. Fá-lo-ei com a negligência que de qualquer modo convém: semelhante questão é, de facto, ainda extemporânea. Eu próprio não sou ainda atual, alguns nascem póstumos. – Tempo virá em que será necessário ter instituições em que se viva e ensine, como eu acedi a viver e a ensinar; talvez se criem até cátedras especiais para a interpretação do Zaratustra. Mas, para mim, seria uma contradição total, se eu esperasse, já hoje, ouvidos e mãos para as minhas verdades: que hoje não se escute, que hoje não se queira aprender de mim, é não só compreensível, mas até me parece justo. Não pretendo ser objeto de confusão – eis também porque a mim mesmo não me confundo. – Digo-o mais uma vez, na minha vida, é pouco o que se encontra de «má vontade»; a propósito da «má vontade» literária só com muita dificuldade poderia contar um caso. Em contrapartida, há muito de pura loucura... Parece-me que alguém, ao pegar num livro meu, proporciona a si uma das mais raras honras – admito até que tire as suas luvas – para não falar dos sapatos... Quando, uma vez, o Doutor Heinrich von Stein lamentou francamente não compreender uma só palavra do meu Zaratustra, eu disse-lhe que tudo estava bem: compreender seis frases de tal livro significa tê-las vívido, eleva os mortais a um nível mais alto do que aquele que os homens «modernos» poderiam alcançar. Como poderia eu, com este sentimento da distância, desejar sequer ser lido pelos «modernos» que conheço! – O meu triunfo é justamente o contrário do de Schopenhauer – digo «non legor, non legar» [não sou lido, não serei lido]. – Não é que goste de subestimar o prazer que, mais de uma vez, me deu a inocência em dizer não aos meus escritos. Ainda neste verão, numa altura em que com a minha grave, demasiado grave literatura, consegui talvez subverter todo o resto da literatura, um professor da Universidade de Berlim fez-me benevolamente compreender que eu devia servir-me de uma outra forma: assim ninguém lia nada. – Finalmente, não foi a Alemanha, mas a Suíça, que apresentou os dois casos extremos. Um ensaio do Dr. V.Widemann no Bund, sobre o Para além do bem e do mal, com o título «O livro mais perigoso de Nietzsche», e uma recensão global sobre os meus livros em geral, por parte do Sr. Karl Spitteler, igualmente no Bund, constituem um máximo na minha vida – abstenha-me de dizer um máximo de quê... O último, por exemplo, tratava o meu Zaratustra de «superior exercício de estilo », com o desejo de que eu, mais tarde, conseguisse também cuidar do conteúdo; o Dr. Widemann expressava-me o seu respeito pela coragem com que eu me bati pela eliminação de todos os sentimentos de decência. – Graças a uma pequena perfídia do acaso, cada frase era aqui, com uma consistência que admirei, uma verdade ao contrário: no fundo, nada mais havia a fazer do que «transmutar os valores» na sua totalidade para, de um modo notável, se acertar a meu respeito na cabeça do prego, em vez de com um prego se atingir a minha cabeça... Eis porque tanto mais procuro uma explicação. – Por fim, ninguém das coisas que os livros incluem pode ouvir mais do que já sabe. Para aquilo a que, por vivência, não se tem acesso algum, também não se têm ouvidos. Imaginemos agora um caso extremo: que um livro fale de simples vivências, que se encontram totalmente fora da possibilidade de uma experiência frequente, ou até apenas rara; que ele constitua a primeira linguagem para uma nova série de experiências. Neste caso, ainda nada se ouve, com a ilusão acústica de que onde nada se ouve também nada aí existe... Esta é, em última análise, a minha experiência comum e, se se quiser, a originalidade da minha experiência. Quem julga ter entendido algo acerca de mim fez de mim algo à sua imagem – não raro, o contrário de mim, por exemplo um «idealista»; quem de mim nada entendeu nega que eu deva em geral ser objeto de consideração. – A palavra «super-homem » para a designação de um tipo de suprema perfeição, em contraste com homens «modernos», com homens «bons», com cristãos e outros niilistas – uma palavra que, na boca de um Zaratustra, do aniquilador da moral, se torna uma palavra muito ponderada, foi entendida quase em toda a parte com plena ingenuidade, no sentido dos valores cujo contrário se manifestou na figura de Zaratustra, isto é, como tipo «idealista» de uma espécie superior de homem, meio «santo», meio «génio»... Um outro cornífero erudito imputou-me, por causa dela, o darwinismo; e reconheceu-se mesmo aí o «culto dos heróis», por mim tão maliciosamente rejeitado – desse grande moedeiro falso em saber e vontade, Carlyle. A quem eu ciciei ao ouvido que deveria atender mais a César Bórgia do que a Parsifal, e não confiou nos seus ouvidos. – Que eu não seja curioso das recensões dos meus livros, em especial através de jornais, deve ser-me perdoado. Os meus amigos, os meus editores sabem-no e nunca me falam de semelhantes coisas. Houve um caso particular em que deparei com tudo o que de errado se cometeu a propósito de um único livro – era o Para além do bem e do mal; deveria a propósito retribuir-lhe com um comentário cortês. Acreditar-se-á que a National Zeitung – um jornal prussiano, advirto os meus leitores estrangeiros de que, com a devida vénia, só leio o Journal des Débats – soube entender toda a seriedade do livro como um «sinal dos tempos», como a autêntica e correta filosofia dos Junker, à qual apenas faltava a proeza para o jornal de cruzada?... 2 Foi para os Alemães que isto se disse: pois, sob outros aspectos, tenho leitores em toda a parte – simples inteligências seletas, caracteres genuínos, educados em elevadas posições e deveres; conto até entre os meus leitores génios reais. Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhaga, em París e Nova Iorque – em toda a parte me descobriram: no raso território da Europa, na Alemanha, é que não fui descoberto... E, confesso-o, fico ainda mais satisfeito com aqueles que não são meus leitores, que não ouviram nem o meu nome, nem a palavra filosofia; mas onde quer que eu vá, aqui em Turim, por exemplo, todas as caras se mostram prazenteiras e benévolas, só de me ver. O que até agora mais me adulou foi que algumas velhas vendedoras ambulantes não descansaram até escolherem para mim as suas uvas mais doces. Importa ser filósofo assim... Não é em vão que os Polacos se consideram os franceses entre os eslavos. Uma encantadora russa nem por um instante se enganará acerca da minha origem. Não consigo tornar-me solene, quando muito, fico apenas embaraçado... Pensar como alemão, sentir como alemão – tudo consigo, mas isso está para além das minhas forças... O meu velho Ritschl afirmava até que eu concebia os meus ensaios filológicos como um romancista parisiense – com uma absurda tensão. Até em Paris se espantaram com «toutes mes audaces et finesses» – a expressão é de Monsieur Taine; receio que, nas mais elevadas formas do ditirambo, se encontre em mim mesclado algo daquele sal, que jamais se torna insípido – «alemão» –, esprit... Não consigo agir de outro modo, valha-me Deus! Amem. – Todos sabemos, alguns sabem até por experiência, o que é um animal orelhudo. Muito bem, atrevo-me a afirmar que tenho as menores orelhas. Isto é de não pouco interesse para as mulherzinhas – parece-me que se sentem mais bem compreendidas por mim?... Sou o anti-asno par excellence e, deste modo, um monstro da história universal = sou, em grego, e não apenas em grego, o anticristo... 3 Conheço em certa medida os meus privilégios como escritor; em casos singulares, foi-me também testemunhado em que medida significativa o trato habitual com os meus escritos «corrompe» o gosto. Já não se suportam simplesmente os outros livros, e muito menos ainda os filosóficos. É uma distinção sem igual ingressar neste mundo nobre e delicado – importa para tal não ser alemão; é, em última análise, uma distinção que é preciso merecer. Quem pela intensidade do querer tem comigo afinidade experimenta os verdadeiros êxtases do aprender: com efeito, venho de píncaros que jamais alguma ave sobrevoou, conheço abismos em que nenhum pé ainda se transviou. Disseram-me que não é possível pôr de lado um livro meu – que perturbo até o descanso noturno... Não há espécie alguma mais altaneira e, ao mesmo tempo, mais subtil de livros: – atingem aqui e além o que de mais elevado se pode alcançar na terra, o cinismo; há que conquistá-los quer com os mais delicados dedos, quer com os mais poderosos punhos. Toda a enfermidade da alma, mesmo a dispepsia, impede, de uma vez por todas, neles entrar: é preciso não ter nervos, é necessário ter entranhas joviais. Neles impede entrar não só a pobreza, a atmosfera dos recantos de uma alma, mas muito mais ainda a cobardia, a impureza, o secreto rancor ínsito nas vísceras: uma palavra minha arrasta para a luz todos os maus instintos. Entre os meus conhecidos, tenho vários animais para investigação, nos quais verifico a diversidade, uma diversidade muito instrutiva, das reações aos meus escritos. Quem pretende nada ter a ver com o seu conteúdo, por exemplo os chamados meus amigos, torna-se «impessoal»: felicitam-me por novamente ir «tão longe» – e ainda por ter havido um progresso na maior serenidade do tom... Os «espíritos » inteiramente viciados, as «belas almas», que são falsidade de cima a baixo, não sabem absolutamente o que irão pôr-se a fazer com tais livros – por conseguinte, olham-nos à socapa, eis a bela e lógica consequência de todas as «belas almas». Os corníferos que se encontram entre os meus conhecidos, simples alemães, com a devida vénia, dão a entender que nem sempre são da minha opinião, mas de vez em quando, por exemplo... Ouvi até isto a propósito do Zaratustra... De igual modo, todo o «feminino» no ser humano, e também nos varões, é para mim um portão fechado: jamais se entrará neste labirinto de conhecimentos temerários. É preciso nunca ter sido complacente consigo mesmo, importa ter entre os seus hábitos a dureza, para no meio de duras e puras verdades se permanecer jovial e sereno. Quando me ponho a imaginar a imagem de um leitor perfeito, surge sempre um monstro de coragem e de curiosidade e, além disso, ainda algo de maleável, astuto, circunspecto, um aventureiro e descobridor nato. Finalmente: àquele a quem só, no fundo, me dirijo eu não saberia dizer melhor do que o disse Zaratustra: a quem deseja ele exclusivamente contar o seu enigma? A vós, intrépidos esquadrinhadores, tentadores, e a quem quer que com velas astutas embarcou em mares temerosos; A vós, ébrios de enigmas, jubilosos com o crepúsculo, e cuja alma se deixa seduzir pelas flautas a todos os esconsos abismos: – Não quereis decerto, com mão cobarde, agarrar-vos a um fio; e onde podeis adivinhar, abominais inferir... 4 Vou ainda dizer, ao mesmo tempo, uma palavra muito geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna do pathos mediante signos, e inclusive o ritmo de tais signos – eis o sentido de todo o estilo; e considerando que a multiplicidade dos estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do estilo em geral, de que alguma vez um homem dispôs. É bom todo o estilo que comunica realmente um estado interno, que não se engana acerca dos signos, a propósito do ritmo dos signos, acerca dos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. O meu instinto é aqui infalível – O estilo bom em si – é uma pura loucura, simples «idealismo», algo como o «belo em si», como o «bom em si», como a «coisa em si»... Pressupõe-se já sempre que há ouvidos – que há homens capazes e dignos de um pathos assim; que não faltam aqueles a quem tudo isto se pode comunicar. – O meu Zaratustra, por exemplo, anda ainda hoje à procura de homens assim – ah! terá ainda de buscá-los por muito tempo! – é preciso ter muito valor para o ouvir... E, até agora, ainda não existe ninguém que aprenda a arte que aí se prodigalizou: nunca alguém despendeu mais recursos artísticos novos, inéditos, e realmente para tal criados. Faltava demonstrar que uma coisa semelhante era possível justamente na língua alemã: eu próprio o teria antes negado de um modo inflexível. Antes de mim, não se sabe do que é capaz a língua alemã – do que em geral é capaz a linguagem. – A arte do grande ritmo, o grande estilo do discurso para exprimir os altos e baixos temíveis da paixão sublime, sobre-humana, só por mim foi descoberta; com um ditirambo, como o do terceiro Zaratustra, com o título de «Os sete selos», voei milhares de milhas acima do que até hoje se chamou poesia. 5 Que nos meus escritos fala um psicólogo, que não tem igual, eis porventura a primeira discriminação a que chega um bom leitor, tal como eu o mereço, que me lê como os bons velhos filólogos liam o seu Horácio. As proposições a respeito das quais, no fundo, todo o mundo é unânime, para não falar dos filósofos de toda a gente, dos moralistas e outras cabeças ocas, cabeças-de-couve – aparecem em mim como ingenuidades do erro: por exemplo a crença de que «não egoísta» e «egoísta» são opostos, ao passo que o próprio ego é simplesmente uma «mais alta vertigem», um «ideal»... Não há nem ações egoístas, nem ações não egoístas: ambos os conceitos são um contrassenso psicológico. Ou a proposição – «o homem aspira à felicidade»... ou a proposição – «a felicidade é a recompensa da virtude»... ou a proposição – «prazer e desprazer são opostos»... a Circe da humanidade, a moral, falsificou –moralizou – inteiramente a psicologia, até ao absurdo terrífico de que o amor deve ser algo de «não egoísta»... É preciso centrar-se em si, importa firmar-se corajosamente nas duas pernas, de outro modo não se pode amar. Eis o que, em última análise, as mulherzinhas sabem muito bem: é para elas um inferno lidar com homens desinteressados, com homens simplesmente objetivos... Posso aqui atrever-me à presunção de que conheço as mulherzinhas? Eis o que faz parte do meu dote dionisíaco. Quem sabe? Sou porventura o primeiro psicólogo do eterno feminino. Todas elas gostam de mim – eis uma história já velha: excetuando as mulherzinhas infelizes, as «emancipadas », a quem falta o material para ter filhos. – Felizmente, não tenho vontade de me deixar dilacerar: a mulher perfeita dilacera, quando ama... Conheço essas afáveis ménades... Ah! que pequeno predador perigoso, sub-reptício, subterrâneo! E, apesar de tudo, que agradável!... Uma mulherzinha, que prossegue a sua vingança, derrubaria o próprio destino. – A mulher é infernalmente muito pior do que o homem, e também mais sagaz; o bem na mulher é já uma forma de degenerescência... Em todas as chamadas «belas almas» há, no fundo, um mal-estar fisiológico – não digo tudo, de outro modo tornar-me-ia medi-cínico. A luta por direitos iguais é já um sintoma de enfermidade: qualquer médico o sabe. – Quanto mais mulher for verdadeiramente a mulher, tanto mais se defenderá com mãos e pés dos direitos em geral: o estado de natureza, a eterna guerra entre os sexos, proporciona-lhe de longe o primeiro lugar. – Alguém prestou ouvidos à minha definição do amor? É a única digna de um filósofo. Amor – nos seus meios, é a guerra; no seu fundamento, o ódio mortal entre os sexos. – Alguém ouviu a minha resposta à pergunta sobre o modo como se cura – «salva» – uma mulher? Faça-se lhe um filho. A mulher precisa de filhos, o homem é sempre apenas meio: assim falou Zaratustra. «Emancipação da mulher» – eis o ódio instintivo da mulher incapaz, isto é, infecunda, contra a mulher fecunda – a luta contra o «homem» é sempre apenas meio, subterfúgio, táctica. Ao elevarem-se como «mulher em si», como «mulher superior », como «mulher idealista», rebaixam o nível geral da mulher; não há para isso meio mais seguro do que a educação ginasial, as calças e os direitos políticos do rebanho de votantes. No fundo, as emancipadas são as anarquistas no mundo do «eterno feminino», as estéreis, cujo instinto mais fundo é a vingança... Uma espécie inteira do mais malévolo «idealismo» – que, de resto, ocorre também nos homens, por exemplo em Henrik Ibsen, essa típica e velha solteirona – tem como objetivo envenenar a boa consciência, a natureza no amor sexual... E, para não deixar qualquer dúvida acerca da minha disposição, tão honesta quanto severa nesta consideração, quero ainda notificar uma proposição extraída do meu código moral contra o vício: sob o nome de vício, combato toda a espécie de antinatureza ou, se se gostar de palavras bonitas, o idealismo. Eis a proposição: «A pregação da castidade é uma incitação pública à antinatureza. Todo o desprezo do amor sexual, toda a sua adulteração mediante o conceito de «impuro», é o próprio crime contra a vida – é o pecado autêntico contra o espírito santo da vida.» 6 Para acerca de mim, enquanto psicólogo, proporcionar uma ideia, apresento um curioso fragmento da psicologia, que aparece em Para além do bem e do mal! – proscrevo, aliás, toda a conjectura sobre quem descrevo nesta passagem. «O génio do coração, tal como o possui aquele grande desconhecido, o Deus tentador e o nato caçador de ratos das consciências, cuja voz sabe descer até ao mundo subterrâneo de cada alma, que não diz uma palavra, não lança um olhar em que não resida um intento e um estratagema de sedução, cuja mestria implica que ele consiga brilhar – e não o que ele é, mas o que para aqueles que o seguem é uma coação mais para dele se aproximarem, para sempre mais íntima e profundamente o seguirem... O génio do coração, que faz emudecer tudo o que é ruidoso e autocomplacente e ensina a ouvir, que amacia as almas rudes e lhes faz saborear um novo anelo – permanecer tranquilas, como um espelho, para que nelas se reflita o céu profundo... O génio do coração, que ensina a mão tosca e precipitada a hesitar e a agarrar com maior graciosidade; que adivinha o tesouro recôndito e esquecido, a gota de bondade e de espiritualidade suave sob o gelo turvo e espesso e é uma varinha de vedor para todas as pepitas de ouro que, durante muito tempo, permaneceram sepultadas e encerradas sob muita lama e areia... O génio do coração, por cujo contacto cada qual se torna mais rico, não agraciado e surpreendido, não deliciado e oprimido pelo bem estranho, mas mais rico em si mesmo, mais novo do que antes, liberto, insuflado e sondado por um vento de degelo, talvez mais inseguro, mais enternecedoramente frágil e abalado, mas cheio de esperanças que ainda não têm nome algum, cheio de uma nova vontade e de uma nova corrente, cheio de um novo não-querer e de novas contracorrentes...» O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA 1 Para ser justo em relação ao «Nascimento da tragédia» (1872), é necessário esquecer algumas coisas. Semelhante obra exerceu influência e até fascínio com o que nela foi um equívoco – com a sua aplicação ao wagnerismo, como se este fosse um sintoma de ascensão. Este escrito foi, por isso, um acontecimento na vida de Wagner: só a partir de então surgiram grandes esperanças no nome de Wagner. Ainda hoje me recordam ao considerarem-se as circunstâncias de que brotou o Parsifal: como eu tive a culpa de haver surgido uma tão elevada opinião a propósito do valor cultural desse movimento. – Vi várias vezes citado o meu escrito como «o renascimento da tragédia a partir do espírito da música»: apenas se atendeu a uma nova fórmula da arte, da intenção e da missão de Wagner – ignorou-se, no fundo, aquilo que o escrito continha de mais valioso. «Helenismo e pessimismo» – teria sido um título sem qualquer equívoco: a saber, como primeira elucidação sobre o modo como os Gregos acabaram com o pessimismo – como o superaram... A tragédia é justamente a prova de que os Gregos não eram pessimistas; Schopenhauer enganou-se aqui, como se enganou em tudo. – Olhado com alguma neutralidade, o «Nascimento da tragédia» parece muito extemporâneo: ninguém poderia sequer sonhar que ele foi começado sob o estrépito da batalha de Wörth. Refleti sobre estes problemas diante das muralhas de Metz, nas frias noites de setembro, em pleno serviço de enfermagem; poderia antes supor-se que semelhante escrito tem já uns cinquenta anos. É politicamente indiferente – «não alemão», dir-se-á hoje – tresanda escandalosamente a hegelianismo, só em algumas fórmulas é que está assolado pelo perfume cadavérico de Schopenhauer. Uma «ideia» – o contraste entre dionisíaco e apolíneo – encontra-se traduzida para elementos metafísicos; a própria história concebe-se como o desenvolvimento desta «ideia»; na tragédia, o contraste ab-roga-se em unidade; sob tal óptica, coisas que ainda nunca se tinham visto face a face surgem de súbito contrapostas, iluminadas e concebidas umas a partir das outras... A ópera, por exemplo, e a revolução... As duas inovações decisivas do livro são, em primeiro lugar, a compreensão do fenómeno dionisíaco entre os Gregos – dos quais o livro proporciona a primeira psicologia, vendo nele a única raiz de toda a arte grega – e a compreensão do socratismo: Sócrates é considerado, pela primeira vez, como instrumento da decomposição grega, como típico décadent. A «racionalidade» contra o instinto. A «racionalidade» a todo o custo como força perigosa, como força que mina a vida! – E, em todo o livro, um silêncio profundo e hostil sobre o cristianismo. Este não é nem apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos – os únicos valores que o «Nascimento da tragédia» reconhece: é niilista no sentido mais profundo, ao passo que no símbolo dionisíaco se atinge o limite extremo da afirmação. Alude-se uma vez aos sacerdotes cristãos como a uma «espécie maligna de anões», de «seres subterrâneos»... 2 Este começo é notável além de todo o limite. Eu descobrira, ademais da minha íntima experiência, o único símbolo e contrapartida que a história tem – fora o primeiro a descobrir o admirável fenómeno do dionisíaco. Em virtude de ter reconhecido Sócrates como décadent, proporcionei ainda uma prova inteiramente inequívoca de como era pequeno o perigo que a segurança do meu tacto psicológico corria por parte de qualquer idiossincrasia moral: – a própria moral, enquanto sintoma de décadence, é uma inovação, uma singularidade de primeira ordem na história do conhecimento. Como me elevei com estas duas coisas acima da lamentável e superficial verborreia acerca do optimismo contra o pessimismo! – Fui o primeiro a ver a genuína oposição: – o instinto de degenerescência que, com subterrânea sede de vingança, se vira contra a vida (– o cristianismo, a filosofia de Schopenhauer, em certo sentido já a filosofia de Platão, todo o idealismo, como formas típicas) e uma fórmula da máxima afirmação, nascida da plenitude, da superabundância, um dizer sim sem reserva, até mesmo ao sofrimento, à própria culpa, a tudo o que é problemático e estranho na existência... Este sim derradeiro, entusiasta, exuberante e folgazão à vida não é só o mais excelso discernimento, é também o discernimento mais profundo, o mais rigorosamente confirmado e sustentado pela verdade e pela ciência. Nada do que existe se deve pôr de lado, nada é supérfluo – os aspectos da existência recusados pelos cristãos e por outros niilistas são até de uma ordem infinitamente mais elevada na hierarquia dos valores do que aquilo que o instinto de décadence tem de aprovar e chamar bom. Compreender isto cabe à coragem e, como sua condição, a um excesso de força: com efeito, só enquanto a coragem ousa atirar-se para a frente é que, segundo o grau de força, alguém se aproxima da verdade. Para o forte, o conhecimento, o dizer sim à realidade é uma necessidade tal como, para o fraco, sob a inspiração da fraqueza, também é uma necessidade a cobardia e a fuga perante a realidade – o «ideal»... A estes não está patente o conhecer: os décadents precisam da mentira, esta é uma das condições da sua conservação. Quem não só compreende a palavra «dionisíaco», mas se compreende a si na palavra «dionisíaco», não necessita de qualquer refutação de Platão, ou do cristianismo, ou de Schopenhauer – fareja a putrefação... 3 Até que ponto encontrei assim o conceito de «trágico», o conhecimento definitivo sobre o que é a psicologia da tragédia, foi por mim expresso ultimamente ainda no Crepúsculo dos ídolos (última página). «O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade – eis o que eu chamo dionisíaco, eis o que adivinhei como ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para se livrar do terror e da compaixão, não para se purificar de uma emoção perigosa mediante a sua descarga veemente (assim o entendera Aristóteles), mas para, além do terror e da compaixão, ser ele mesmo o eterno prazer do devir – prazer que encerra em si também a alegria do aniquilamento...» Tenho, neste sentido, o direito de me considerar a mim mesmo como o primeiro filósofo trágico – isto é, o extremo contraste e o antípoda de um filósofo pessimista. Antes de mim, não existia a transposição do dionisíaco em pathos filosófico: faltava a sabedoria trágica – em vão procurei os seus indícios nos grandes gregos da filosofia, nos que existiram dois séculos antes de Sócrates. Permaneceu em mim uma dúvida quanto a Heráclito, em cuja proximidade em geral me sinto com um ânimo mais caloroso, mais bem-disposto do que em qualquer outro ponto. A afirmação do desvanecimento e da aniquilação, o elemento decisivo numa filosofia dionisíaca, o dizer sim à oposição e à guerra, o devir, com a radical renúncia ao próprio conceito de «ser» – eis onde devo, em todas as circunstâncias, reconhecer a minha maior afinidade com o que até agora foi pensado. A doutrina do «eterno retorno», isto é, de um ciclo incondicionado e infinito de todas as coisas – esta doutrina de Zaratustra poderia, em última análise, ter sido já também ensinada por Heráclito. Pelo menos, a Stoa, que herdou de Heráclito quase todas as suas ideias fundamentais, apresenta dela alguns vestígios. 4 Deste escrito emana uma imensa esperança. Ao fim e ao resto, não tenho qualquer fundamento para não retomar a esperança num futuro dionisíaco da música. Lancemos o olhar para um século depois de nós, suponhamos que é bem-sucedido o meu ataque a dois milénios de antinatureza e de ofensa à humanidade. O novo partido da vida, que tome nas mãos a maior de todas as tarefas, a educação superior da humanidade, inclusive a aniquilação implacável de tudo o que é degenerado e parasita, tornará de novo possível sobre a terra o excesso de vida de que novamente deve provir o estado dionisíaco. Prometo uma idade trágica: a arte mais elevada no dizer sim à vida, a tragédia, renascerá quando a humanidade tiver por detrás de si, sem sofrer, a consciência das mais duras, porém, mais necessárias, guerras... Um psicólogo poderia ainda acrescentar que aquilo que ouvi nos meus anos juvenis na música wagneriana nada em geral tem a ver com Wagner; que quando eu descrevia a música dionisíaca, descrevia o que ouvira – que tive de traduzir e transfigurar instintivamente tudo para o novo espírito que em mim transportava. A prova disto, tão forte quanto o pode ser uma prova, é o meu escrito Wagner em Bayreuth: em todas as passagens psicologicamente decisivas, fala-se apenas de mim – pode pôr-se sem reservas o meu nome ou a palavra «Zaratustra» onde o texto apresenta a palavra Wagner. A imagem completa do artista ditirâmbico é a imagem do poeta preexistente, Zaratustra, esboçado com profundidade abissal e sem aflorar sequer um instante a realidade wagneriana. O próprio Wagner teve disso uma ideia; já não se reconheceu em tal escrito. – Igualmente a «ideia de Bayreuth» se transformou em algo que, para quem conhece o meu Zaratustra, não será um conceito enigmático: naquele grande meio-dia, em que os eleitos se dedicam à maior de todas as tarefas – a visão, quem sabe?, de uma festa, que eu ainda viverei... O pathos das primeiras páginas é histórico-universal; o olhar, de que se fala na sétima página, é o autêntico olhar de Zaratustra; Wagner, Bayreuth, toda a pequena baixeza alemã, é uma nuvem em que se reflete uma infinita fata morgana do futuro. Até em sentido psicológico, todos os traços decisivos da minha própria natureza se encontram inseridos na de Wagner – a coexistência das forças mais luminosas e fatais, a vontade de poder, tal como jamais um homem a possuiu, a implacável audácia na esfera espiritual, a força ilimitada de aprender sem que, por isso, a vontade de ação sofra dano. Tudo neste escrito é precognição: a proximidade do regresso do espírito grego, a necessidade de anti-alexandres, que voltem a atar o nó górdio da cultura grega, depois de ele ter sido desfeito... Ouça-se o acento histórico-mundial com que, na página 30, se introduz o conceito de «disposição trágica»: há apenas acentos histórico-mundiais em semelhante escrito. Eis a mais estranha «objetividade» que existir pode: a absoluta certeza sobre o que eu sou projetava-se numa qualquer realidade casual – a verdade acerca de mim expressava-se a partir de uma terrífica profundidade. Na página 71, descreve-se e antecipa-se com decisiva segurança o estilo de Zaratustra; e jamais se encontrará uma expressão mais grandiosa do acontecimento Zaratustra, do ato de uma enorme purificação e consagração da humanidade, do que a que se encontra nas páginas 43-46. AS CONSIDERAÇÕES INTEMPESTIVAS 1 As quatro Intempestivas são belicosas de princípio ao fim. Mostram que eu não era nenhum «João sonhador», que me dá prazer desembainhar a espada – e talvez ainda que a sabia perigosamente empunhar. O primeiro ataque (1873) incidiu na cultura alemã, que nessa altura eu já desdenhosamente olhava com um desprezo implacável. Sem sentido, sem substância, sem meta: uma simples «opinião pública». Não há pior mal-entendido do que julgar que o grande êxito das armas alemãs demonstra alguma coisa a favor desta cultura – ou até a sua vitória sobre a França... A segunda Intempestiva (1874) traz à luz o que há de perigoso, de torturante e envenenador da vida na nossa forma de cultivar a ciência –: a vida que se torna enferma nesta engrenagem e neste mecanismo desumanos, na «impessoalidade» do trabalhador, na falsa economia da «divisão do trabalho». O fim, a cultura, perde-se: - o meio, o moderno sistema da ciência, barbariza... Neste ensaio, o «sentido histórico », de que o presente século se orgulha, é pela primeira vez reconhecido como doença, como típico sinal da decadência. – Na terceira e quarta Intempestivas, enquanto indícios de um conceito mais elevado de cultura, do restabelecimento do conceito de «cultura», opõem-se duas figuras do mais duro egoísmo, autodisciplina, tipos extemporâneos par excellence, cheios de soberano desprezo perante tudo o que à sua volta se chama «império», «cultura», «cristianismo», «Bismarck», «êxito» – Schopenhauer e Wagner ou, numa palavra, Nietzsche... 2 Destes quatro atentados, o primeiro teve um êxito extraordinário. O rumor que suscitou foi, em todos os sentidos, magnífico. Eu tocara na ferida de uma nação vitoriosa – porquanto a sua vitória não seria um acontecimento da civilização, mas talvez, talvez algo de inteiramente diferente... A resposta veio de todos os lados, e não apenas dos velhos amigos de David Strauss, a quem eu pus a ridículo como o tipo de filisteu cultural alemão e satisfait, em suma, como autor do seu evangelho de cervejaria acerca da «velha e nova fé» (– a expressão filisteu cultural passou do meu escrito para a linguagem). Esses velhos amigos, aos quais enquanto wurtemburgueses e suábios eu desferira um golpe profundo ao achar o seu prodígio, o seu Strauss, cómico, responderam de modo tão honesto e grosseiro quanto eu poderia desejar; as réplicas prusianas foram mais sagazes – tinham em si mais «azul de Berlim». O mais inconveniente expressou-o um periódico de Leipzig, o mal afamado «Grenzboten»; tive dificuldade em conter os passos dos que em Basileia se encheram de indignação. A meu favor decidiram-se incondicionalmente apenas alguns velhos senhores, por razões complexas e, em parte, inexplicáveis. Entre eles, Ewald em Gotinga, que deu a entender que o meu atentado fora mortal para Strauss. Também o velho hegeliano Bruno Bauer, em quem tive a partir de então um dos meus leitores mais atentos. Nos seus últimos anos, gostava, para se referir a mim, de dar uma sugestão, por exemplo ao Sr. von Treitschke, o historiador prussiano, no qual se poderia informar acerca do conceito, para ele perdido, de «civilização». As coisas mais dignas de reflexão, e também as mais longas sobre o escrito e o seu autor, foram ditas por um antigo discípulo do filósofo von Baader, um professor Hoffmann em Würzburg. Previu para mim, a partir desse escrito, um grande futuro – suscitar uma espécie de crise e a suprema decisão no problema do ateísmo, adivinhou em mim como que o seu tipo mais instintivo e mais inconsiderado. O ateísmo fora o que me levara a Schopenhauer. – De longe muito mais ouvida e mais amargamente sentida foi uma apologia extraordinariamente enérgica e ousada do, aliás, tão brando Karl Hillebrand, o último alemão humano que sabia usar a pena. Leia-se o seu ensaio na Augsburger Zeitung; pode hoje ler-se numa forma um tanto atenuada, nas suas obras completas. Expôs-se aí o escrito como um acontecimento, como ponto de viragem, como primeira autoavaliação, como excelente prelúdio, como um verdadeiro retorno da seriedade alemã e da paixão alemã pelas coisas do espírito. Hillebrand mostrou uma altíssima consideração pela forma do escrito, pelo seu gosto apurado, pelo seu perfeito tacto na discriminação de pessoas e coisas: assinalou-o como o melhor escrito polémico que se escrevera em alemão – na arte da polémica justamente tão perigosa e tão desaconselhável aos Alemães. Com um sim incondicional, excedendo-me até no que eu ousara dizer sobre a dilaceração da língua na Alemanha (– hoje, brincam aos puristas e já não sabem construir uma frase –), com um desdém semelhante relativamente aos (primeiros escritores) desta nação, ele acabava por exprimir a sua admiração pela minha coragem – aquela «enorme coragem que leva ao banco dos réus justamente os favoritos de um povo»... O efeito ulterior deste escrito é, de facto, inestimável na minha vida. Ninguém, até agora, procurou argumentar comigo. Faz-se silêncio, lida-se comigo na Alemanha com uma circunspecção sorumbática: usei assim, desde há anos, de uma incondicional liberdade de palavra para a qual ninguém, hoje, pelo menos no «império alemão», tem espaço suficiente. O meu paraíso é «a sombra da minha espada»... No fundo, pus em prática uma máxima de Stendhal – aconselha ele que com um duelo se entre na sociedade. E como soube escolher o meu adversário! O primeiro livre-pensador alemão!... Na realidade, encontrou aqui a sua primeira expressão uma nova espécie de liberdade de pensamento: até hoje, nada me foi mais estranho e menos afim do que toda a espécie europeia e americana de «libre penseurs». Com eles, como com incorrigíveis cabeças ocas e arlequins das «ideias modernas», me encontro numa mais profunda discordância do que com qualquer dos seus adversários. Também eles, à sua maneira, pretendem «melhorar» a humanidade, à sua imagem; fariam uma guerra implacável contra o que eu sou, o que eu quero, supondo que o compreendessem – todos eles acreditam ainda no «ideal»... Eu sou o primeiro imoralista. 3 Que as Intempestivas designadas com os nomes de Schopenhauer e Wagner possam servir peculiarmente para a compreensão ou também apenas para a abordagem psicológica de ambos os casos, não o posso afirmar, exceto, como é óbvio, num pormenor. Já ali se delineia com profunda segurança de instinto o que há de elementar na natureza de Wagner enquanto dotação histriónica que, nos seus meios e nas suas intenções, tem apenas as suas consequências. No fundo, com estes dois escritos, quis fazer algo de inteiramente diferente da psicologia: – um problema da educação sem igual, um novo conceito de autodisciplina, autodefesa, até à dureza, um caminho para a grandeza e para tarefas histórico-universais aguardava a sua primeira expressão. Em termos globais, agarrei pelos cabelos dois tipos famosos e ainda não de todo fixados, como se agarra pelos cabelos uma oportunidade de expressar algo, para assim ter na mão mais um par de fórmulas, de signos, de meios linguísticos. Ao fim e ao cabo, isto já está indicado com uma sagacidade perfeitamente inquietante na página 93 da terceira Intempestiva. De igual modo Platão se serviu de Sócrates como de uma semiótica para Platão. – Agora, ao olhar a partir de alguma distância para aqueles estados de que são testemunho os referidos escritos, não pretendo negar que, no fundo, apenas acerca de mim falam. O escrito Wagner em Bayreuth é uma visão do meu futuro; em contrapartida, em Schopenhauer como educador, descreve-se a minha história interior, o meu devir. Acima de tudo, a minha caução!... O que hoje sou, o lugar em que hoje me encontro – numa altura em que já não falo com palavras, mas com relâmpagos – oh!, quão longe deles estava ainda então! – mas via a terra – não me enganei sequer um instante quanto ao caminho, ao mar, ao perigo – e o êxito! Que grande tranquilidade em prometer, que olhar feliz para um futuro que não há-de permanecer apenas uma promessa! – aqui, cada palavra é viva, profunda, íntima; não falta o que é mais doloroso, há palavras que manam justamente sangue. Mas sopra sobre tudo um vento de grande liberdade; a própria ferida já não aparece como objecção. O modo como compreendo o filósofo, matéria explosiva temível, perante a qual tudo está em perigo, como separo em milhas de distância o meu conceito de «filósofo» de um conceito que até em si encerra ainda um Kant, para já não falar dos «ruminantes académicos» e de outros professores de filosofia: a seu respeito aquele escrito proporciona uma instrução inestimável, admitindo ainda que aqui, no fundo, quem fala não é «Schopenhauer como educador», mas o seu contrário, Nietzsche como educador». – Tendo em consideração que o meu ofício era então o de um erudito e talvez ainda que eu entendia do meu ofício, não deixa de ter significado um duro fragmento de psicologia do erudito, que de súbito vem ao de cima nesse escrito: exprime o sentimento da distância, a profunda segurança sobre o que em mim pode ser tarefa, simplesmente meio, entreato e obra sem importância. A minha sagacidade consiste em ter sido muitas coisas e em ter estado em muitos lugares para poder chegar a ser um – para conseguir tornar-me um. Tive de ser também, por algum tempo, erudito. HUMANO, DEMASIADO HUMANO Com dois apêndices 1 «Humano, demasiado humano» é o monumento de uma crise. Chama-se também um livro para espíritos livres: quase cada frase exprime aí uma vitória – libertei-me com ele do que era impróprio da minha natureza. O idealismo não me é peculiar: o título diz «onde vós vedes coisas ideais, vejo eu –coisas humanas, ah! apenas demasiado humanas!»... Conheço melhor o homem... Em nenhum outro sentido se deve entender a palavra «espírito livre»: um espírito que se tornou livre, que de novo tomou posse de si mesmo. O tom, o acento vocal, modificou-se de todo: o livro considerar-se-ia subtil, reservado e, segundo as circunstâncias, duro e desdenhoso. Uma certa espiritualidade de gosto nobre parece sobrepujar continuamente uma torrente passional que se agita na profundidade. Neste contexto, tem sentido desculpar, por assim dizer, a publicação do livro já em 1878, ano do centenário da morte de Voltaire. Com efeito, Voltaire, em oposição a todos os que depois dele escreveram, é acima de tudo um grand seigneur do espírito: exatamente o que eu também sou. O nome de Voltaire numa obra minha era realmente um progresso – para mim... Se se olhar atentamente, descobre-se um espírito implacável, que conhece todos os esconderijos em que o ideal se refugia – onde tem os seus calabouços e, por assim dizer, a sua última segurança. Com um archote nas mãos, que de modo algum proporciona uma luz «vacilante», com uma claridade cortante, ilumina-se esse subterrâneo do ideal. É a guerra, mas a guerra sem pólvora e sem fumo, sem atitudes guerreiras, sem pathos e sem luxações nos membros – tudo isso seria ainda «idealismo». Erro após erro se deposita no gelo, o ideal não é refutado – congela-se... Aqui, por exemplo, congela «o génio»; num canto mais além, congela o «santo»; sob uma espessa camada de gelo, congela «o herói»; por fim, congela «a fé», a chamada «convicção», também a «compaixão» arrefece de um modo considerável –quase em toda a parte congela « a coisa em si»... 2 Os inícios deste livro situam-se nas semanas do primeiro festival de Bayreuth; uma profunda estranheza perante tudo o que ali me rodeava foi um dos seus pressupostos. Quem tem noção das visões que já então me saíam ao caminho pode adivinhar o ânimo com que, um dia, despertei em Bayreuth. Era tudo como um sonho... Onde estava eu? Nada reconhecia, foi a custo que reconheci Wagner. Em vão folheava as minhas recordações. Tribschen – uma longínqua ilha dos bem-aventurados: nem sombra de semelhança. Os dias incomparáveis em que se lançara a primeira pedra, o pequeno círculo de afins, que festejara o acontecimento e para a qual não era preciso desejar o tacto para coisas delicadas: nem sombra de semelhança. O que acontecera? – Traduzira-se Wagner para alemão! O wagneriano tornara-se senhor de Wagner!... A arte alemã! O maestro alemão! A cerveja alemã!... Nós, os que sabíamos demasiado bem que artistas refinados, que cosmopolitismo do gosto exige a arte de Wagner, estávamos fora de nós, ao reencontrarmos Wagner vestido de «virtudes» alemãs. – Conheço, creio eu, o wagneriano, «convivi» com três gerações, desde o saudoso Brendel, que confundia Wagner com Hegel, até aos «idealistas» do jornal de Bayreuth, que confundiam Wagner com eles próprios – ouvi toda a espécie de profissões de fé de «belas almas» sobre Wagner. Um reino por uma palavra sensata! Na verdade, gente de pôr os cabelos em pé! Nohl, Pohl, Kohl, com donaire in infinitum! Nenhum aborto ali falta, nem sequer o antissemita. – Pobre Wagner! Onde ele foi parar! – Oxalá, tivesse ao menos caído numa pocilga! Mas no meio de alemães!... Em última análise, para ilustração da posteridade, haveria que empalhar o autêntico bayreuthiano, melhor ainda, metê-lo em álcool, pois carece de spiritus – com a legenda: eis o «espírito» sobre o qual se fundou o «império»... Enfim, no meio de tudo aquilo, parti, de súbito, para uma viagem de algumas semanas, apesar de uma encantadora parisiense ter tentado consolar-me; desculpei-me com Wagner simplesmente por meio de um fatal telegrama. Num lugar muito recôndito de Böhmerwald, Klingenbrunn, arrastei a minha melancolia e o meu desprezo pelos Alemães, como quem arrasta uma doença – e de vez em quando escrevia, sob o título geral de «A relha do arado», algumas frases no meu livro de apontamentos, claras e rigorosas observações psicológicas, que ainda se podem reencontrar talvez em Humano, demasiado humano. 3 O que então em mim se decidiu não foi decerto o corte com Wagner – senti então a aberração completa do meu instinto, de que o erro singular, chame-se ele Wagner ou a cátedra de Basileia, era simplesmente um sinal. Apoderou-se de mim uma impaciência; vi que era mais do que tempo de voltar a mim mesmo. De repente, vi de um modo tremendo o muito tempo que já se desperdiçara – quão inútil e arbitrariamente toda a minha existência de filólogo me afastara da minha tarefa. Envergonhei-me desta falsa modéstia... Deixara atrás de mim dez anos, durante os quais se suspendera em mim totalmente a nutrição do espírito, em que nada aprendera de útil, em que absurdamente esquecera muitas coisas por uma tralha de erudição poeirenta. Rastejar entre antigas métricas com acribia e olhos doentes – eis o que conseguira! Cheio de dó, via-me macilento e faminto: as realidades estavam justamente ausentes do meu saber, e as «idealidades»... Que vão para o diabo! – Apossou-se de mim uma sede verdadeiramente abrasadora: a partir de então, votei-me apenas à fisiologia, à medicina e às ciências naturais – e só regressei de novo aos genuínos estudos históricos quando a tarefa a tal imperiosamente me coagiu. Adivinhei então, pela primeira vez, a conexão existente entre uma atividade escolhida na oposição ao instinto, a chamada «vocação», a que só em último lugar se é chamado – e a necessidade de um atordoamento do sentimento de vazio e de fome mediante uma arte narcótica – por exemplo mediante a arte wagneriana. Ao olhar com circunspecção à minha volta, descobri que muitos jovens sofrem do mesmo mal: uma antinatureza força formalmente uma segunda. Na Alemanha, no «império», para falar sem qualquer equívoco, há muitíssimos homens condenados a decidir-se antes do tempo e, em seguida, sob o fardo que não podem alijar, a definhar... Anelam por Wagner como se fora um narcótico – esquecem-se de si, livram-se de si por um instante... Que digo eu!? Por cinco ou seis horas! 4 O meu instinto decidiu-se então inexoravelmente contra uma cedência ainda por mais tempo, contra o deixar-se levar, contra o autoengano. Qualquer género de vida, as condições mais desfavoráveis, a enfermidade, a pobreza – tudo me parecia preferível àquele indigno «desinteresse» em que, primeiro, por ignorância, pela mocidade, eu viera a cair, e na qual mais tarde permanecera pendurado, por indolência, pelo chamado «sentimento do dever». – Veio então em minha ajuda, de um modo que não posso assaz admirar e justamente no momento exato, aquela grave herança por parte de meu pai – no fundo, uma predeterminação para uma morte prematura. A doença desprendeu-me a pouco e pouco: poupou-me toda a ruptura, todo o passo violento e escandaloso. Não perdi então a benevolência; muita até me foi ainda dispensada. A doença proporcionou-me igualmente o direito de uma inversão completa de todos os meus hábitos; permitiu-me, ordenou-me que esquecesse; deu-me de presente a coação a estar reclinado, ao ócio, à espera e à paciência... Mas isto é o que justamente significa pensar!... Bastaram-me os olhos para pôr fim a toda a bibliomania, em alemão: filologia; libertei-me do «livro», durante anos nada mais li! – O maior benefício, de que alguma vez a mim dei provas! – Aquele eu ínfimo, por assim dizer enterrado, por assim dizer reduzido ao silêncio em virtude de ter de ouvir permanentemente os outros (– eis o que significa ler!), despertou lenta, tímida e vacilantemente – mas, por fim, reencontrou o uso da palavra. Nunca em mim deparei com tanta felicidade como nos períodos mais enfermos e dolorosos da minha vida: basta apenas consultar a «Aurora» ou, por exemplo, O viandante e a sua sombra para compreender o que foi este «retorno a mim»: uma forma superior de cura!... A outra seguiu-se simplesmente desta. 5 Humano, demasiado humano, este monumento de uma rigorosa autodisciplina, com a qual pus um fim repentino a tudo o que em mim se insinuara de «vertigem superior», «idealismo», «belo sentimento» e outras feminilidades, foi no essencial redigido em Sorrento; no fundo, o livro deve-se ao senhor Peter Gast, que então estudava na Universidade de Basileia e me era muito afeiçoado. Eu ditava, com a cabeça ligada e cheia de dores, ele escrevia, e também corrigia – foi ele, no fundo, o autêntico escritor, ao passo que eu fui simplesmente o autor. Quando, por fim, o livro já pronto me chegou às mãos – à profunda admiração de alguém gravemente doente – mandei, entre outros, também dois exemplares para Bayreuth. Por um milagroso acaso, chegou-me simultaneamente um belo exemplar do texto de Parsifal, com uma dedicatória de Wagner: «Ao seu fiel amigo Friedrich Nietzsche, Richard Wagner, Conselheiro eclesiástico». – O cruzamento dos dois livros – foi para mim como se ouvisse um som agourento. Não tiniu como se espadas se tivessem cruzado?... De qualquer modo, ambos sentimos assim: por isso, ambos nos calámos. – Na altura, apareceram as primeiras folhas de Bayreuth: compreendi então que chegara o grande momento. – Incrível! Wagner tornara-se beato... O livro inteiro, mas sobretudo uma passagem muito explícita, atesta como eu então (1876) pensava acerca de mim, com que segurança prodigiosa aderia à minha tarefa e ao que nela há de histórico-mundial: só que, com aquela astúcia em mim instintiva, evitei aqui de novo a palavrinha «eu» e, desta vez, para fazer irradiar com uma glória universal, não Schopenhauer ou Wagner, mas um dos meus amigos, o excelente Dr. Paul Rée – felizmente, um animal demasiado perspicaz para que... Outros foram menos sagazes: perdi as esperanças quanto àqueles leitores meus, por exemplo o típico professor alemão, que pensavam a partir de tal passagem haver de compreender todo o livro como realismo superior... Na verdade, ele continha um desacordo com cinco ou seis proposições do meu amigo: pode a este respeito ler-se o prefácio à Genealogia da moral. – A passagem reza assim: qual é, então, o princípio a que chegou um dos mais ousados e frios pensadores, o autor do livro «Sobre a origem dos sentimentos morais» (lisez: Nietzsche, o primeiro imoralista), graças à sua análise incisiva e cortante de ação humana? «O homem moral não está mais perto do mundo inteligível do que o homem físico – com efeito, não há mundo inteligível...» Esta proposição, dura e cortante sob a forja do conhecimento histórico (lisez: transmutação de todos os valores), poderá porventura alguma vez, em qualquer futuro – 1890 – servir de machado, que se ponha na raiz da «necessidade metafísica» da humanidade. Para benefício ou para maldição da humanidade... Quem saberá dizer? Em todo o caso, porém, é uma proposição de consequências muito consideráveis, ao mesmo tempo fecunda e temível, a que não falta aquele duplo olhar para o mundo, que todos os grandes conhecimentos possuem... AURORA Reflexões sobre a moral enquanto preconceito 1 Com este livro, inicia-se a minha campanha contra a moral. Não que tenha em si o menor cheiro a pólvora: – captar-se-ão nele outros odores inteiramente diversos e muito mais agradáveis, na suposição de que se tenha alguma finura nas narinas. Nem artilharia pesada, nem também fogo de espingarda: se o efeito do livro é negativo, não o são os seus meios, dos quais se segue o efeito como uma conclusão, não como um tiro de canhão. Que alguém se despeça do livro com uma tímida desconfiança perante tudo o que até agora se venerava, e inclusive se adorava, sob o nome de moral não está em contradição com o facto de, em todo o livro, não ocorrer sequer uma palavra negativa, um ataque, uma maldade – pelo contrário, está deitado ao sol, rotundo, feliz, semelhante a um animal marinho que se expõe ao sol entre os rochedos. Ao fim e ao cabo, eu próprio sou esse animal marinho: quase todas as frases do livro foram pensadas, pescadas naquela confusão de rochas perto de Génova, onde vivia sozinho e só com o mar tinha confidências. Ainda hoje, num casual contacto com o livro, quase todas as frases se tornam para mim uma ponta com que puxo de novo das profundidades algo de incomparável: toda a sua pele vibra dos frémitos delicados da recordação. Não é pequena a arte, que tal livro apresenta, de tornar um pouco mais fixas coisas que deslizam com leveza e sem ruído, instantes a que chamo lagartos divinos – não decerto com a crueldade daquele jovem deus grego, que simplesmente comia a pobre lagartixa, mas sempre, apesar de tudo, com algo de pontiagudo, com a pena... «Há tantas auroras, que ainda não despontaram... – esta inscrição indiana encontra-se na portada do meu livro. Onde busca o seu autor essa nova alvorada, essa vermelhidão delicada até agora ainda não descoberta, com que começa um novo dia – ah! uma série inteira, um mundo completo de novos dias? Numa transmutação de todos os valores, na libertação de todos os valores morais, no dizer sim a e na confiança em tudo o que até agora foi proibido, desprezado e anatematizado. Este livro afirmativo difunde a sua luz, o seu amor, a sua ternura, por todas as coisas simplesmente más, restitui-lhes a «alma», a boa consciência, o elevado direito e a prerrogativa da existência. A moral não é atacada, deixa apenas de ser tomada em consideração... Este livro termina com um «ou?» é o único livro que termina com um «ou?»... 2 A minha tarefa de preparar à humanidade um instante da mais elevada autorreflexão, um grande meio-dia em que ela possa olhar para trás e para muito além de si, em que se subtraia à dominação do acaso e dos sacerdotes, e em que ponha pela primeira vez, como totalidade, a questão do «porquê?», do «para quê?» – semelhante tarefa segue-se necessariamente do discernimento de que a humanidade não está no seu reto caminho, de que não é regida pela divindade, de que, pelo contrário, sob os seus mais santos conceitos de valor, imperou sedutoramente o instinto da negação, da perversão, o instinto da décadence. A questão da origem dos valores morais é, portanto, para mim uma questão de primeira importância, porque condiciona o futuro da humanidade. A exigência de que se deve acreditar que tudo, no fundo, se encontra nas melhores mãos, que um livro, a Bíblia, proporciona um definitivo apaziguamento sobre o governo divino e a sabedoria no destino da humanidade, é, reconvertida para a realidade, a vontade de não deixar surgir a verdade sobre o seu lastimoso contrário, a saber, que a humanidade esteve até agora nas piores mãos, que ela foi governada por depravados, por sedentos de astuciosa vingança, pelos chamados «santos », esses caluniadores do mundo, que desonram a humanidade. O sinal decisivo em que se torna manifesto que o sacerdote (– incluindo os sacerdotes disfarçados, os filósofos) se tornou senhor não só no interior de uma determinada comunidade religiosa, mas em geral que a moral de décadence, a vontade do fim, se impõe como moral em si, é o valor incondicionado que se torna quinhão do não egoísta, e a inimizade que por toda a parte se vota ao egoísta. Quem neste ponto diverge de mim, considero-o infetado... Mas todo o mundo diverge de mim... Para um fisiólogo, semelhante antagonismo de valores não levanta dúvida alguma. Quando, no interior do organismo, o mais modesto órgão deixa de impor com plena segurança a sua autoconservação, a sua reserva de energia, o seu «egoísmo», o todo degenera. O fisiólogo exige a ablação da parte degenerada, nega toda a solidariedade com o elemento degenerado, está bem longe de dele ter compaixão. Mas o sacerdote quer justamente a degeneração do todo, da humanidade: por isso, conserva o degenerado – é a este preço que ele a domina... Que sentido têm estas noções enganadoras, os conceitos auxiliares de moral, «alma», «espírito », «vontade livre», «Deus», senão o de arruinarem fisiologicamente a humanidade?... Quando se põe de lado a gravidade da autoconservação, o aumento da energia corporal, isto é, da vida, quando da anemia se constrói um ideal, do desprezo do corpo se faz «a salvação da alma», que outra coisa é senão uma receita de décadence? – A perda de equilíbrio, a resistência contra os instintos naturais, numa palavra, o «desinteresse» – eis o que até agora se chamou moral... Com Aurora, empreendi, pela primeira vez, a luta contra a moral da auto renúncia. A GAIA CIÊNCIA (“La gaya scienza”) A Aurora é um livro afirmativo, profundo, mas claro e amável. O mesmo acontece ainda, e em grau mais alto, com A gaia ciência: em quase todas as frases, a profundidade e a travessura dão-se ternamente as mãos. Uma estrofe, que exprime a gratidão pelo maravilhoso mês de janeiro, que me foi dado viver – todo o livro é uma prenda sua – deixa ver muito bem a profundidade a partir da qual aqui a «ciência» se tornou jubilosa: Com a espada de fogo, despedaçaste o gelo da minh’alma, e esta, bramindo, corre agora para o mar da sua mais alta esperança: sempre mais claro e mais saudável, livre no mais aprazível ócio, eis que te celebram, pois, os teus prodígios, Janeiro glorioso! Quem pode estar na dúvida sobre o que aqui significa «a mais alta esperança», ao ver brilhar como conclusão do quarto livro a beleza diamantina das primeiras palavras de Zaratustra? – Ou quem lerá as frases lapidares no fim do terceiro livro com que, pela primeira vez, se condensou em fórmulas um destino para todos os tempos? As canções do príncipe Vogelfrei, compostas na sua maior parte na Sicília, recordam muito expressamente o conceito provençal da gaya scienza, aquela unidade de menestrel, de cavaleiro e de espírito livre, com que a maravilhosa e precoce cultura da Provença se distingue de todas as culturas equívocas; e sobretudo o último poema, «Para o mistral », uma endiabrada canção de dança na qual, com a devida vénia, se dança muito para além da moral, é um acabado provençalismo. ASSIM FALOU ZARATUSTRA Um livro para todos e para ninguém 1 Vou agora contar a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, a ideia do eterno retorno, a mais elevada fórmula da afirmação que em geral se pode alcançar – situa-se no mês de agosto do ano de 1881: está anotada numa folha com a inscrição: «6000 pés acima do homem e do tempo». Naquele dia, fui através dos bosques até ao lago de Silvaplana; detive-me junto a uma rocha imensa, alta como uma pirâmide, não longe de Surlei. Foi aí que tal pensamento me ocorreu. – Se, a partir daquele dia, remonto alguns meses atrás, encontro, como prognóstico, uma alteração súbita e profunda do meu gosto, sobretudo na música. Poderia talvez considerar-se como música todo o Zaratustra; – era decerto um renascimento na arte de ouvir, uma condição prévia para tal. Numa pequena estância termal em plena montanha, Recoaro, não longe de Vicenza, onde passei a Primavera de 1881, descobri, juntamente com o meu maestro e amigo Peter Gast, também ele um «renascente», que a fénix musical voava sobre nós com uma plumagem mais leve e mais colorida do que alguma vez mostrara. Se, pelo contrário, a partir desse dia avanço até ao parto súbito e que teve lugar nas condições mais inverosímeis em Fevereiro de 1883 – a parte final, de que cito umas quantas frases no Prefácio, foi aprontada justamente na hora sagrada em que Richard Wagner morria em Veneza – foram-me então necessários dezoito meses de incubação. Este preciso número de dezoito meses podia sugerir o pensamento, pelo menos entre os budistas, de que, no fundo, sou um elefante-fêmea. – No período intermédio, situa-se a «Gaia ciência», que tem cem indícios da proximidade de algo incomparável; por fim, ela proporciona o começo do próprio Zaratustra, oferece, na penúltima parte do livro quarto, a ideia fundamental do Zaratustra. – Situa-se também neste período intermédio o Hino à vida (para coro misto e orquestra), cuja partitura apareceu há dois anos na editora E. W. Fritzsch, em Leipzig: sintoma talvez não insignificante para o meu estado de espírito nesse ano, em que o pathos afirmativo par excellence, por mim chamado o pathos trágico, me era inerente em sumo grau. Hão-de mais tarde cantá-lo em minha memória. – O texto, anote-se expressamente, porque a este respeito se divulgou um mal-entendido, não é da minha lavra: constitui a inspiração assombrosa de uma jovem russa, com quem então eu estava em relações de amizade, a menina Lou Von Salomé. Quem das últimas palavras do poema souber inferir um sentido adivinhará porque é que o estimei e admirei: têm grandeza. A dor não aparece como objecção contra a vida: «se já não tens alegria alguma para me dar, bem! tens ainda a tua dor...» Talvez a minha música tenha também grandeza nesta passagem. (Última nota do oboé dó sustenido, não dó. Erro de impressão.) Passei o Inverno seguinte na baía agradavelmente calma de Rapallo, perto de Génova, que se incrusta entre Chiavari e o cabo de Porto Fino. A minha saúde não era a melhor; o Inverno estava frio e excessivamente chuvoso; um pequeno «albergo», situado muito perto do mar, de tal modo que a preia-mar me impossibilitava o sono durante a noite, proporcionava-me em quase tudo o contrário do que era de desejar. Todavia e quase como demonstração da minha máxima de que tudo o que é decisivo acontece «apesar de», foi nesse Inverno e nessa inclemência das condições que surgiu o meu Zaratustra. – Subia eu pela manhã, em direção ao sul, a admirável estrada de Zoagli, pela orla do pinheiral, e o mar espraiava-se diante de mim até perder de vista; de tarde, só se a saúde me permitisse, contornava toda a baía desde Santa Margherita até ao Porto Fino. Este lugar e esta paisagem tocam ainda de mais perto o meu coração em virtude do grande amor que o inesquecível imperador alemão Frederico III lhes votara; estava eu de novo e por acaso nesta costa, no Outono de 1886, quando ele pela última vez visitou este pequeno e esquecido mundo de felicidade. – Foi nestes dois caminhos que me ocorreu a ideia de toda a primeira parte do Zaratustra e, sobretudo, o próprio Zaratustra como tipo: mais corretamente, o próprio Zaratustra atacou-me de surpresa... 2 Para compreender semelhante tipo, importa primeiro elucidar o seu pressuposto fisiológico: é o que eu chamo a «boa saúde». Não sei explicar este conceito melhor nem de um modo mais pessoal do que já fiz numa das secções finais do quinto livro da Gaia ciência. «Nós, homens novos, sem nome, difíceis de compreender – ali se lê –, prematuros de um futuro ainda improvável, carecemos, em vista de um novo fim, também de um novo meio, a saber, de uma nova saúde, de uma saúde mais forte, mais sagaz, mais resistente, mais ousada e mais astuta do que foram até agora todas as saúdes. Aquele cuja alma anela por viver todo o âmbito dos valores e aspirações até agora existentes e por percorrer todas as costas deste «mediterrânico ideal», quem pretende conhecer, graças às aventuras da sua própria experiência, a coragem de um conquistador e explorador do ideal, bem como de um artista, de um santo, de um legislador, de um sábio, de um erudito, de um homem piedoso, de um eremita de Deus de estilo antigo, tem, acima de tudo, necessidade de uma coisa: boa saúde – uma saúde tal que não só se possui, mas também permanentemente se adquire e se deve adquirir, porque ela está sempre de novo a perder-se e se deve perder... E agora, após estarmos há tanto tempo a caminho, nós, argonautas do ideal, mais ousados talvez do que é prudente, e que muitas vezes naufragamos e chegamos à ruína mas, como se disse, mais saudáveis do que nos poderiam permitir, perigosamente saudáveis, sempre de novo sãos – quase nos parece ter sempre diante de nós, como recompensa, uma terra ainda por descobrir, cujas fronteiras ninguém ainda divisou, um além de todas as terras e de todos os recônditos do ideal até agora conhecidos, um mundo tão cheio de beleza, de coisas estranhas, perturbantes, temíveis e divinas, que tanto a nossa curiosidade como a nossa sede de posse transbordaram – ah, já por nada são agora saciadas!... Após tais perspectivas e com semelhante ânsia no saber e na consciência, como poderíamos contentar-nos ainda com homens atuais? Grave é e bastante, mas inevitável, que vejamos, e talvez já nem sequer vejamos, os seus mais dignos objetivos e esperanças com uma seriedade mal contida... Um outro ideal se nos oferece, um ideal admirável, aliciante, cheio de perigos, ao qual não queremos persuadir seja quem for, porque a ninguém para tal concedemos facilmente o direito: o ideal de um espírito que, ingenuamente, isto é, de um modo não intencional e a partir de uma transbordante plenitude e poder, brinca com tudo o que até agora se chamou sagrado, bom, intangível e divino; para o qual o mais elevado, em que o povo tem justamente a sua medida de valor, significaria já tanto como perigo, decadência, degradação ou, pelo menos, como recuperação, cegueira, auto esquecimento temporário; o ideal de um bem-estar ou de uma boa vontade humana, sobre-humana, que bastantes vezes se afigurará inumana quando, por exemplo, se colocar ao lado de tudo o que, até agora, foi seriedade terrena, ao lado de toda a solenidade nos gestos, na palavra, no tom, no olhar, na moral e no dever, como sua paródia viva, involuntária e com o qual, não obstante, começa talvez a grande seriedade, se põe o genuíno ponto de interrogação, se muda o destino da alma, a agulha se desloca, a tragédia começa...» 3 – Tem alguém, no final do século XIX, um conceito claro do que os poetas de épocas fortes chamavam inspiração? Caso contrário, quero aqui descrevê-lo. Com o mínimo resto de superstição em si, dificilmente alguém saberia, de facto, rejeitar a ideia de ser apenas a encarnação, simplesmente o porta-voz, o medium de poderes superiores. O conceito de revelação, no sentido de que subitamente, com uma segurança e uma delicadeza imensas, algo se torna visível, audível, algo que nos abala e nos transtorna no mais profundo de nós mesmos, descreve simplesmente a situação real. Ouve-se, não se busca; aceita-se, não se pergunta quem aí dá; como um relâmpago, brilha um pensamento, com necessidade, na forma sem hesitações – jamais fiz uma escolha. Um arroubo cuja tensão ingente se atenua numa torrente de lágrimas, em que o passo, involuntariamente, ora se torna tempestuoso, ora lento; um perfeito estar fora-de-si com a consciência mais distinta de um sem número de finos tremores e exsudações até às pontas dos pés; um abismo de felicidade, em que o extremo de sofrimento e de melancolia não atua como contraste, mas como condicionado, como exigido, como uma cor necessária no meio de um tal excesso de luz; um instinto de relações rítmicas, que abrange amplos espaços de formas – a extensão, a necessidade de um ritmo largo constitui quase a medida do poder da inspiração, uma espécie de compensação para o seu constrangimento e a sua tensão... Tudo acontece de um modo involuntário até ao mais alto grau, como num ciclone do sentimento de liberdade, do ser-incondicionado, de poder, de divindade... O mais notável é o carácter compulsivo da imagem, da metáfora; deixa de se ter um conceito do que é uma imagem ou uma metáfora, tudo se oferece como a expressão mais imediata, mais correta, mais simples. De facto, para lembrar uma palavra de Zaratustra, parece que as coisas surgem por si mesmas e se proporcionam à metáfora (– «Todas as coisas aqui acorrem amorosamente ao teu discurso e te adulam: querem, com efeito, cavalgar sobre as tuas costas. Em cada metáfora, galgas tu aqui para cada verdade. Para ti se abrem aqui palavras de todo o ser e sacrários da palavra; todo o ser pretende aqui tornar-se palavra, todo o devir quer de ti aprender a falar –»). Eis a minha experiência da inspiração; não duvido de que é necessário recuar milénios para encontrar alguém que me possa dizer: «É também a minha». 4 Estive, depois, doente em Génova, durante algumas semanas. Seguiu-se então uma Primavera tristonha em Roma, onde simplesmente aceitava a vida – não era fácil. No fundo, aborreceu-me para além de toda a medida este lugar da terra, que eu não escolhera livremente, e que era o mais inadequado possível para o poeta do Zaratustra; procurei dele libertar-me – quis ir para Aquila, o conceito oposto de Roma, fundada por ódio contra Roma, tal como eu algum dia hei-de fundar um lugar, a memória de um ateu inimigo da Igreja comme il faut, a alguém que me seja afim, ao grande imperador Hohenstaufen Frederico II. Mas em tudo isto havia uma fatalidade: fui obrigado a regressar. Ao fim e ao cabo, após ter-me fatigado à busca de um lugar anticristão, tive de me contentar com a Piazza Barberini. Temia que, para me esquivar quanto possível aos maus cheiros, houvesse alguma vez de indagar se, no Palazzo del Quirinale, não haveria um quarto calmo para um filósofo. – Numa loggia, que domina a piazza mencionada, de onde se abarca a cidade de Roma e se ouve lá muito em baixo a fontana correndo, escrevi a canção mais solitária que alguma vez foi composta, a Canção da noite; assediava-me nessa altura uma melodia de indizível melancolia, cujo refrão reproduzi nas palavras: «Morto por imortalidade...» No Verão, depois de regressar ao lugar sagrado onde me iluminara o primeiro lampejo da ideia do Zaratustra, encontrei a sua segunda parte. Dez dias bastaram; em caso algum, nem para a primeira, nem para a segunda e para a última, precisei de mais. No Inverno a seguir, sob o céu alciónico de Nice, que pela primeira vez então resplandeceu na minha vida, encontrei o terceiro Zaratustra – e a obra ficou pronta. Feitas todas as contas, mal chegou a um ano. Muitos sítios secretos e elevações da paisagem de Nice foram, graças a instantes inesquecíveis, por mim consagrados; aquela parte decisiva, que tem como título «Das velhas e novas tábuas», foi composta durante a difícil ascensão, desde a pousada até ao admirável lugarejo mourisco no meio das rochas, Ega – a agilidade muscular foi sempre em mim máxima quando a força criadora fluía com maior abundância. O corpo entusiasma-se: deixemos a «alma» fora de jogo... Podiam muitas vezes ver-me dançar; e eu podia então, sem qualquer ideia de cansaço, caminhar sete, oito horas pelas montanhas. Dormia bem, ria-me muito – encontrava-me numa perfeita robustez e paciência. 5 Abstraindo destes trabalhos de dez dias, os anos da composição de Zaratustra e, sobretudo, os posteriores constituíram uma calamidade sem igual. Paga-se muito caro ser imortal: morre-se por isso várias vezes em vida. – Há algo a que eu dou o nome de rancor da grandeza: tudo o que é grande, obra ou ação, vira-se, uma vez levado a cabo, sem demora contra quem a fez. Só pelo facto de a ter realizado, ele é agora fraco – já não suporta a sua ação, já não a olha de frente. Ter atrás de si algo que jamais se deveria ter querido, algo em que se prende o nó no destino da humanidade – e tê-lo doravante sobre si!... Quase esmaga... O rancor da grandeza! Outra coisa é o silêncio horripilante, que à volta de si se ouve. A solidão tem sete peles; nada mais por ela passa. Aproximamo-nos dos homens, saudamos os amigos: novo deserto, mais nenhum olhar nos saúda. No melhor dos casos, uma espécie de revolta. Experimentei uma tal revolta em graus muito variados, mas de quase todos os que estavam perto de mim; parece que nada ofende mais profundamente do que, de súbito, fazer notar uma distância – as naturezas nobres, que não sabem viver sem venerar, são raras. Uma terceira coisa é a absurda susceptibilidade da pele às pequenas picadas, uma espécie de desamparo perante tudo o que é pequeno. Este parece-me condicionado pelo enorme esbanjamento de todas as forças defensivas, pressuposto pela atividade criadora, por toda a atividade a partir do mais singular, do mais íntimo e do mais profundo. As pequenas capacidades defensivas encontram-se assim como que suspensas; já nenhuma energia nelas desemboca. – Ouso ainda indicar que se digere pior, que os movimentos se fazem de má vontade, que se está demasiado exposto às sensações de calafrio, e também à desconfiança – à desconfiança que, em muitos casos, é simplesmente um erro etiológico. Num estado assim, senti uma vez a aproximação de uma manada, graças ao regresso de pensamentos mais afáveis, mais humanos, ainda antes de a ver: isso produz em si calor... 6 Esta obra aguenta-se absolutamente por si. Deixemos de lado os poetas: talvez em geral nunca tenham feito algo a partir de semelhante excesso de força. A minha noção de «dionisíaco» foi, a este respeito, uma ação excelsa; por ela medidas, todas as restantes ações humanas surgem como que pobres e condicionadas. Que um Goethe, um Shakespeare não soubessem, nem sequer por um instante, respirar nesta ingente paixão e altitude, que Dante, comparado a Zaratustra, seja simplesmente um crente e não alguém que pela primeira vez produz a verdade, um espírito que governa o mundo, um destino –, que os poetas dos Vedas sejam sacerdotes e nem sequer dignos de desapertar os atilhos das sandálias de um Zaratustra – tudo isso é o menos e não proporciona ideia alguma da distância, da solidão cerúlea em que vive esta obra. Zaratustra tem um eterno direito a dizer: «Traço à minha volta círculos e fronteiras sagradas; são cada vez menos os que comigo sobem a montanhas sempre mais altas – edifico uma montanha de cumes sempre mais santos.» Se alguma vez se reunissem o espírito e os bens de todas as grandes almas, nem todos em conjunto estariam em condições de produzir um único discurso do Zaratustra. É imensa a escadaria que ele sobe e desce; viu mais longe, quis ir mais longe e conseguiu ir mais longe do que qualquer outro homem. Com cada palavra sua, contradiz, ele, o mais afirmativo de todos os espíritos; nele, todas as contradições se conciliam numa nova unidade. As mais elevadas e as mais baixas forças da natureza humana, o que há de mais doce, de mais ténue e de mais terrível, brotam de uma só fonte com imortal segurança. Até então, não se sabe o que é a grandeza, a profundidade; menos ainda se sabe o que é a verdade. Não há um instante nesta revelação da verdade que não tenha já sido antecipado, adivinhado por qualquer um dos maiores. Não há sabedoria, indagação das almas, arte alguma de falar, antes de Zaratustra; o mais imediato, o mais quotidiano fala aqui de coisas inauditas. A frase estremece de paixão; a eloquência tornou-se música; relâmpagos projetam-se para futuros até agora não pressentidos. A mais poderosa força para a alegoria, que até então existiu, é pobre e mera brincadeira em comparação com este retorno da linguagem à natureza da metáfora. – E eis como Zaratustra desce e diz a cada qual o que há de mais agradável! Como até aos seus adversários, os sacerdotes, lhes pega com mãos delicadas e com eles e por eles sofre! – Aqui, o homem é a todo o instante superado, a noção de «super-homem» tornou-se aqui a mais elevada realidade – numa lonjura infinita, tudo o que até agora se chamou grande no homem encontra-se abaixo dele. O alciónico, os pés ligeiros, a ubiquidade de malícia e insolência e tudo o que aliás é típico de Zaratustra, jamais se sonhou como essencial à grandeza. Zaratustra sente-se justamente neste âmbito no espaço, nesta acessibilidade ao contraditório como a espécie mais elevada de todo o ente; e se se atender à maneira como ele a define, renunciar-se-á a buscar o seu equivalente. «A alma que tem a mais longa escada e mais ao fundo pode descer, a alma de maior amplitude, que mais extensamente em si pode correr, errar e vaguear, a de maior necessidade, que com prazer se precipita no acaso, a alma que é, que se entrega ao devir, a que tem vontade e ânsia e nestas quer ainda mergulhar, a que foge de si mesma, que a si mesma se recupera nos mais amplos círculos, a alma mais sábia, e que a loucura com toda a doçura convence, a que mais a si mesma se ama, em que todas as coisas têm o seu fluxo e refluxo, a sua baixa-mar e preia-mar.» Eis a noção do próprio Dioniso. – E aqui conduz também uma outra consideração. O problema psicológico que reside no tipo de Zaratustra é como aquele que, num grau inaudito, diz não, atua por negação, perante tudo aquilo a que, até agora, se disse sim e, apesar de tudo, pode ser o contrário de um espírito que diz não; do mesmo modo que o espírito que aguenta o maior peso do destino, uma fatalidade da missão, pode todavia ser o mais ágil e para além de tudo – Zaratustra é um dançarino –; como o que tem a mais implacável, a mais temível visão da realidade, que excogitou o «pensamento mais abissal», não encontra, apesar de tudo, objecção alguma contra a existência, nem sequer contra o seu eterno retorno – pelo contrário, depara com mais um fundamento para ele próprio ser o eterno sim a todas as coisas, para ser o ingente e ilimitado sim e amém»... «A todos os abismos levo ainda o meu dizer sim, fonte de bênçãos»... Eis, porém, mais uma vez ainda a noção de Dioniso. 7 Que linguagem falará um tal espírito, quando fala a sós consigo? A linguagem do ditirambo. Sou o inventor do ditirambo. Atente-se no modo como Zaratustra fala consigo, antes do nascer do sol (III, 18): semelhante felicidade de esmeralda, uma tal ternura divina, ainda não tivera voz alguma, antes de mim. Também a mais profunda tristeza de semelhante Dioniso se torna ainda ditirambo; tomo como exemplo a Canção da noite, o lamento imortal de, graças à superabundância de luz e poder, em virtude da sua natureza solar, ser condenado a não amar. «É noite: falam agora mais alto as fontes que jorram. E também a minha alma é uma fonte a borbotar. É noite: só agora acordam todos os cantos dos amantes. E também a minha alma é o canto de um amante. Algo de insatisfeito, de insaciável, há em mim que quer expressar-se em voz alta. Há em mim um desejo de amor, que fala espontaneamente a linguagem do amor. Sou luz: ah! fora eu noite! Mas a minha solidão é estar rodeado de luz. Ah! fora eu treva e noite! Como então sugaria nos seios da luz! E bem quereria dizer-vos ainda, pequenos astros cintilantes e vermes luminosos! – E alegrar-me da vossa dádiva de luz. Vivo, porém, na minha própria luz, torno a sorver as chamas que de mim emanam. Não conheço o prazer de quem recebe; e muitas vezes sonhei que roubar deveria ser ainda mais ditoso do que receber. A minha pobreza é que a minha mão jamais em dar tem descanso; a minha cobiça é ver os olhos em expetativa e as noites iluminadas da nostalgia. Oh infelicidade de todos os que dão! Oh obscurecimento do meu sol! Oh desejo de desejar! Oh fome devoradora na saciedade! É de mim que eles recebem: mas toco ainda nas suas almas! Há um abismo entre receber e dar; e o menor abismo é o mais difícil de transpor. Da minha beleza promana uma fome: pudesse eu magoar aqueles a quem ilumino, pudesse eu roubar os que presenteio – tenho, pois, fome de maldade. Retirar a mão, quando já a mão lhe estendi; qual cascata, que ainda na queda hesita: tenho, pois, fome de maldade. É a minha plenitude que inventa semelhante vingança, e esta maldade brota da minha solidão. A minha alegria de dar morreu no ato de dar, a minha virtude cansou-se de si mesma na sua superabundância! Quem sempre dá corre o risco de perder o pudor; a quem sempre reparte nascem-lhe, à força de repartir, calos na mão e no coração. Os meus olhos já não se incham perante a humilhação dos que pedem; a minha mão tornou-se demasiado dura para o estremecimento das mãos cheias. Para onde se esvaíram as lágrimas dos meus olhos e a lanugem do meu coração? Oh solidão de todos os que dão! Oh silêncio de todos os que iluminam! Muitos sóis giram no espaço vazio: para tudo o que é tenebroso falam eles com a sua luz – a mim nenhuma palavra dizem. Oh! Eis a hostilidade da luz perante o que é luminoso: seguem implacavelmente as suas órbitas. Cruéis contra o que é luminoso no mais profundo dos seus corações, frios perante outros sóis – assim caminha cada sol. Como um furacão, seguem os sóis as suas órbitas, seguem a sua inelutável vontade, eis a sua frieza. Oh, sois vós, seres tenebrosos e noturnos, sois vós quem dá calor por meio de quem é luminoso! Oh, só vós bebeis o leite e o refrigério nos seios da luz! Ah! rodeia-me o gelo, queima-se a minha mão com a algidez! Ah! há em mim uma sede que anela pela vossa sede. É noite: ah, porque devo eu ser luz! e sede de trevas! e solidão! É noite: mana agora de mim, como fonte, a minha ânsia – anseio pela palavra. É noite: falam agora alto todas as fontes que jorram. E também a minha alma é uma fonte a borbotar. É noite: despertam agora todas as canções dos amantes. E também a minha alma é o canto de um amante. 8 Coisas assim nunca foram escritas nem sentidas nem sofridas: assim sofre um deus, um Dioniso. A resposta a um tal ditirambo da solidão solar na luz seria Ariadne... Quem, além de mim, sabe o que é Ariadne!... Ninguém, até hoje, esteve na posse da solução de tais enigmas, duvido mesmo de que alguém tenha sequer visto aqui um enigma. – Zaratustra determina, com rigor, a sua tarefa – é também a minha – para que ninguém se possa enganar sobre o seu sentido: Zaratustra é afirmativo até à justificação, e até mesmo à redenção de todo o passado. «Caminho entre os homens como entre fragmentos de futuro: daquele futuro que já contemplo. E todo o meu pensamento e desejo é unir e congregar o que é fragmento, enigma e acaso horrendo. E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta, decifrador e redentor do acaso? Redimir o passado e recriar todo o «foi» num «assim devia ser!» – Eis o que para mim significaria redenção. Numa outra passagem, Zaratustra determina tão rigorosamente quanto possível o que, para ele, só pode ser «o homem» – nenhum objeto do amor ou da compaixão. Zaratustra tornou-se também senhor da grande náusea que sente pelo homem: o homem é para ele uma deformidade, uma matéria, uma pedra monstruosa que precisa do escultor. «Não mais querer, não mais apreciar e não mais criar: Oh que este grande cansaço permaneça longe de mim! Também no conhecimento sinto apenas o prazer do gerar e do devir da minha vontade; e se há inocência no meu conhecimento, isso acontece porque nele existe a vontade de gerar. Foi esta vontade que me levou para longe de Deus e dos deuses: que haveria, pois, para criar, se deuses houvesse? A minha ardente vontade de criar impele-me sempre de novo para o homem; assim como o martelo para a pedra. Ah, homens, na pedra dorme uma estátua, a estátua das estátuas! Ah, porque deve ela dormir na mais dura, na mais monstruosa pedra! Retumba agora macabramente o meu martelo contra a sua prisão. A pedra faz-se em pedaços: Que me importa!? Quero acabar a obra, pois uma sombra veio até mim – de todas as coisas a mais silenciosa e a mais ténue veio até mim! A beleza do super-homem veio até mim como sombra: Que me importam ainda os deuses!?... Vou relevar um último ponto de vista: o ensejo para tal é o trecho mencionado. Uma tarefa dionisíaca tem, de modo decisivo, como condições prévias a dureza do martelo e o próprio prazer da destruição. O imperativo «tornai-vos duros!», a certeza ínfima de que todos os criadores são duros, é o sinal genuíno de uma natureza dionisíaca. PARA ALÉM DO BEM E DO MAL Prelúdio de uma filosofia do futuro 1 A tarefa para os anos seguintes estava já delineada tão rigorosamente quanto possível. Cumprida a parte afirmativa do meu trabalho, veio a seguir a sua metade que diz não e que atua pela negação: a própria transmutação dos valores até agora existentes, a grande guerra – a convocação de um dia da decisão. Aqui se inclui o vagaroso olhar em redor à busca de quem me é afim, daqueles que, graças à sua força, me proporcionariam ajuda na obra da destruição. – De então para cá, todos os meus escritos são anzóis: talvez eu perceba de anzóis melhor do que ninguém?... Se nada apanhei, a culpa não é minha. Faltavam os peixes... 2 Este livro (1886) é, em todas as suas partes essenciais, uma crítica da modernidade, sem excluir as ciências modernas, as artes modernas, e até a política moderna, além de indicar um tipo oposto, que é tão pouco moderno quanto possível, um tipo nobre, afirmativo. No último sentido, o livro é uma escola do gentil-homem, tomando-se o conceito numa acepção mais espiritual e mais radical do que até agora se fez. Importa ter coragem no corpo para também simplesmente o suportar, é preciso não ter aprendido o medo... Todas as coisas de que esta época se orgulha se sentem como a contradição deste tipo, quase como más maneiras, a famosa «objetividade», por exemplo a «compaixão por todos os que sofrem», o «sentido histórico» com a sua subserviência perante o gosto estrangeiro, com o estar de barriga no chão diante de petits faits, a «cientificidade». – Se se tomar em consideração que o livro vem depois de Zaratustra, talvez se adivinhe também o regime dietético a que deve a sua origem. O olhar, estragado por uma compulsão poderosa a ver longe – Zaratustra vê ainda mais longe do que o czar – é aqui forçado a abranger com nitidez o mais próximo, o tempo, o em-torno-de-nós. Encontrar-se-á em todas as partes, sobretudo também na forma, uma igual renúncia arbitrária aos instintos, a partir dos quais apenas um Zaratustra seria possível. O requinte na forma, na intenção, na arte do silêncio, surge em primeiro plano, a psicologia é manejada com dureza e crueldade deliberadas – o livro esquiva-se a toda a palavra de bondade... Tudo isto descontrai: quem é que, em última análise, adivinha que espécie de descontração requeria um tal dispêndio de bondade, como é o Zaratustra?... Em termos teológicos – preste-se atenção, pois raramente falo como teólogo – foi o próprio Deus que, como serpente, se instalou na árvore do conhecimento, no fim da obra dos sete dias: descansava assim de ser Deus... Tinha feito tudo demasiado belo... O diabo é apenas o ócio de Deus no fim dos sete dias... GENEALOGIA DA MORAL Um escrito polémico Os três ensaios de que se compõe esta genealogia são talvez, quanto à expressão, à intenção e à arte do inesperado, o que até agora de mais inquietante se escreveu. Dioniso é, como se sabe, também o deus das trevas. – É de cada vez um começo que deve induzir em erro, é um preliminar frio, científico, até irónico, intencional, intencionalmente retardativo. A pouco e pouco, aumenta a agitação; relâmpagos isolados; verdades muito desagradáveis vêm de longe e fazem-se ouvir com um rugido surdo até que, por fim, se atinge um tempo feroce, em que tudo se precipita com ingente tensão. Por fim, no meio de detonações perfeitamente horrendas, torna-se de cada vez visível uma nova verdade entre as espessas nuvens. – A verdade do primeiro ensaio é a psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo a partir do espírito do ressentimento e não, como se crê, a partir do «espírito» – um contra movimento, segundo a sua essência, a grande rebelião contra a dominação de valores nobres. O segundo ensaio proporciona a psicologia da consciência: esta não é, como se crê, «a voz de Deus no homem» – é o instinto da crueldade que se volta para trás, após já não poder descarregar-se para fora. A crueldade como um dos mais antigos e mais inevitáveis subsolos da cultura veio aqui, pela primeira vez, à luz. O terceiro ensaio fornece a resposta à questão sobre a procedência do imenso poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal nocivo par excellence, uma vontade de fim, um ideal de décadence. Resposta: não é porque Deus atue por detrás do sacerdote, como se crê, mas faute de mieux – porque foi até agora o único ideal, porque não tinha concorrente algum. «O homem deseja mais querer o nada do que não querer»... Acima de tudo, faltava um contra ideal – até ao Zaratustra. Oxalá me tenham entendido. Três trabalhos preparatórios decisivos de um psicólogo para uma transmutação de todos os valores. – Este livro contém a primeira psicologia do sacerdote. CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS Como se filosofa com o martelo 1 Este escrito, que nem chega a cento e cinquenta páginas, sereno e fatal no tom, é um demónio que ri – a obra foi escrita em tão poucos dias que hesito em dizer o seu número e constituí uma excepção entre os livros em geral: nada há de mais substancioso, de mais independente, de mais revolucionário – e de mais maligno. Se alguém quiser, brevemente, ter uma ideia de como, perante mim, tudo estava de cabeça para baixo, que comece por ler este escrito. Aquilo que o título refere como ídolos é simplesmente o que, até agora, se chamou verdade. Crepúsculo dos ídolos – em vernáculo: fim da velha verdade... 2 Não há nenhuma realidade, nenhuma «idealidade» que, neste escrito, não fosse aflorada (– aflorada: que eufemismo tão discreto!...) Não só os ídolos eternos, também os mais recentes, portanto mais senis. As «ideias modernas», por exemplo. Um vento forte sopra entre as árvores e por toda a parte caem os frutos – verdades. Depara-se aí com a prodigalidade de um outono fecundo: tropeça-se em verdades, algumas são mesmo espezinhadas – são demasiadas... Mas o que nos vem ter às mãos já não é nada de dúbio, são decisões. Só eu tenho na mão a bitola para as «verdades», só eu posso decidir. É como se em mim uma segunda consciência tivesse surgido, como se em mim «a vontade» tivesse acendido uma luz sobre o plano inclinado pelo qual, até agora, ela viera descendo... O plano inclinado – eis o nome que se dava ao caminho para a «verdade»... Chega-se ao fim de todo o «impulso obscuro», o homem bom era justamente o que menos consciente estava do reto caminho e, com toda a seriedade, ninguém antes de mim conhecia o bom caminho, o caminho para as alturas: só a partir de mim há de novo esperanças, tarefas, caminhos especificados da cultura – sou o seu alegre mensageiro... Por isso mesmo, sou também um destino. 3 Imediatamente após a conclusão da obra mencionada e sem sequer perder um dia, encetei a tarefa ingente da transmutação, num soberano sentimento de orgulho, a que nada se compara, certo a cada instante da minha imortalidade e gravando em tábuas de bronze, símbolo após símbolo, com a segurança de um destino. O prefácio surgiu a 3 de Setembro de 1888: quando, de manhã, após esta redação, vim para o ar livre, deparei à minha frente com o mais belo dia que alguma vez a Alta Engadine me mostrará – transparente, resplandecente nas cores, englobando em si todos os contrastes, todos os pontos medianos entre o polo e o sul. – Só a 20 de Setembro deixei Sils-Maria, detido pelas inundações, fui durante muito tempo o único hóspede deste lugar admirável, ao qual a minha gratidão quer proporcionar a dádiva de um nome imortal. Após uma viagem com muitos incidentes, e até com perigo de vida em Como, que fora inundada e onde cheguei já noite alta, arribei a Turim na tarde do dia 21, o meu lugar comprovado e, doravante, minha residência. Ocupei de novo a mesma habitação onde já morara na primavera, via Carlo Alberto 6, III, em frente do imponente Palazzo Carignano, em que nasceu Vítor Emanuel, com a vista para a piazza Carlo Alberto e, mais além, para as colinas. Sem hesitação e sem me deixar distrair um só instante, mergulhei novamente no trabalho: faltava só acabar a quarta parte da obra. A 30 de Setembro, grande vitória; conclusão da transmutação; ócio de um deus nas margens do Pó. No mesmo dia, escrevi ainda o prefácio do Crepúsculo dos ídolos, e o meu descanso em setembro consistiu na correção das suas provas tipográficas. – Nunca vivera um Outono assim, e jamais supus que algo de semelhante fosse possível na terra – um Claude Lorrain imaginado até ao infinito, e cada dia de idêntica e tremenda perfeição. O CASO WAGNER Um problema musical 1 Para se fazer justiça a este escrito, é preciso sofrer do destino da música como de uma ferida aberta. – De que sofro, quando sofro do destino da música? Sofro de a música ter perdido o seu carácter transfigurador do mundo, o seu carácter afirmativo; de ela já ser música da décadence, e não já a flauta de Dioniso... Supondo, porém, que se sente a causa da música como a sua própria causa, como a histeria do seu próprio sofrimento, descobrir-se-á que este escrito está cheio de considerações a tal respeito e é benévolo em excesso. Ser em tais casos divertido e rir com bonomia de si mesmo – ridendo dicere severum [rindo, dizer coisas graves], onde o verum dicere [dizer a verdade] justificaria todas as durezas – é a própria humanidade. E quem duvida de que eu, como velho artilheiro que sou, consiga dirigir a minha artilharia pesada entra Wagner? Tudo quanto possuía de decisivo neste assunto eu o viera adiando – amava Wagner. – Em última análise, deparava-se com um ataque a um ilustre «desconhecido», que para um outro não era fácil de adivinhar, no sentido e no percurso da minha tarefa – oh! Tenho ainda de desmascarar outros «desconhecidos», antes do Cagliostro da música. – E, mais ainda, de dirigir um ataque contra a nação alemã, a qual, nas coisas do espírito, se vai tornando sempre mais indolente e pobre de instintos, sempre mais cândida, e continua com um apetite invejável a comer avidamente tanto a «fé» como a cientificidade, tanto o «amor cristão» como o antissemitismo, tanto a vontade de poder (de «império») como o évangile des humbles... Que incapacidade em tomar partido entre oposições! Que neutralidade estomacal e que «ausência de egoísmo»! Que sentido justo o do paladar alemão, que a tudo confere iguais direitos – que tudo acha saboroso... Sem dúvida alguma, os Alemães são idealistas... Quando da última vez visitei a Alemanha, encontrei o gosto alemão empenhado em atribuir direitos iguais a Wagner e ao trompetista de Säckingen; eu próprio fui testemunha de como em Leipzig se prestou homenagem a um dos músicos mais autênticos e mais alemães, no velho sentido da palavra alemão, e não apenas no de alemão imperial, o mestre Heinrich Schütz, ao fundar-se em sua honra uma sociedade Liszt, com a finalidade de cultivar e difundir a astuta música de Igreja... Não há dúvida, os Alemães são idealistas... 2 Mas nada aqui me deve impedir de ser violento e de dizer aos alemães umas quantas verdades duras: de outro modo, quem o faria? – Refiro-me à sua lubricidade in historicis. E não apenas porque os historiadores alemães perderam totalmente a perspectiva grandiosa do curso e dos valores da cultura, porque são na sua totalidade arlequins da política (ou da Igreja); mas porque proscrevem até essa grande perspectiva. Importa, antes de mais, ser «alemão», ser «raça»; só depois é que se pode decidir sobre todos os valores e não valores in historicis – estipula-se... «Alemão» é um argumento, «Alemanha, Alemanha, acima de tudo» é um princípio, os Germanos são a «ordem cósmica moral» na história; em relação ao Imperium Romanum, são os depositários da liberdade; em relação ao século XVIII, são os restauradores da moral, do «imperativo categórico»... Há uma historiografia alemã imperial, e receio que exista também uma historiografia antissemita – há uma historiografia de corte e o Sr. Von Treitschke não se envergonha... Ainda recentemente, uma opinião idiota in historicis, uma proposição do esteta suábio Vischer, felizmente já falecido, que circulou pelos jornais alemães como uma «verdade» a que todo o alemão devia dizer sim: «O Renascimento e a Reforma constituem conjuntamente um todo – a regeneração estética e a regeneração moral.» – Perante tais frases, a minha paciência termina e sinto prazer, sinto até comi dever referir aos Alemães tudo o que já têm na consciência. Têm na consciência todos os grandes crimes contra a cultura dos últimos quatro séculos!... E sempre pela mesma razão: pela mais íntima cobardia perante a realidade, que é também a cobardia perante a verdade, pela sua falta de franqueza transformada já neles em instinto, por «idealismo»... Os Alemães levaram a Europa a fracassar na colheita, no sentido da última grande época, a época do Renascimento, num momento em que uma ordem superior de valores, em que os valores nobres, que diziam sim à vida, os valores que garantem o futuro, tinham já ocupado vitoriosamente o lugar dos valores opostos, os valores da decadência – e tinham mesmo penetrado nos instintos dos que aí imperavam! Lutero, essa calamidade de monge, é que restaurou a Igreja e, o que foi mil vezes pior, restabeleceu o cristianismo, no instante em que este sucumbia... O cristianismo, a religião transformada em negação da vontade de viver!... Lutero, um monge impossível que, por razões da sua «impossibilidade », atacou a Igreja e – por conseguinte! – a restabeleceu... Os católicos tinham razões para fazer festas em honra de Lutero, para escrever dramas a propósito de Lutero... Lutero – e a «regeneração moral »! Para o diabo, toda a psicologia! Não há dúvida, os Alemães são idealistas. – Por duas vezes já, quando justamente com ingente ousadia e auto superação se alcançara um modo de pensamento rigoroso, sem ambiguidade, perfeitamente científico, os Alemães souberam encontrar sendas ocultas para o antigo «ideal», reconciliações entre a verdade e o «ideal», no fundo, fórmulas para um direito à recusa da ciência, para um direito à mentira. Leibniz e Kant - os dois maiores obstáculos à probidade intelectual da Europa! – Finalmente, quando na ponte entre dois séculos de décadence se tornou visível uma force majeure de génio e de vontade, assaz forte para fazer da Europa uma unidade política e económica, tendo como fim o governo da terra, os Alemães, com as suas «guerras da independência», frustraram o sentido, o maravilhoso sentido que, para a Europa, residia na existência de Napoleão – são responsáveis por tudo o que ocorreu, por tudo o que hoje se encontra diante de nós, pela enfermidade e irrazão mais adversa à cultura que existe, o nacionalismo, esta névrose nationale, de que a Europa padece, pela perpetuação de pequenos Estados na Europa, da pequena política: frustraram a Europa do seu próprio sentido, da sua razão – fizeram-na enveredar por um beco sem saída... Será uma tarefa suficientemente grande para de novo religar os povos?... 3 E, por último, porque é que não hei-de expressar a minha suspeita? No meu caso, os Alemães tentarão ainda tudo para, a partir de um destino imenso, darem à luz um rato. Até agora, comprometeram-se comigo, e duvido que no futuro façam melhor. – Ah! Como desejaria eu ser aqui um mau profeta!... Os meus naturais leitores e ouvintes são agora já russos, escandinavos e franceses – sê-lo-ão sempre mais? – Os Alemães inscreveram-se na história do conhecimento só com nomes equívocos, produziram sempre apenas falsos moedeiros «inconscientes » (– esta designação ajusta-se tanto a Fichte, Schelling, Schopenhauer, Hegel, Schleiermacher como a Kant e Leibniz; todos eles são simples «Schleiermacher» [fabricantes de véus]): jamais terão a honra de que o primeiro espírito reto na história do espírito, o espírito em que a verdade traz a tribunal a falsa moedagem de quatro milénios, se venha a confundir com o espírito alemão. O «espírito alemão» é a minha atmosfera viciada: respiro com dificuldade na proximidade desta imundície in psicologicis, tornada instinto, que se descortina em cada palavra e em cada atitude de um alemão. Nunca eles tiveram um século XVII de severo autoexame como os Franceses; um La Rochefoucauld, um Descartes são cem vezes superiores em veracidade aos primeiros alemães – não tiveram até agora psicólogo algum. Mas a psicologia é quase o padrão da limpeza ou impureza de uma raça... E quando não se é limpo, como se há-de ter profundidade? No alemão, quase como na mulher, nunca se chega ao fundo, não tem nenhum: e é tudo. Mas assim nem sequer se é superficial. – O que na Alemanha se chama «profundo» é, em rigor, a falta de limpeza do instinto para consigo, de que acabo de falar: não se quer estar na claridade em relação a si mesmo. Não seria legítimo sugerir a palavra «alemão» como moeda corrente internacional para esta depravação psicológica? – No momento presente, por exemplo, o imperador alemão designa como seu «dever cristão» emancipar os escravos em África: entre nós outros, europeus, chamar-se-ia simplesmente «alemão»... Produziram ainda os Alemães um único livro que tenha profundidade? Até mesmo o conceito do que num livro é profundo está bem longe deles. Conheci eruditos que tinham Kant por profundo; receio que, na corte prussiana, se tenha por profundo o Sr. Von Treitschke. E quando ocasionalmente louvei Stendhal como psicólogo profundo, tive de soletrar o nome no meu encontro com professores universitários alemães... 4 E porque não hei-de ir até ao fim? Gosto de fazer tábua rasa. É ambição minha passar por desprezador par excellence dos Alemães. Expressei já a minha desconfiança perante o carácter alemão aos vinte e seis anos (Terceira consideração intempestiva) – os Alemães são para mim impossíveis. Quando imagino uma espécie de homem, que se contrapõe a todos os meus instintos, é sempre um alemão que me ocorre. A primeira coisa em vista da qual perscruto o coração de um homem é se ele possui no corpo um sentimento da distância, se discerne em geral a categoria, o grau, a hierarquia entre homem e homem, se sabe distinguir: assim se é gentil-homem; em todos os outros casos, pertence-se irremediavelmente à ampla, ai!, à noção bonacheirona da canaille. Mas os Alemães são canaille - ah! são tão bonacheirões... Um homem degrada-se ao lidar com alemães... O alemão nivela... Se abstrair das minhas relações com alguns artistas, sobretudo com Richard Wagner, não vivi uma única hora agradável com alemães... Supondo que o espírito mais profundo de todos os milénios aparecesse entre os Alemães, logo uma qualquer libertadora do capitólio imaginaria que a sua alma muito mesquinha se tomaria, pelo menos, também em consideração... Não suporto esta raça, com a qual se está sempre em má companhia, que não tem dedos para os matizes – ai de mim! eu sou um matiz –, que não tem qualquer esprit nos pés e nem sequer pode andar... Ao fim e ao cabo, os Alemães não têm pés, têm simplesmente pernas... Os Alemães não têm a noção de quão vulgares são, mas isto é o superlativo da vulgaridade –, nem sequer se envergonham de ser simplesmente alemães... Conversam acerca de tudo, consideram-se a si mesmos como decisivos, receio até que já sobre mim pronunciaram algo de decisivo... – Toda a minha vida é a prova de rigueur de tais afirmações. Em vão busquei neles qualquer sinal de tacto, de délicatesse para comigo. Dos Judeus, sim, mas nunca dos Alemães. A minha índole leva-me a ser afetuoso e benévolo para quem quer que seja – tenho um direito a não estabelecer diferenças –: isto não me impede de ter os olhos abertos. A ninguém excetuo, e menos ainda aos meus amigos – em última análise, espero que isto não tenha causado qualquer dano à minha humanidade para com eles! Há cinco ou seis coisas de que sempre fiz ponto de honra. – Apesar de tudo, é ainda verdade que sinto quase todas as cartas, que de há anos me são enviadas, como um cinismo: há mais cinismo na benevolência para comigo do que em qualquer ódio... Digo na cara a cada um dos meus amigos que ele jamais considerou suficientemente digno do esforço estudar qualquer dos meus escritos; a partir dos mais pequenos indícios adivinho que eles nem sequer sabem o que neles se encontra. No tocante ao meu Zaratustra, quem é que dos meus amigos aí teria visto mais do que uma presunção ilícita, felizmente de todo indiferente?... Dez anos já: e ninguém na Alemanha se sentiu na obrigação de consciência de defender o meu nome contra o silêncio absurdo em que ele foi sepultado: foi um estrangeiro, um dinamarquês, quem primeiro teve a suficiente finura do instinto e a coragem para se levantar contra os meus pretensos amigos... Em que universidade alemã seriam hoje possíveis lições sobre a minha filosofia como aquelas que, na última primavera, deu em Copenhaga o Dr. Georg Brandes, demonstrando assim, mais uma vez, o seu valor como psicólogo? – Eu próprio nunca sofri por tudo isso; o que em si é necessário não me lesa; amor fati é a minha mais íntima natureza. Mas isto não exclui que eu ame a ironia, e até a ironia histórico-universal. E assim, mais ou menos dois anos antes do arrasador raio da transmutação, que porá a terra em convulsões, trouxe ao mundo o «Caso Wagner»: mais uma vez ainda, os Alemães se deveriam enganar imortalmente a meu respeito e eternizar-se! E ainda é tempo! – Conseguem-no? – Óptimo, meus senhores germanos! Apresento-lhes os meus cumprimentos... Ainda não há muito, e para que também os amigos não faltem, escreve-me uma velha amiga, e agora ri-se de mim... E isto no instante em que uma indizível responsabilidade sobre mim impende – em que nenhuma palavra pode ser assaz gentil, nenhum olhar suficientemente respeitoso para comigo. Trago, de facto, sobre os ombros o destino da humanidade. PORQUE SOU UM DESTINO 1 Conheço a minha sorte. Algum dia se associará ao meu nome a lembrança de algo ingente – de uma crise como jamais outra existiu na terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão proferida contra tudo aquilo que, até hoje, foi objeto de fé, de exigência e de sacralização. Não sou um homem, sou dinamite. – E com tudo isto nada há em mim de um fundador de religião – as religiões são afazeres da ralé, e eu preciso sempre de lavar as mãos depois de estar em contacto com homens religiosos... Nada quero com «crentes», penso que sou demasiado malicioso para acreditar em mim mesmo; nunca falo às massas... Sinto uma angústia aterradora de que, um dia, me venham a canonizar; adivinhar-se-á porque é que antes publico este livro; ele impedirá que comigo se cometam patifarias... Não quero ser santo algum, prefiro antes ser um arlequim... Sou porventura um arlequim... E apesar disso ou, antes, não apesar disso – pois, até hoje, nada houve de mais mentiroso do que um santo – a verdade fala por meu intermédio. – Mas a minha verdade é temível: com efeito, até hoje, chamou-se à mentira verdade. Transmutação de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema autorreflexão da humanidade, que em mim se fez carne e génio. A minha sorte quer que eu seja o primeiro homem decente, que tenha a consciência de estar em contradição com a mentira de milénios... Fui o primeiro a descobrir a verdade, pois fui quem primeiramente senti – cheirei – a mentira como mentira... O meu génio reside nas narinas... Contradigo, como nunca se contradisse, e, todavia, sou o contrário de um espírito negador. Sou um jovial mensageiro, conheço, como jamais alguém conheceu, tarefas de uma altura tal que, até agora, delas não houve noção alguma; só a partir de mim há de novo esperanças. Com tudo isso, sou também necessariamente o homem da fatalidade. Com efeito, quando a verdade entrar em luta com a mentira de milénios, teremos concussões, uma convulsão de tremores de terra, uma deslocação de montanhas e vales, como jamais se sonhou. A noção de política é então inteiramente absorvida numa luta de espíritos, todas as estruturas de poder da antiga sociedade irão ao ar – todas assentam na mentira: haverá guerras como ainda nunca houve na terra. Só a partir de mim existe no mundo a grande política. 2 Pretender-se-á uma fórmula para semelhante destino que se torna homem? Encontra-se no meu Zaratustra. «E quem quer ser criador no bem e no mal deve, primeiro, praticar a destruição e despedaçar valores. A suma malícia pertence, pois, à suprema bondade: esta, porém, é criadora. Sou, de longe, o homem mais temível que até agora existiu; mas isso não exclui que eu venha a ser o mais benéfico. Conheço o prazer da aniquilação num grau que é adequado ao meu poder de destruição – em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar a ação negativa da afirmação. Sou o primeiro imoralista: sou assim o destruidor par excellence. 3 Não se indagou de mim, como se deveria indagar, qual é justamente na minha boca, na boca do primeiro imoralista, o significado do nome Zaratustra: de facto, o que constitui a unicidade tremenda daquele persa na história é precisamente o contrário em relação a mim. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal o mecanismo genuíno na engrenagem das coisas – a translação da moral em metafísica, da moral como força, causa, fim em si, é a sua obra. Mas esta pergunta seria, no fundo, já a resposta. Zaratustra criou este erro pejado de consequências fatais, a moral: por conseguinte, deve também ser o primeiro a reconhecê-lo. Não só porque possui aqui uma experiência mais ampla e profunda do que qualquer outro pensador – a história inteira é, sim, a refutação experimental da tese da chamada «ordem moral do mundo» – mas, o que é ainda mais importante, Zaratustra é mais verídico do que qualquer outro pensador. A sua doutrina, e só ela, considera a veracidade como a suprema virtude – isto significa a oposição à covardia do «idealista», que empreende a fuga perante a realidade; Zaratustra tem mais ousadia no corpo do que todos os pensadores em conjunto. Dizer a verdade e atirar bem setas, eis a virtude persa. – Compreendem-me?... A auto superação da moral graças à veracidade, a auto superação do moralista para o seu contrário – para mim – eis o que significa na minha boca o nome de Zaratustra. 4 No fundo, são duas as negações que a minha palavra imoralista em si encerra. Nego, por um lado, um tipo de homem que, até agora, se impôs como o mais elevado, os bons, os benévolos, os caridosos; por outro, nego uma espécie de moral que, enquanto moral em si, se tornou conspícua e dominadora – a moral da décadence, em termos mais óbvios, a moral cristã. Seria permitido encarar como mais decisiva a segunda contradição, visto que a sobrestimação da bondade e da benevolência, numa acepção lata, se me impõe já como consequência da décadence, como sintoma de fraqueza, como incompatível com uma vida ascendente e afirmativa: no dizer sim, a negação, a aniquilação constitui a condição. Antes de mais, vou deter-me na psicologia do homem bom. Para apreciar o valor de um tipo humano, importa calcular o preço que a sua conservação requer – é preciso conhecer as suas condições de existência. A condição de existência do bom é a mentira –: por outros termos, o não querer ver a todo o custo como, no fundo, a realidade é constituída, a saber, não de modo a suscitar constantemente instintos benévolos, menos ainda de maneira a permitir sempre a interferência de mãos míopes e bondosas. Considerar as indigências de toda a espécie em geral como objecção, como algo que importa suprimir, é a niaiserie par excellence, numa acepção lata, um verdadeiro desastre nas suas consequências, uma fatalidade de estupidez – quase tão estúpida como seria a vontade de suprimir o mau tempo – por compaixão para com os pobres... Na grande economia do todo, os terrores da realidade (nos afetos, nas paixões, na vontade de poder) são mais necessários num grau inapreciável do que a forma da felicidade medíocre, a chamada «bondade»; é preciso até ser indulgente para em geral facultar à última um lugar, porque é condicionada pela mentira dos instintos. Terei uma grande oportunidade de mostrar as consequências terríficas e incomensuráveis que o optimismo, essa monstruosidade dos homines optimi, tem para toda a história. Zaratustra foi o primeiro a compreender que o optimista é tão décadent como o pessimista e talvez mais nocivo; eis o que diz: «Os homens nunca dizem a verdade. Os bons ensinaram-vos falsas costas e seguranças; nascestes e abrigastes-vos nas mentiras dos bons. Tudo foi deformado e pervertido, até ao fundo, pelos bons.» Felizmente, o mundo não se edifica sobre instintos em que o animal de rebanho apenas bonacheirão encontra a sua estreita felicidade; exigir que todo «o homem bom», um animal gregário, tenha olhos azuis, seja benévolo, tenha uma «bela alma» – ou, como deseja o Sr. Herbert Spencer, que se torne altruísta, seria tirar à existência a sua característica maior, significaria castrar a humanidade e fazê-la descer a uma miserável chinesice. – E foi o que se tentou!... Eis o que justamente se denominou moral... Nesse sentido, Zaratustra chama aos bons ora «os últimos homens», ora o «começo do fim»; acima de tudo, considera-os como a mais prejudicial espécie de homens, porque levam avante a sua existência tanto à custa da verdade como do futuro. Os bons – que não podem criar, que são sempre o começo do fim – crucificam aquele que inscreve valores novos em novas tábuas; sacrificam a si o futuro, crucificam todo o futuro dos homens! Os bons – que foram sempre o começo do fim... E seja qual for o dano que possam fazer os caluniadores do mundo, o dano causado pelos bons é o mais prejudicial dos danos. 5 Zaratustra, o primeiro psicólogo dos bons, é – por conseguinte – um amigo dos maus. Quando uma espécie decadente de homem ascende à categoria de espécie suprema – isso só pôde acontecer à custa da espécie contrária, a espécie forte e vitalmente segura dos homens. Quando o animal gregário surge fulgurante no esplendor da mais pura virtude, o homem de excepção deve relegar-se para o plano inferior do mal. Quando a mentira a todo o custo reivindica para a sua óptica a palavra «verdade», deve assim reencontrar-se o genuinamente verídico sob o pior nome. Zaratustra não deixa aqui qualquer dúvida: ele diz que o conhecimento dos bons, dos «melhores», é que lhe inspirou a ferocidade perante os homens; e desta aversão é que lhe nasceram asas «para voar em direção ao futuro longínquo» – não esconde que o seu tipo de homem, um tipo relativamente sobre-humano – é justamente sobre-humano em relação aos bons, que os bons e os justos chamariam demónio ao seu super-homem... «Ó homens superiores, que os meus olhos encontram, eis a minha dúvida a vosso respeito e o meu riso secreto: adivinho que chamareis demónio ao meu super-homem! Tão alheios sois, na vossa alma, à grandeza que o super-homem na sua bondade seria, para vós, temível... Neste lugar e em nenhum outro se deve ter o ponto de partida para compreender o que Zaratustra pretende: a espécie de homem que ele concebe apreende a realidade como ela é: é suficientemente forte para tal – ela não lhe é estranha, remota; é ela própria, tem ainda em si também tudo o que nela há de temível e de problemático, só assim é que o homem pode ter grandeza... 6 Mas escolhi ainda, noutro sentido, a palavra imoralista para meu emblema e decoração; sinto orgulho em usar esta palavra, que me contrapõe a toda a humanidade. Ninguém sentiu ainda a moral cristã como abaixo de si: para tal é necessário uma elevação, um olhar distante, uma profundidade psicológica e um sentido do abismo, até agora de todo inauditos. A moral cristã foi, até hoje, a Circe de todos os pensadores – todos eles estiveram ao seu serviço. Quem, antes de mim, desceu às cavernas de onde emana a aura mefítica deste tipo de ideal – o ideal da difamação do mundo? Quem ousou sequer suspeitar de que existem tais cavernas? Quem, antes de mim, foi entre os filósofos psicólogo, e não antes o oposto, um «charlatão superior», um «idealista»? Antes de mim, ainda não havia psicologia alguma. – Ser aqui o primeiro pode constituir um anátema, é em todo o caso um destino: pois também se despreza como o primeiro... O nojo do homem, eis o meu perigo... 7 Compreenderam-me? – O que me diferencia, o que me põe à parte de todo o resto da humanidade, é ter descoberto a moral cristã. Eis porque precisava de uma palavra que contivesse o sentido de um desafio a cada um. E não ter aqui aberto antes os olhos equivale, para mim, à maior indecência que a humanidade tem na consciência, ao instinto tornado auto ilusão, à vontade fundamental de não ver tudo o que acontece, toda a causalidade, toda a realidade efetiva, à falsa moeda in psicologicis até ao crime. A cegueira perante o cristianismo é o crime par excellence – o crime contra a vida... Os milénios, os povos, os primeiros e os últimos, os filósofos e as velhotas – excetuando cinco ou seis momentos da história, e a mim como sétimo – são todos neste ponto dignos uns dos outros. O cristão foi, até agora, o «ser moral», uma curiosidade sem igual – e, como «ser moral», mais absurdo, mais mentiroso, mais vaidoso, mais frívolo, mais prejudicial para si mesmo do que também o poderia sonhar para si mesmo o maior desprezador da humanidade. A moral cristã – a mais maléfica forma da vontade de mentira, a genuína Circe da humanidade: eis o que a corrompeu. Não é o erro enquanto erro o que neste espetáculo me horroriza, não é a falta milenária de «boa vontade», de disciplina, de decência, de ousadia no campo espiritual, que se trai nesta sua vitória; é a deficiência de natureza, o facto perfeitamente horrível de a própria contra natureza receber, enquanto moral, as maiores honras e, como lei, como imperativo categórico, ter ficado a pairar sobre a humanidade!... Enganar-se a este ponto não como indivíduo, não como povo, mas como humanidade!... Ensinou-se a desprezar os primordiais instintos da vida; inventou-se enganadoramente uma «alma», um «espírito», para se desonrar o corpo; ensinou-se a divisar no pressuposto da vida, na sexualidade, algo de impuro; procurou-se na mais profunda necessidade de crescimento, no forte amor de si (– a palavra já em si é insultuosa), o princípio mau; e, pelo contrário, no sinal típico da degenerescência e da contradição dos instintos, no «interesse», na perda da base de apoio, na «despersonalização» e «no amor ao próximo» (– raiva pelo próximo!), vê-se o mais alto valor, que digo?, o valor em si!... Como? Estaria a própria humanidade em décadence? Sempre o esteve? – Certo é que lhe foram ensinados apenas valores de décadence como valores supremos. A moral de auto renúncia é par excellence a moral de degenerescência, que traduz o facto «vou perecer» para o imperativo «deveis todos perecer» – e não apenas para o imperativo!... Esta moral, a única que até agora se ensinou, a moral de auto renúncia, ostenta uma vontade de fim, nega a vida no seu mais ínfimo fundamento. Permanece aqui em aberto a possibilidade de que não é a humanidade que se encontra em degenerescência, mas apenas aquela espécie parasita de homem, a do sacerdote, que, com a moral, se elevou falsamente a árbitro do seu valor – que, na moral cristã, acertou com o seu meio de conquistar o poder... E, de facto, o meu juízo é este: os mestres, os condutores da humanidade, em suma, os teólogos, foram todos eles também décadents; daí a transmutação de todos os valores em inimigos da vida, daí a moral... Definição da moral: moral – a idiossincrasia de décadents, com a intenção oculta de se vingar da vida – e com êxito. Atribuo valor a esta definição. 8 Compreenderam-me? Não disse palavra alguma que já não tivesse dito há cinco anos pela boca de Zaratustra. – A descoberta da moral cristã é um acontecimento que não tem igual, uma verdadeira catástrofe. Quem sobre ela informa é uma force majeure, um destino – divide a história da humanidade em duas partes. A dos que antes viveram, a dos que depois viverão... O raio da verdade atingiu justamente o que até agora mais alto se encontrava: quem compreender o que aí se destruiu veja se em geral ainda tem algo nas mãos. Tudo o que até agora se chamou «verdade » reconheceu-se como a forma mais prejudicial, mais pérfida e mais subterrânea da mentira; o pretexto sagrado de tornar «melhor» a humanidade surge como a astúcia para esgotar a própria vida, para a tornar anémica. A moral como vampirismo... Quem descobre a moral descobre com ela a ausência de valor de todos os valores, em que se acredita ou se acreditava; nos tipos mais venerados, e até mesmo canonizados, do homem já nada vê digno de veneração, divisa aí a forma mais fatal de abortos, fatal, porque eles fascinavam... O conceito de «Deus» foi inventado como o conceito antitético à vida – nele se encontra condensado, numa unidade atroz, tudo o que é prejudicial, venenoso, caluniador, toda a hostilidade mortal contra a vida! O conceito de «além», de «mundo verdadeiro», foi inventado para desvalorizar o único mundo que existe – para destituir a nossa realidade terrena de todo o fim, de toda a razão, de todo o propósito! O conceito de «alma», de «espírito», finalmente ainda de «alma imortal», inventou-se para desprezar o corpo, para o tornar doente – «santo» –, para se deparar com uma horrível incúria em todas as coisas que na vida merecem seriedade, as questões de alimentação, habitação, dieta espiritual, cuidado com os doentes, higiene, tempo! Em vez da saúde, a «salvação da alma» – quer dizer, uma folie circulaire entre as convulsões da penitência e a histeria da redenção! O conceito de «pecado» foi inventado, juntamente com o instrumento complementar de tortura, a noção de «vontade livre», para extraviar os instintos, para transformar em segunda natureza a desconfiança para com os instintos! No conceito de «desinteresse», de «renúncia a si mesmo», encontra-se o genuíno sinal de décadence; o engodo pelo maléfico, a incapacidade de já não encontrar a sua utilidade, a autodestruição, tornaram-se em geral qualidades distintivas, o «dever», a «santidade», o «divino» no homem! Por fim – e é o mais terrível – no conceito de homem bom, toma-se o partido de tudo o que é fraco, doente, falhado, do que em si mesmo é passivo, de tudo o que deve perecer – a lei da seleção é contrariada, e faz-se um ideal a partir da oposição ao homem altivo e bem sucedido, ao homem que diz sim, ao homem que garante e está certo do futuro – este torna-se agora o mau... E em tudo isto se acreditou como moral! Écrasez l’infâme! 9 Compreenderam-me? Dioniso contra o crucificado...