Agostinho de Hipona – A Ordem Esquema do conteúdo do De Ordine LIVRO PRIMEIRO I. Prólogo (I,1-II,5) 1 - O problema da ordem nas vicissitudes humanas (1,1-2) 2 - Necessidade de voltar-se para si mesmo (I,3-II,3) 3 - Dedicatória a Zenóbio (II,4) 4 - Gênese do diálogo (II,5) II. Primeira Discussão (III,6-VIII,26) 1 - Origem ocasional da discussão sobre a ordem: o ruído irregular da água no canal durante a noite (III,6-IV,10) 2 - É possível que alguma coisa aconteça sem uma causa? (IV,11-V,14) 3 - Existe alguma coisa de contrário à ordem (VI, 15-VII, 19) 4 - Valor da poesia para a pesquisa filosófica sobre a ordem (VII,20-VIII,24) 5 - A luta entre os galos (VIII,25-26) III. Segunda Discussão (IX,27-XI,33) 1 - Exortação preliminar de Agostinho (IX,27) 2 - Primeira definição da ordem (X,28) 3 - Agostinho repreende Licêncio e Trigécio pela rivalidade mútua (X,29-30) 4 - A "filosofia" de Mônica (XI,31-32) 5 - Conclusão do Livro I (XI,33) SEGUNDO LIVRO I. Terceira Discussão: Licêncio e Agostinho (I,1-VII,23) 1 - Retomada da discussão a partir da definição da ordem (I,1) 2 - Deus, todas as coisas e a ordem (I,2) 3 - Deus, o movimento e a ordem (I,3) 4 - Definição do estar com Deus (II,4) 5 - Deus, o sábio, a ignorância e a ordem (II,5) 6 - O problema da sensibilidade e da memória (II,6-7) 7 - A estultícia não é propriamente objeto de compreensão intelectual (III,8-10) 8 - O mal na ordem e a relação do mal com Deus (IV, 11) 9 - Semelhanças extraídas da vida social, animal e cultural (IV,12-V,13) 10 - Necessidade da instrução liberal para compreender filosoficamente a divina ordem providencial de todas as coisas (V,14-17) 11 - Imobilidade da mente do sábio (VI,19-19) 12 - Definição do estar-sem-Deus (VII,20) 13 - Reenvio à resposta precedente de Trigécio (VII,21) 14 - A justiça de Deus e a origem do mal (VII,22-23) II. Terceira Discussão: discurso contínuo de Agostinho (VIII,24-XX,52) 1 - Para compreender que nada acontece fora da ordem divina faz-se necessário seguir uma disciplina racional (VII,24) 2 - O aspecto prático de tal disciplina: a conduta de vida (VIII,25) 3 - O polo do conhecimento e suas vias de acesso (IX,26) 4 - Autoridade divina e autoridade humana (IX,27) 5 - Quantos vivem segundo as normas prescritas pela disciplina? (X,28-29) 6 - A razão em sua essência e em seu exercício (XI,30) 7 - Diferença entre "razoável" e "racional" (XI,31) 8 - A racionalidade nos objetos dos sentidos produzidos pelo homem (XI,32-34) 9 - O nascimento da linguagem e das artes: gramática, dialética e retórica (XII,35-XIII,38) 10 - A gradação racional das disciplinas racionais no âmbito do prazer contemplativo: música, geometria e astronomia (XIV,39-XV,42) 11 - O número fundamental e a compreensão dos números inteligíveis (XV,43-XVI,44) 12 - Propedêutica das artes liberais para a correta discussão do problema do mal (XVII,45-46) 13 - A filosofia e os seus dois problemas (XVIII,47) 14 - O raciocínio interior da alma e a filosofia: a descoberta do valor fundamental do uno e da imortalidade (XVIII,48-XIX,50) 15 - Purificação moral e visão de Deus (XIX,50-51) 16 - Exortação à oração (XX,52) III. Conclusão da terceira discussão: a doutrina de Pitágoras (XX,53-54) Julgamento do Diálogo nas Retratações (I,III) 1. No mesmo período intermédio à composição daqueles livros sobre os Acadêmicos, escrevi também dois livros sobre a Ordem, nos quais é tratado um grande problema, a saber: se a ordem da providência divina abrange todos os bens e os males. Dei-me conta, porém, de que um tema de difícil compreensão como aquele, com notável dificuldade seria recebido por aqueles com os quais dialogava e preferi, portanto, falar da ordem dos estudos, com a qual podemos progredir das coisas corpóreas àquelas incorpóreas. 2. Na verdade, também nesses livros não me degrada o termo "fortuna" que frequentemente é intercalado; e por não ter acrescentado a especificação "do corpo" quando nomeava os sentidos do corpo; e de ter dado muito valor às disciplinas liberais sobre as quais grande é a ignorância de muitos santos, enquanto alguns, mesmo conhecendo-as, não são santos; e de ter mencionado, mesmo se com tom de brincadeira, as Musas, como se fossem deusas; e de ter chamado vício o fato de maravilhar-se; e de ter afirmado que filósofos não dotados de verdadeira fé brilharam pela luz da virtude; e de ter recomendado, não da parte de Platão ou dos Platônicos, mas como se tratasse de minha posição, que existem dois mundos, um sensível e outro inteligível, e de ter insinuado que teria desejado entender o Senhor, uma vez que não disse: "O meu reino não é do mundo", mas, ao contrário: O meu reino não é deste mundo (Jo 18,36). É possível encontrar que se trata de certo modo de dizer. Em todo caso, se Cristo Senhor faz referência a outro mundo, é possível entender este último como aquele no qual haverá um céu novo e uma terra nova (ls 65,17; 66,22; 2Pd 3,13; Ap 21,1), quando se cumprirá aquela realidade que invocamos com as palavras: Venha o teu reino (Mt 6,10; Lc 11,2). Nem Platão errou ao dizer que existe um mundo inteligível, se desejamos nos referir à sua realidade e não ao vocábulo mundo que, na linguagem da Igreja, não assume jamais aquele significado. De fato, Ele denominou mundo inteligível a mesma eterna e imutável razão com a qual Deus criou o mundo. Quem nega a existência dele deve, por coerência, admitir a irracionalidade da ação criadora de Deus, ou reconhecer que Deus, seja no momento da criação, seja precedentemente, não soubesse aquilo que fazia, visto que não havia nele a razão como critério de seu agir. Se, ao contrário, havia nele, como na realidade havia, parece que Platão chamara tal realidade com a expressão "mundo inteligível". Não teríamos usado, porém, tal denominação, se já fôssemos versados suficientemente na literatura eclesiástica. 3. Tampouco aprovo isto, depois de ter dito: devemos empenhar-nos em uma conduta irrepreensível, e de ter acrescentado logo depois: do contrário, o nosso Deus não poderá atender-nos. Ajudará, ao contrário, assaz facilmente quem vive bem. De fato, foi dito como se Deus não atendesse os pecadores; coisa que é dita, sim, no evangelho, mas se tratava de um homem que, mesmo não tendo ainda reconhecido o Cristo, fora iluminado por ele no corpo (Jo 9,31). Tampouco aprovo ter tributado ao filósofo Pitágoras tantos louvores a ponto de induzir a quem ouve ou lê a julgar que eu tenha acreditado que não existiria no ensinamento de Pitágoras erro algum: ao contrário, nele existiam muitos e gravíssimos. Esta obra se inicia assim: De ordine rerum, Zenobi. DOIS LIVROS SOBRE A ORDEM LIVRO PRIMEIRO PRÓLOGO O problema da ordem nas vicissitudes humanas I,1. Seguir e perceber a ordem das coisas, caro Zenóbio, a que se refere a cada uma em particular, e ainda mais ver e explicar a ordem do universo, que guia e governa o mundo, é muitíssimo difícil e raro para os homens. Acrescente-se a isto o fato de que, embora alguém o possa fazer, não consegue encontrar um ouvinte que, quer pelo mérito de sua vida, quer por certa situação de conhecimentos, seja digno de coisas tão divinas e obscuras. No entanto, nada há que as grandes inteligências, como também os que de cabeça erguida observam as dificuldades e tempestades desta vida, mais avidamente esperam e desejam ouvir e aprender sobre a questão de como pode ser que, ao mesmo tempo em que Deus cuida das coisas humanas, haja tanta perversidade nas coisas humanas, difundida por toda parte, de modo que não parece que se deva atribuir esse cuidado ao poder divino, mas também nem sequer a algum governo servil, se lhe fosse concedido tanto poder. Pelo que, aos que são acometidos por tais inquietações só lhes resta pensar o seguinte: ou que a divina providência não procura atingir estas coisas mesquinhas e ínfimas ou que todas as coisas más se cometem por vontade de Deus. As duas sentenças são ímpias, porém mais a Segunda. Pois, ainda que seja muita ignorância por parte da alma e muito perigoso para ela crer que algo tenha sido abandonado por Deus, contudo entre os próprios homens ninguém incriminou a alguém por ser incapaz de algo; mas a repreensão por negligência é muito mais desculpável que a repreensão em consequência de maldade e crueldade. Pelo que a razão, para não se descuidar da piedade, é como que compeli da a defender ou que estas coisas terrenas não podem ser objeto da administração divina ou que elas são, antes, mais negligenciadas ou desprezadas que assim governadas, de modo que toda queixa a respeito de Deus seja mitigada e sem culpa. 2. Mas quem tem uma mente tão cega que duvide em atribuir ao poder e governo divinos o que há de racional nos corpos que se movem, o que está além da possibilidade e vontade humanas? A menos que se imagine que os membros de alguns minúsculos animais, dotados de tão proporcional e engenhosa dimensão, se devam à casualidade ou, se alguém nega que isto se deva à casualidade, possa explicar-se senão pela razão. Ou, então, seguindo mesquinhas opiniões humanas, ousássemos tirar do misteriosíssimo poder majestoso o que admiramos como ordenado em cada uma das coisas em toda a natureza, sem nenhuma intervenção da arte humana. Entretanto, eis a questão: os membros de uma pulga estão dispostos de maneira tão admirável e distinta, ao passo que a vida humana está envolta em inumeráveis perturbações e flutua pelas suas inconstâncias. Mas, se alguém enxergasse tão pouco assim ao ponto de o campo de sua visão não conseguir abranger mais que um ladrilho num pavimento adornado, ele iria criticar o pedreiro como ignorante da simetria e colocação, por achar que os varie gados ladrilhos estariam em desordem e suas figuras não podiam ser vistas e apresentadas combinando na qualidade de uma beleza única. Não é diferente o que ocorre a homens menos instruídos que, incapazes de abranger e considerar com sua débil mente a adequação e harmonia globais das coisas, se algo que consideram importante lhes desagrada, acham que existe uma grande feiura nas coisas. Necessidade de voltar-se para si mesmo 3. A maior causa deste erro é que o homem não se conhece a si mesmo. Para conhecer-se a si mesmo, ele precisa de um ótimo modo de viver, para afastar-se dos sentidos, refletir em si mesmo e manter-se em si mesmo. Alcançam isto somente aqueles que, ou cauterizam pelo retiro certas feridas de opiniões que o curso da vida quotidiana lhes inflige, ou as medicam pelas artes liberais. II. Assim o espírito, a partir de sua interioridade, entende o que seja a beleza do universo, que certamente assim se denomina a partir do termo uno. Por isso, não pode ver aquela beleza a alma que se envolve numa multiplicidade de coisas e as persegue com mísera avidez, que ela sabe que só se pode evitar pelo desapego da multiplicidade. E não me refiro à multiplicidade de homens, mas de todas as coisas que os sentidos atingem. E não se admire de que tanto mais pobre é quem mais coisas deseja ter. Como, por exemplo, numa circunferência, por maior que seja, há somente um ponto central, o que é denominado pelos geômetras de centro, para onde convergem todos os demais pontos da circunferência. E embora as seções de toda a circunferência possam ser indefinidamente cortadas, nada há além daquele único ponto central em relação ao qual todos os demais são equidistantes, o qual denomina a todos os outros, por assim dizer, com certo direito de igualdade. E, então, se se quiser sair em direção a qualquer parte, tanto mais se abandona tudo quanto mais se caminha para uma multiplicidade de coisas. Assim ocorre com o espírito que, disperso de si mesmo, é sacudido por certa multiplicidade de coisas e enganado por uma verdadeira pobreza, quando sua natureza o impele a buscar em toda parte a unidade do centro e a multiplicidade de coisas não lhe permite encontrá-lo. Dedicatória a Zenóbio 4. Mas você, meu caro Zenóbio, certamente compreende o sentido do que eu disse acima e qual é a causa do desvio dos espíritos e de que modo todas as coisas se harmonizam para formar a unidade e são perfeitas e, contudo, deve-se evitar o pecado. Pois conheço o seu caráter e o seu espírito amante da beleza completa, isento da imoderação da paixão e da torpeza. Este sinal da futura sabedoria por direito divino lhe prescreve a precaver-se dos desejos nocivos, para que você não abandone o seu propósito sendo atraído por falsos prazeres, pois não pode haver coisa mais torpe e perigosa que esta prevaricação. Creia-me, você conseguirá estas coisas aplicando-se à instrução pela qual se purifica e se aperfeiçoa o espírito, e sem a qual alguém não se torna idôneo a que lhe sejam confiadas as divinas sementes. Tudo isso, como se processa e a ordem que o exige, ou o que a razão prometa aos estudiosos e bons, o tipo de vida que nós, seus caríssimos amigos, vivemos e que tipo de fruto colhemos e de nossos estudos das artes liberais, acredito que este livro, dedicado já no seu início a você que nos é mais querido que a nossa própria elaboração, lhe ensinará suficientemente tudo isso, principalmente se você, escolhendo coisas melhores, quiser inserir-se e adaptar-se à mesma ordem sobre a qual estou lhe escrevendo. Gênese do diálogo 5. Quando uma doença do estômago me obrigou a deixar a cátedra de retórica, embora, como você sabe, mesmo sem este motivo eu já planejava refugiar-me ao estudo da filosofia, logo me transferi para o sítio de nosso grandíssimo amigo Verecundo. Que direi? Ele o fez com o maior prazer. Você sabe muito bem a singular benevolência daquele homem não só para com todos, mas principalmente para conosco. Ali discutíamos entre nós tudo o que nos parecia útil, e tudo era colocado por escrito por causa da minha saúde. Quando, por algum motivo de saúde, eu era impedido de falar, evitava-se qualquer disputa excessiva nas conversações. Além disso, ao mesmo tempo em que parecia bom redigir algo do nosso interesse, evitavam-se repetições desnecessárias e não havia trabalho para a memória. Nas discussões participaram comigo: Alípio, Navígio meu irmão, e Licêncio que se dedicava admiravelmente à poesia. O serviço militar havia dado alta para Trigécio, que se juntou a nós e, na qualidade de veterano, era apaixonado pela história. No que se refere a livros, tínhamos alguns. PRIMEIRA DISCUSSÃO Origem ocasional da discussão sobre a ordem: o ruído irregular da água no canal durante a noite III,6. Certa noite, como de costume eu estava acordado e revolvia calado o que me vinha à mente não sei de onde, pois isto já se me tornara hábito pelo amor de encontrar a verdade, de tal modo que eu passava acordado ou a primeira ou certamente a última parte da noite, se tais pensamentos me ocorriam, mas quase sempre o meio da noite conforme o curso de meus pensamentos. Por outro lado, eu não queria envolver-me em debates com os mais jovens, porque eles tinham tantos afazeres durante todo o dia, que me parecia exagero se eles tirassem parte das noites para se dedicar ao labor dos estudos, embora eu tivesse lhes dado um conselho para que fizessem algo além dos livros e habituassem seus ânimos a ocupar-se consigo mesmos. Portanto, como disse, eu estava acordado, quando o ruído da água, que fluía ao longo por trás dos locais dos banhos, chegou-me aos ouvidos e prendeu-me a atenção mais fortemente do que o usual. Parecia-me muito admirável que a mesma água, precipitando-se por entre as pedras, ecoasse ora com um som muito mais distinto ora com um ruído mais confuso. Comecei, então, a investigar qual seria a causa dessa alternância. Confesso que não me ocorria uma explicação, quando ouvi que Licêncio com um pau espantava alguns ratos molestos perto de sua cama. Isto queria dizer que ele estava acordado. Disse-lhe então: - Licêncio, você reparou (pois sinto que a sua Musa acendeu-lhe a luz da poesia) como este canal de água soa com um ruído variável? - Já havia notado; isto não é novo para mim - respondeu ele. Pois às vezes ao despertar, e com o desejo de que estivesse fazendo bom tempo, eu aplicava o ouvido para ouvir se estava chovendo e esta água fazia o mesmo ruído que agora. Trigécio aprovou esta observação. Também ele, sem que nós o soubéssemos, estava acordado, deitado em sua cama no mesmo quarto. Pois estava escuro porque a luz na Itália é uma míngua, mesmo para os que tenham recursos. 7. Ora, ao ver que, por poucos que fôssemos, todo o grupo estava presente, com exceção de Alípio e Navígio, que tinham ido à cidade, e como estávamos acordados mesmo àquelas horas, aquele curso das águas levou-me a dizer algo do mesmo: - Qual lhes parece ser a causa da alternância deste ruído? - Perguntei. Pois não vamos pensar que haja alguém a estas horas passando pelo canal da água ou lavando alguma coisa ao ponto de interromper tantas vezes o curso. - O que você acha que possa ser - respondeu Licêncio - senão que nesta época do outono as folhas constantemente caem em grande quantidade ficando presas nos pontos estreitos do canal e às vezes se desprendem e cedem passagem à água represada; depois que esta tenha passado, novamente começam a ajuntar-se as folhas represando o canal, ou alguma outra coisa aconteça diversamente com as folhas flutuantes que possa ora represar o fluxo das águas ora deixá-lo fluir? Isto me pareceu provável, pois não me havia ocorrido outra explicação e confessei, elogiando a sua perspicácia, que eu não havia descoberto nenhuma causa, embora eu tivesse investigado por muito tempo a razão disso. 8. Após um breve silêncio: - É lógico que você não se admirava disso - continuei a falar - pois você no seu íntimo estava entretido com a sua Calíope. - Realmente - respondeu ele -, mas você me proporcionou agora um grande motivo de admiração. - Qual? - perguntei. - Que você se admirou disso - disse ele. - De onde - retruquei - costuma originar-se a admiração ou qual é a mãe desse vício, senão uma coisa insólita fora da ordem evidente das causas? E ele: - Fora do evidente, concedo; mas não me parece que se faça algo fora da ordem. Então, mais animado por uma esperança mais viva do que costumo ter quando lhes pergunto algo e pelo fato de que uma pessoa tão jovem, há pouco tempo voltada para estas coisas, tenha concebido tão rapidamente uma ideia tão cheia de significado, sem que jamais alguma questão tivesse sido proposta entre nós a respeito de tais coisas, disse-lhe: - Muito bem. Seu pensamento foi inteiramente muito bom, muito arrojada sua ideia. Creia-me: você ultrapassa a altitude do monte Hélicon cujo cume você se esforça para atingir como se fora o céu. Mas encorajo-o a defender esta sentença porque vou tentar enfraquecê-la. - Deixe-me por enquanto - disse ele. Minha atenção está voltada intensamente para outra coisa. Então, um tanto temeroso de que ele, totalmente envolvido no estudo da poesia, fosse levado para longe do estudo da filosofia, disse-lhe: - Irrita-me ver você cantando e berrando esses seus versos em todo gênero de ritmo, que tentam levantar entre você e a verdade uma muralha maior que a que havia entre aqueles que você canta, os quais respiravam por uma pequena fenda. Ele se propunha a cantar agora o poema de Príamo. 9. Tendo-lhe dito isto com uma voz mais severa do que ele esperava, calou-se por um bom tempo. Eu já havia deixado o debate iniciado e voltado a meus pensamentos, para não tentar em vão e importunamente ocupar a quem já estava ocupado. Então, ele disse: - Eu mesmo, sob minha própria acusação, sou quase tão miserável como um rato: isto não se disse com tanta propriedade em Terêncio do que pode agora ser dito por mim mesmo e de mim mesmo. Mas talvez o que se diz por último se volte ao contrário para mim; porque se ele diz: Hoje estou perdido, talvez hoje eu me reencontre. Se não desprezais o que os supersticiosos costumam augurar sobre os ratos, se eu com meu barulho assustei aquele rato, que me acusou para você que eu estava acordado, para que ele voltasse ao seu buraco e ali ficasse sossegado, por que não seja eu agora admoestado, pelo rigor da sua palavra, a filosofar e não a cantar versos? Pois já comecei a acreditar em você que diariamente prova que a filosofia é nosso verdadeiro e inabalável lugar de habitação. Pelo que, se não lhe for incômodo e se você acha que deva fazê-lo, pergunte o que quiser: defenderei, o quanto eu puder, a ordem das coisas e afirmarei que nada se pode fazer fora da ordem. Porque me acho tão envolvido nisso que, embora alguém me supere neste debate, não o atribuirei à temeridade, mas à ordem das coisas. Neste caso, não terá sido vencida a verdade, mas sim Licêncio. IV,10. Novamente contente me recompus em relação a eles, e disse a Trigécio: - Que lhe parece? - Certamente - respondeu ele - sou muito a favor da ordem. Contudo, tenho dúvidas e desejo que se discuta com toda diligência esta questão tão importante. - Agradeço o seu apoio. Quanto às suas dúvidas, acho que isso é comum tanto a Licêncio como a mim mesmo. - Estou inteiramente certo desta sentença - disse Licêncio. Como vou duvidar em destruir, antes mesmo que seja levantada, aquela parede que você mencionou? Pois na realidade a arte poética não pode me afastar da filosofia tanto quanto a desconfiança de encontrar a verdade. Então Trigécio, com palavras jocosas, disse: -Já temos o Licêncio livre das dúvidas dos acadêmicos, pois costumava defendê-los com tanto ardor. - Deixe disso - replicou ele - para que esta sua astúcia ou algo de bajulação não me afaste nem me arrebate de não sei que coisa divina que começou a manifestar-se a mim e à qual me dedico com ardente desejo. Neste momento, percebendo eu que minha alegria era muito mais transbordante do que alguma vez ousei desejar, com grande contentamento proferi este verso: "Assim aquele Pai o torne deus, assim o sublime Apoio". É preciso começar para que ele nos conduza, desde que sigamos para onde ele nos manda e onde fixar a morada, ele que nos dá agora a interpretação dos sinais e se infunde em nossos espíritos. E não se trata do sublime Apolo que, nas grutas, nos montes, nos bosques, incitado pelo cheiro dos incensos e pelos sacrifícios das ovelhas, enche de poesia os insanos. Certamente se trata de outro, aquele outro sublime e verdadeiro (veridicus) (para que fazer rodeios de palavras?). É a própria Verdade (veritas): os seus vaticinadores são todos aqueles que possam ser sábios. Portanto, adiante, Licêncio, cultivando com base na piedade, sufoquemos com nossos pés o pernicioso fogo das negras paixões. É possível que alguma coisa aconteça sem uma causa? 11. Pergunte-me - disse ele - não sei se posso explicar isso com suas e minhas palavras. - Responda-me à seguinte pergunta: por que lhe parece que esta água não flua assim casualmente, mas conforme a ordem? Que ela escorra nos aquedutos de madeira e seja conduzida para nossos usos e possa pertencer à ordem, pois isto foi feito pelos homens usando da razão para que, como era lógico que assim se fizesse, do seu único curso se servissem ao mesmo tempo para beber, lavar-se e segundo as conveniências dos lugares. Mas que aquelas folhas caíssem, como você diz, de modo que ocorresse o que estávamos admirando, como afinal pensar que seja pela ordem das coisas e não por casualidade? - Como se pudesse parecer àquele que percebe atentamente que nada se pode fazer sem uma causa - disse ele - que as que caíram devessem ou pudessem cair de outra maneira. Por acaso você quer que eu investigue as posições das árvores e dos galhos e qual o peso que a natureza determinou para as suas folhas? Que tenho eu a ver com investigar o movimento do ar pelo qual as folhas esvoaçam, ou a delicadeza com que elas caem e as diversas maneiras de cair de acordo com a condição atmosférica, o peso e formas de cada uma e outras causas inumeráveis e obscuras? Estas coisas escapam inteiramente aos nossos sentidos. Mas o que é bastante para a questão aqui abordada, isto é, que nada se faz sem uma causa, não sei como, mas não escapa ao nosso espírito. Alguém dado a perguntas enfadonhas poderia continuar perguntando: por que razão foram colocadas árvores ali? Responderei que os homens seguiram a fertilidade do solo. - E se as árvores não são frutíferas e tenham nascido ao acaso? - Responderei que pouco sabemos a este respeito e nem se pode tachar de temerária a natureza que as gerou. Que mais? Ou sou instruído no sentido de que alguma coisa se faz sem uma causa ou então, creiam, nada se faz senão de acordo com uma ordem certa de causas. V,12. Então eu lhe disse: - Embora você me chame de perguntador impertinente (pois certamente devo sê-lo porque o arranquei de seus colóquios com Príamo e Tisbe), contudo continuarei a fazer-lhe perguntas. Esta natureza, que você acha tão ordenada, para que utilidade, deixando de lado outras inumeráveis coisas, ela gerou estas árvores que não produzem frutos? Enquanto ele pensava o que dizer, Trigécio disse: - Por acaso a utilidade das árvores se oferece aos homens apenas nos seus frutos? Não existem tantas outras coisas que elas oferecem com sua sombra, madeira e até mesmo o que se pode fazer com as próprias folhas? - Não dê tal resposta às perguntas dele - disse ele. Pois podem ser mencionadas muitíssimas coisas nas quais não há nenhuma utilidade para os homens, ou cuja utilidade se nos escapa ou é tão pouca que não pode ser descoberta ou definida pelos homens, principalmente por nós. Ele, então, que nos ensine se há algo sem uma causa que o preceda. - Depois veremos isto - disse-lhe eu. Não há necessidade que eu seja o professor, quando você já declarou estar certo desta coisa tão elevada, mas até agora nada me ensinou, enquanto eu tenho grande desejo de aprendê-lo e me empenho por isso dias e noites. 13. - Em que apuros você me coloca! - disse ele. É, talvez, porque sou mais ligeiro em segui-lo que as folhas ao vento pelo qual elas são lançadas à água corrente, de modo que seja pouco dizer se elas caem se também não são arrastadas? Que outra coisa seria se Licêncio se pusesse a ensinar a Agostinho e precisamente essas questões que estão no âmago da filosofia? - Não faça tão pouco de você mesmo - disse-lhe eu - nem me exalte tanto. Pois também eu sou uma criança em filosofia e, quando pergunto, não me importa tanto quem seja aquele por meio do qual me responda aquele que diariamente ouve as minhas queixas, do qual acredito que você algum dia será um profeta. E este algum dia talvez não esteja longe. Contudo, também outros bastante afastados deste tipo de estudos podem ensinar algo quando se ligam como que por vínculos de perguntas ao grupo dos que discutem algo. Mas aquele algo é algo. Por acaso você não percebe que aquelas mesmas folhas (usando livremente a sua comparação), que são levadas pelo vento e boiam na corrente, podem resistir um pouco ao curso das águas que se precipitam e lembram aos homens a ordem das coisas, se é verdade o que é defendido por você? 14. E ele, saltando de alegria da sua cama, exclamou: - Quem o negará, ó grande Deus, que administrais tudo com ordem? Como tudo se mantém! Com que sucessões invariáveis tudo é impelido aos seus desenlaces! Quantas coisas terão ocorrido até que discutíssemos tais coisas! Quantas coisas se fazem para que vos encontremos! De onde, senão da ordem das coisas, procede e é conduzido isto mesmo que agora nos acontece, isto é, o fato de estarmos acordados e de você ter notado aquele ruído cuja causa você, mesmo investigando-a consigo mesmo, não chegou a uma conclusão sobre a razão de uma coisinha tão insignificante? Também o rato apareceu para que eu acordasse e me manifestasse. Finalmente, também as suas mesmas palavras, talvez sem intenção da sua parte (pois ninguém tem domínio sobre o que lhe vem à mente), não sei como elas mesmas, dando voltas de cá para lá, me ensinam o que lhe deva responder. Então, eu lhe pergunto, se tudo o que foi dito por nós aqui vai ser redigido por escrito, como você se propõe, para que se divulgue por toda parte para chegar à fama dos homens, por acaso não parecerá uma coisa tão importante que algum grande profeta ou vaticinador caldeu, consultado sobre esta questão, devesse responder muito antes que tivesse acontecido? E se tivesse respondido, seria ele julgado tão divino e tão exaltado por louvores de todos que ninguém ousaria perguntar-lhe por que razão a folha caiu da árvore ou se o rato, vagando de um lado para outro, molestou o homem que dormia em sua cama? Por acaso algum deles teria predito tais coisas futuras por si mesmo ou teria sido forçado por algum consultor a predizê-las? Ora, se ele predissesse que se haveria de publicar certo livro que vale a pena ser conhecido e previsse que isto necessariamente iria acontecer (pois não poderia adivinhar de outra maneira), então o que quer que seja o esvoaçar das folhas no campo, o que quer que faça em casa esse desprezível animalzinho, certamente isto é tão necessário na ordem das coisas como estes escritos. Pois com estas palavras concebem-se pensamentos que não poderiam ter vindo à mente nem o que procede da boca poderia ser legado à posteridade, se antes não tivessem acontecido estas coisas tão insignificantes. Pelo que peço que ninguém me pergunte por que ocorre cada coisa. Basta-me saber que nada se faz, nada se produz, sem que alguma causa o tenha feito e produzido. Existe alguma coisa de contrário à ordem? VI,15. - Pelo que você acaba de falar - disse-lhe eu - fica evidente que, na qualidade de adolescente, você desconhece quantas coisas foram ditas por autores de peso. Mas responda agora, não se algo se faz sem causa (pois vejo que você não quer responder a isto), mas se esta ordem, que você defende, lhe parece ser algo bom ou algo ruim. Ele respondeu murmurando: - A pergunta que você me fez está colocada de tal modo que não posso responder uma de duas coisas. Pois vejo que aqui cabe um termo médio, pois a ordem parece-me ser nem boa nem má. - Você acha - disse-lhe eu - que pelo menos haja algo contrário à ordem? - Nada - respondeu ele. Pois como pode alguma coisa ser contrária àquilo que ocupa o todo e se mantém no todo? O que for contrário à ordem deve estar fora da ordem. Mas nada vejo que esteja fora da ordem e, portanto, convém julgar que nada há contrário à ordem. - Logo, o erro não é contrário à ordem? - perguntou Trigécio. - De modo algum - respondeu ele - pois não vejo que haja alguém que erre sem uma causa, porque a série de causas se insere na ordem. E o erro não somente procede de uma causa, mas também produz algum efeito do qual é causa. Por isso, o que não está fora da ordem, por isto mesmo não pode ser contrário à ordem. 16. Quando Trigécio se calou, eu não cabia em mim mesmo de tanta alegria, por ver que aquele adolescente, filho de um grande amigo meu, se tornava agora também meu filho. Não somente isto senão que também se mostrava como amigo meu e crescia nesta amizade. Eu não tinha esperança em sua aplicação ao estudo, ainda que fosse para chegar a ser mediano nas letras e o vejo agora, tendo deixado para trás suas posses, lançar-se com todo entusiasmo ao âmago da filosofia. Enquanto, ainda em silêncio, me admiro disso e com grande desejo de felicita-lo, de repente ele, como que arrebatado em sua mente exclama: - Oxalá eu tivesse palavras para poder dizer o que quero! Onde, onde estais, ó palavras, vinde em minha ajuda! Tanto os bens como os males estão no âmbito da ordem. Creiam se quiserem, pois não sei como explicá-lo. VII,17. Eu me admirava disso e permanecia em silêncio. Mas Trigécio, depois de ter percebido que o adolescente, como que curado de uma embriaguês, já estava um pouco afável e havia voltado à conversa, disse-lhe: - Parece-me absurdo, Licêncio, e completamente alheio à verdade o que você diz. Tenha paciência para me suportar um pouco e não me perturbe com os seus gritos. - Diga o que quiser - replicou ele - pois não temo que me desvie do que estou contemplando e quase compreendendo. - Oxalá - disse Trigécio - você não se desvie da ordem que você defende e não seja (falando de maneira mais branda) levado por tanto descuido para com Deus. Pois pode-se dizer coisa mais ímpia do que também os males estão incluídos na ordem? Porque Deus certamente ama a ordem. - Realmente a ama - respondeu. A ordem procede dele e permanece nele. E se há algo que se possa dizer com mais conveniência a respeito de uma coisa tão elevada, reflita você mesmo sobre isto, porque por ora não estou apto a ensinar-lhe tais coisas. - Refletir sobre o quê? - disse Trigécio. Tomo ao pé da letra o que você diz e para mim é bastante pelo que entendo. Você certamente disse que os males estão incluídos na ordem e que a mesma ordem provém do sumo Deus e é amada por ele. Disto se segue que os males provêm do sumo Deus e que Deus os ama. 18. Após esta conclusão, temi por Licêncio. Mas ele, lamentando-se pela dificuldade das palavras e sem rebuscar o que responder, mas sim de que maneira ele expressaria e devia responder a isto, disse: - Deus não ama os males, porque não é próprio da ordem que Deus ame os inales. Ele ama muito a ordem porque por ela não ama os males. Entretanto, como podem os mesmos males não estar dentro da ordem se Deus não os ama? Esta mesma é a ordem dos males, isto é, que não sejam amados por Deus. Parece-lhe insignificante a ordem das coisas pelo fato de que Deus ame as coisas boas e não ame as coisas más? Portanto, não estão fora da ordem os males, que Deus não ama, embora amando a mesma ordem: amar as coisas boas e não amar as coisas más, é isto mesmo que ele ama, o que é próprio de uma ordem sublime e de uma divina disposição. Por esta ordem e disposição ele conserva a coerência da universalidade das coisas pela própria distinção, resultando que seja necessário que também os males existam. Desse modo, por uma espécie de antítese, isto é, pelos contrários, o que nos é tão agradável também na oratória, forma-se a beleza do conjunto de todas as coisas. 19. Depois disso, fez-se um breve silêncio. De repente, levantando-se pelo lado onde estava a cama de Trigécio, disse: - Então, lhe pergunto: Deus é justo? Trigécio se calava porque, como nos contou depois, admirava-o muito e temia que seu condiscípulo e amigo fizesse outro discurso inflamado de nova inspiração. Como ele continuasse calado, Licêncio prosseguiu: - Se você responder que Deus não é justo, cuidado com o que disser, pois há pouco você me acusava de impiedade. Porém, como nos é ensinado e o sentimos pela necessidade da própria ordem, se Deus é justo, ele certamente o é distribuindo a cada o que lhe compete. Mas que distribuição pode haver, se não houve distribuição alguma? E que distinção, se tudo é bom? O que se pode encontrar fora da ordem, se pela justiça de Deus é dado a cada o que lhe compete por seus méritos, tanto dos bons como dos maus? Todos nós confessamos que Deus é justo. Logo, tudo se inclui na ordem. Depois de dizer estas coisas, saltou de sua cama e, com voz mais suave, uma vez que ninguém lhe dirigia a palavra, disse-me: - Nem mesmo você, que provocou toda esta discussão, me responde algo? Valor da poesia para a pesquisa filosófica sobre a ordem 20. Eu lhe disse: - Acho que um novo fervor religioso agora tomou conta de você. Mas qual é a minha opinião, eu lhe direi durante o dia, que parece já estar raiando, a não ser que aquela claridade que entra pelas janelas seja da lua. Ao mesmo tempo, Licêncio, é desejável que tantas coisas boas que você disse não caiam no esquecimento. Algumas vezes nossas atividades literárias não exigiram que se guarde tudo na memória? Dir-lhe-ei claramente o que sinto, disputarei contra você o quanto eu puder; pois não pode haver maior triunfo para mim do que se você me vencer. Mas se a sua debilidade, por estar menos alimentada pela erudição das disciplinas, não puder talvez defender a causa de tão grande Deus e ceder à astúcia e à agudeza de raciocínio de algum erro dos homens, cuja defesa tentarei fazer, isto mesmo lhe ensinará quantas forças você deve ainda adquirir para voltar a ele com mais firmeza. Mesmo porque quero que esta nossa discussão resulte mais burilada, pois eu a devo a pessoas de fina percepção. Pois nosso amigo Zenóbio com frequência consultou-me sobre muitos pontos a respeito da ordem das coisas, mas nunca pude satisfazer-lhe o desejo em tão elevadas questões, seja pela falta de clareza das questões seja por causa da exiguidade do tempo. Mas ele ficou tão impaciente por causa dos meus frequentes adiamentos que, para forçar-me a lhe responder mais copiosa e diligentemente, desafiou-me com um poema, por certo um lindo poema, pelo que você, na qualidade de poeta, deve amá-lo mais. Mas na ocasião você não pôde lê-lo porque ainda estava muito longe desses estudos. E nem o pode agora, pois a partida dele foi tão repentina e agitada que, precisamente por causa da agitação do momento, não nos lembramos do poema. Ele havia decidido deixá-lo comigo para que lhe respondesse, donde muitos motivos coincidiram para que este livro lhe seja dedicado. O primeiro motivo é que lhe é devido, o segundo, porque convém que lhe seja mostrado o tipo de vida que agora levamos e também em atenção à sua benevolência para conosco; finalmente porque mais que ninguém ele tem alegria pela esperança a respeito de você. Pois quando ele estava presente conosco, pela amizade do seu pai e também de todos nós, ele se preocupava muito com que algumas centelhas da sua inteligência, que ele observava atentamente, não somente fossem atiçadas pelo meu cuidado para com você como também não se extinguissem pelo seu descuido. E, ao saber que você também se dedica ao estudo da arte poética, certamente ele ficará tão grato que já me parece vê-lo saltar de alegria. VIII,21. - Nada mais prazeroso para mim do que você está fazendo - respondeu ele. Mas ou vocês zombarão da minha inconstância e da minha superficialidade infantil, ou não duvido em dizer-lhas que certamente algo acontece em nós por algum sinal divino e por alguma ordem; não sei o que, mas algo brilhou agora em mim com outra luz, uma luz muito diferente. Confesso que a filosofia é mais bela que Tisbe, que Príamo, mais que Vênus e Cupido e outros amores semelhantes. E, suspirando, ele agradecia a Cristo. Que dizer? Eu ouvia isto com alegria ou, por que não dizê-lo? Interprete cada qual como quiser, falo de mim, a não ser talvez que minha alegria fosse imoderada. 22. Entretanto, pouco depois raiou o dia. Eles se levantaram e eu, chorando, rezava muito, quando ouvi Licêncio, alegre e tagarela, cantarolando aquele verso profético: Deus dos poderes, transformai-nos; mostrai-nos vossa face e seremos salvos. Ele já havia feito isto no dia anterior após o jantar quando saiu para fazer as necessidades da natureza, e cantava um pouco mais alto ao ponto que nossa mãe não pôde tolerar que tais cânticos sagrados fossem continuamente cantados naquele lugar. Ele nada mais dizia senão que fazia pouco tempo ele tinha ouvido aquele tipo de cantiga suave e gostava dela como uma rara melodia. A religiosíssima mulher, como você a conhece, repreendeu-o pelo fato de que aquele lugar era impróprio para aquele cântico. Então ele, gracejando, disse: - Mas se algum inimigo me prender nesse lugar, Deus não há de escutar a minha voz? 23. Quando, naquela manhã, ele voltou sozinho (pois ambos haviam saído pelo mesmo motivo), aproximou-se da minha cama e disse: - Diga-me a verdade, seja feito de nós o que você quiser, mas diga-me o que você acha de mim. Pegando a mão direita do rapaz, eu lhe disse: - Você sabe, acredita e entende o que penso. Não acho que você tenha cantado em vão durante tanto tempo ontem para que o Deus das virtudes se manifeste a você convertido. Entretanto ele, recordando o passado, acrescentou: - Você fala uma grande coisa e é verdade. Pois não pouco me comove o fato de que não há muito tempo eu me afligia porque era afastado daquelas ninharias do meu poema e, agora, repugna-me e envergonha-me voltar a elas, de tanto que estou totalmente atraído para coisas tão grandes e maravilhosas. Isto não significa converter-se verdadeiramente a Deus? Ao mesmo tempo, alegro-me que se tenha tentado em vão incutir-me a dúvida de um escrúpulo sem sentido, pelo fato de que eu estava cantarolando aqueles cânticos naquele lugar. - A mim isto não desagradava - disse-lhe eu. Creio que pertence àquela ordem, de modo que possamos dizer algo por este motivo. Pois vejo que o próprio lugar, pelo qual ela ficou indignada, e a noite combinam com aquele cântico. De que coisas você acha que pedimos para nos convertermos a Deus e vermos a sua face, senão de certa sujeira e mesquinharias do corpo e igualmente das trevas em que o erro nos envolve? E que outra coisa significa converter-se senão levantar-se da imoderação dos vícios pela virtude e temperança? E que outra coisa é a face de Deus senão a própria verdade pela qual suspiramos e à qual nos entregamos como à amada adornada de enfeites? - Melhor que isto não se pode expressar - exclamou ele. Em seguida, falou-me em voz baixa, quase ao ouvido: - Veja quantas coisas ocorreram para que eu creia que algo de ordem mais afortunada se realiza em relação a nós. 24. - Se você se preocupa com a ordem - disse-lhe eu - deve retornar àqueles poemas. Pois a erudição moderada e parcimoniosa nas disciplinas liberais, Licêncio, nos torna mais resolutos, mais perseverantes e amantes mais agradáveis para abraçar a verdade, para desejá-la mais ardentemente, segui-la com mais constância e, finalmente, apegar-nos com mais doçura à vida feliz. Quando esta é mencionada, todos se levantam e como que estendem as mãos, se porventura você tem algo que lhe possa dar, a eles indigentes e acometidos de várias doenças. Mas quando a sabedoria lhes manda que consultem um médico e com paciência se deixem curar, eles voltam aos seus trapos. Contaminados por esse ardor, eles raspam a lepra dos prazeres perniciosos com mais gosto que, suportando e submetendo-se às prescrições do médico, um tanto duras e incômodas para as doenças, sejam devolvidos à saúde dos sãos e à luz. Por conseguinte, satisfeitos com o nome e sentimento do sumo Deus, contentes por assim dizer com uma esmola, vivem miseráveis, mas vivem. Porém, aquele esposo ótimo e belíssimo busca outros homens ou, melhor falando, outras almas dignas do seu leito nupcial para que, enquanto vivem neste corpo, não lhes baste apenas viver, mas viver felizes. Por enquanto dedique-se às suas musas. Mas sabe o que quero que você faça? - Ordene-me o que quiser - respondeu ele. - Quando Príamo e sua amada perecem lançando-se sobre o semimorto, como você celebra no seu verso, você tem uma ótima oportunidade na mesma dor com que convém que se inflame mais veementemente o seu poema. Aproveite a ocasião para abominar aquela paixão vergonhosa e ardores peçonhentos, com que acontecem essas deploráveis coisas; em seguida, eleve-se todo para o louvor do amor puro e sincero com que as almas, dotadas das artes liberais e formosas pela virtude, se unem ao Intelecto pela filosofia e não só evitam a morte, mas também gozam da vida felicíssima. Depois, em silêncio e acenando com longa consideração, retirou-se balançando a cabeça. A luta entre os galos 25. Em seguida, eu também me levantei e, depois de fazer as orações diárias a Deus, nos pusemos a caminho do local dos banhos (pois aquele lugar nos era familiar e adequado para nossas discussões, uma vez que não podíamos ficar no campo porque o céu estava escuro) e eis que, ao sairmos, estando ainda diante da porta, reparamos que os galos estavam numa tremenda luta. Deu-nos vontade de assistir. Pois o que não sondam e por onde não percorrem os olhos dos que amam, para onde sinaliza a beleza da razão que regula e governa tudo o que tem ciência e tudo o que não tem ciência, beleza esta que atrai a si os seus admiradores e seguidores e lhes ordena que a busquem em qualquer parte e por todo lugar? De onde e onde ela não pode dar sinal de si? Assim era também naqueles mesmos galos: suas cabeças projetadas para frente, as plumagens eriçadas, golpes violentos, cautelosas atitudes para esquivar-se dos ataques, e tudo proporcional em cada movimento dos animais desprovidos de razão, mas sem dúvida tudo sendo regulado por uma outra razão superior. Finalmente, a lei do vencedor: o canto altivo e todo o seu corpo recolhido como que num só círculo para orgulho do seu domínio; e o sinal do vencido: suas asas depenadas, deforme a sua voz e desfigurados os seus movimentos. Não sei como, mas tudo isso manifesta beleza e harmonia com as leis da natureza. 26. Durante aquele espetáculo, perguntávamos muitas coisas: por que assim agem todos? Por que procedem assim para dominar as fêmeas que lhes são submissas? Por que a própria visão da luta, além de nos proporcionar esta reflexão mais elevada, levou-nos bastante ao prazer do espetáculo? Que podia haver em nós que nos levava a investigar coisas que estão longe dos sentidos? E o que se seduziria em nós por atração dos próprios sentidos? Dizíamos entre nós mesmos: onde não há lei? Onde o poder se deve ao melhor? Onde não há vestígio de constância? Onde não há imitação daquela verdadeiríssima beleza? Onde não há uma medida administradora? Assim, admoestados para que houvesse moderação em contemplar o espetáculo, nos dirigimos para onde era nosso propósito. E ali, como pudemos, com bastante dedicação (pois as questões eram recentes e, por isso, como poderiam coisas tão marcantes escapar da memória dos três estudiosos?) elaboramos todos os resultados dos trabalhos de nossas discussões reunindo-os para formar esta parte do livro. Para poupar minha saúde, mais nada fiz naquele dia, a não ser antes do jantar, pois eu estava acostumado a ouvir diariamente com eles a leitura da metade de um volume de Virgílio. Onde quer que estivéssemos, não nos ocupava outra coisa senão a reflexão sobre o ritmo das coisas. Ninguém podia deixar de aprová-lo; mas é muito difícil e raro senti-lo quando se faz algo com empenho. SEGUNDA DISCUSSÃO Exortação preliminar de Agostinho IX,27. No dia seguinte, de manhã bem cedo, nos dirigimos alegres ao lugar de sempre e aí nos sentamos. - Fiquem aqui - disse-lhas eu - você, Licêncio, e você também, Trigécio. Não é insignificante a questão de que vamos tratar: vamos discutir sobre a ordem. E agora, deveria eu fazer-lhes um discurso eloquente e elegante de louvor à ordem, como se eu estivesse investido de poder na cátedra daquela escola, da qual me alegro de ter de algum modo ficado livre? Aceitem se quiserem ou, melhor, empenhem-se em aceitar o fato de que não se pode expressar um louvor mais breve à ordem nem, segundo me parece, mais verdadeiro, do que o seguinte: a ordem é aquilo que, se a conservarmos em nossa vida, nos leva a Deus e, se não a conservarmos em nossa vida, não chegaremos a Deus. Mas supomos e esperamos que haveremos de chegar, a não ser que minha mente me engane a respeito de vocês. Esta questão deve, portanto, ser discutida com toda a diligência entre nós e resolvida. Eu gostaria que estivessem presentes também os outros que costumam tomar parte conosco nestas atividades. Gostaria que, se fosse possível, não somente eles, mas também pelo menos todos os nossos amigos, cuja inteligência sempre admiro, compartilhassem agora comigo como vocês estão. Certamente eu gostaria que aqui estivesse pelo menos Zenóbio, que se preocupa por esta questão tão importante, mas nunca tive um tempo livre para responder-lhe, dada a grandeza da questão. Porém, uma vez que isto não ocorre, eles irão ler nossos escritos porque nos propusemos não perder as palavras elaboradas sobre estas questões e, como que as amarrando com uma corda, fixar por escrito as mesmas questões que poderiam escapar da memória. Talvez assim o exigisse a mesma ordem que cuidou para que estivessem ausentes. Certamente vocês entram numa questão tão importante com um ânimo mais elevado, porque somente a nós se impõe a tarefa de levá-la a cabo. Quando eles, a quem temos no máximo apreço, lerem o nosso livro, se houver algo que os leve a objeções, então esta discussão nos dará ocasião para outras discussões e, assim, a mesma série de raciocínios insere-se numa ordem de método de ensino. Mas agora, como eu havia prometido, e à medida que a discussão o permita, serei adversário de Licêncio, que terá então concluído todo o assunto se puder fortificá-lo de maneira constante e firme com a muralha da defesa. Primeira definição da ordem X,28. Neste ponto, pelo silêncio deles, nos seus rostos, olhos e pela atitude com que mantinham o corpo quieto e imóvel, percebi que eles estavam bastante motivados pela magnitude do assunto e inflamados pelo desejo de ouvir. - Então, Licêncio - disse-lhe eu - veja se você reúne dentro de você mesmo as forças que puder, afine o que você tem de agudeza de mente e diga com uma definição o que seja a ordem. E ele, ao ouvir que era intimado a dar uma definição, apavorou-se como se tivesse levado uma ducha de água fria e, olhando-me perturbado, mas sorrindo da sua inquietação, disse: - Que é isto? O que você pensa que sou? Acaso você me acha cheio de não sei que espírito estranho? Mas logo animando-se, disse: - Ou, talvez, eu tenha, sim, algo a dizer. Calou-se por um breve momento para resumir mentalmente numa definição o que ele sabia a respeito da ordem. Em seguida, levantando-se, disse: - A ordem é aquilo pelo qual são feitas todas as coisas que Deus estabeleceu. Agostinho repreende Licêncio e Trigécio pela rivalidade mútua 29. - Não lhe parece - disse eu - que o próprio Deus age de acordo com a ordem? - Realmente me parece - respondeu ele. - Então, também Deus é movido - disse Trigécio. - O quê?! - disse Licêncio. Você nega que Cristo é Deus, que ele veio a nós conforme a ordem e que ele mesmo se diz enviado de Deus Pai? Se, portanto, Deus nos enviou Cristo de acordo com a ordem, e não negamos que Cristo é Deus, não somente ele move todas as coisas, mas também Deus é movido de acordo com a ordem. Neste ponto Trigécio, meio duvidoso, disse: - Não sei como posso aceitar isto, pois, quando nos referimos a Deus, não nos vem à mente o próprio Cristo, mas sim o Pai. Mas, quando nos referimos ao Filho de Deus, aí nos ocorre o Cristo. - Ah! Que bela coisa você diz! - disse Licêncio. Então vamos negar que o Filho de Deus seja Deus? Então, parecendo-lhe perigoso responder, concentrou-se e disse: - Certamente ele é Deus, mas é ao Pai que especificamente damos o nome de Deus. Eu intervim dizendo: - Alto lá! Não é impróprio dizer que o Filho seja Deus. E ele, imbuído de um sentimento religioso, não queria que aquelas suas palavras fossem escritas; mas Licêncio, movido por um procedimento infantil ou à maneira de homens, infelizmente de quase todos os homens, insistia que as palavras de Trigécio fossem escritas, como se esta rivalidade fosse motivo de glória entre nós. Mas repreendi com graves palavras esta sua animosidade, ao ponto de ele ficar vermelho de vergonha. E percebi que Trigécio ria e gozava porque Licêncio tinha ficado vermelho. Então, eu disse aos dois: - É assim que vocês procedem? Não lhes importa considerar que somos oprimidos por uma quantidade de vícios e somos envolvidos por trevas de ignorância? É esta aquela atenção e elevação que há pouco vocês tinham em relação a Deus e à verdade, de que eu, tolo, me alegrava? Oh! Se vocês vissem, ainda que fosse com olhos tão turvos quanto os meus, em que perigo jazemos e que mórbida loucura esta zombaria de vocês indica! Ah! Se vocês soubessem! Logo e rapidamente vocês mudariam essas risadas em choro! Infelizes, vocês não sabem onde estamos? É comum que os ânimos de todos os bobos e ignorantes estejam submergidos, mas a sabedoria oferece ajuda e estende a mão aos submersos não de uma única e só maneira. E, creiam, uns são chamados às alturas, outros permanecem nas profundezas. Peço-lhes que não dupliquem os motivos da minha inquietação. Já me são bastantes os das minhas feridas, cuja cura imploro a Deus todos os dias chorando, embora eu esteja convicto de não ser digno de ser curado tão logo como o desejo. Se vocês têm por mim algum amor, alguma relação de amizade; se vocês entendem o quanto eu os amo, o quanto os estimo, com quanto cuidado me preocupo com o procedimento moral de vocês; se sou digno de que vocês não me desprezem; se, enfim, sendo Deus testemunha disso, eu não minto ao desejar para mim mesmo nada mais do que desejo para vocês, então façam-me este obséquio: se vocês de boa vontade me chamam de mestre, retribuam-me com este favor: sejam bons. 30. Neste ponto, as lágrimas impediram-me de continuar a falar. Licêncio, não suportando de modo algum que tudo fosse registrado por escrito, disse: - O que fizemos? - Ainda não reconhece ao menos o seu erro? - respondi. Você não sabe que era comum eu me irritar muito na escola pelo fato de que os jovens eram levados, não pelo interesse e beleza das matérias de ensino, mas por amor a um louvor fútil, a tal ponto que alguns não tinham vergonha até mesmo de recitar discursos de outros e receber aplausos - lamentável erro! - daqueles mesmos a quem pertenciam os discursos que recitavam. Assim vocês, embora, segundo me parece, não tenham feito tal coisa, contudo tentam introduzir e semear na filosofia e no modo de vida, que me alegro de haver empreendido, o último, porém, mais nocivo desvario que todos os outros, o da rivalidade destruidora e da arrogância vazia. E talvez, por eu dissuadi-los desta vaidade e deste mal, vocês serão mais indolentes para os estudos da doutrina e, sacudidos pelo entusiasmo de uma fama que se vai com o vento, se congelarão no entorpecimento da preguiça. Coitado de mim se ainda eu tiver de aturar pessoas deste tipo, das quais não se podem tirar os erros sem a ocorrência de outros erros. - Você verá - disse Licêncio - como seremos mais puros. Por ora lhe pedimos, por tudo o que você ama, que nos queira perdoar e mande apagar todas essas coisas escritas, assim, ao mesmo tempo, economizando as tabuinhas de escrever, porque já não as temos mais. Pois alguma coisa do que se discutiu entre nós ainda não se passou para o livro. Mas Trigécio discordou: - Deve permanecer escrito para castigo nosso, para que a mesma fama que nos seduz, pelo seu próprio chicote nos afaste do seu amor. Mesmo que estes escritos cheguem ao conhecimento apenas de nossos amigos e familiares, não será pouco o que suaremos de vergonha. Licêncio concordou. A "filosofia" de Mônica XI,31. Entretanto, minha mãe entrou e perguntou-nos sobre a discussão que havíamos levantado; mas ela já sabia qual era a questão. Tendo eu ordenado que fossem escritas, conforme nosso costume, a intervenção e a pergunta dela, disse ela: - Que estão fazendo? Por acaso ouvi alguma vez que nos livros que vocês leem também as mulheres tenham sido admitidas a este gênero de discussões? Ao que lhe respondi: - Pouco me importam os juízos dos soberbos e ignorantes, que procuram a leitura de livros do mesmo modo como buscam os louvores dos homens. Pois eles não consideram quem são, mas com que roupas estejam vestidos e que brilho tem a pompa de seus bens e de sua fortuna. Nos estudos eles não observam muito de que questão se trata, ou a que fim desejam chegar com as discussões, ou o que tenham eles explicado e elaborado. Porém, entre eles encontram-se alguns cuja inteligência não é de se desprezar (pois são borrifados com alguns condimentos de erudição das belas artes e facilmente são levados ao sacrossanto templo da filosofia através de portas douradas), aos quais nossos antepassados apreciaram bastante e cujos livros percebo que você, mãe, os conhece por meio de nossa leitura. E atualmente, deixando de mencionar outros, existe um homem dotado de talento e eloquência, que possui brasões de nobreza e bens de fortuna e, o que é mais importante, eminentíssimo pelo seu caráter, Teodoro; a quem você bem conhece, o qual desenvolve sua atividade para que nenhum tipo de homem possa, agora e nas gerações futuras, ter razão para se lamentar da situação das ciências em nossos tempos. Mas no caso em que meus livros cheguem às mãos de alguns que, ao lerem meu nome, perguntem: mas quem é este? Porém não descartem o volume mas, ou por curiosidade ou por um grande amor ao estudo, deixando de lado a pobreza da capa do livro, resolvam entrar no assunto deste livro, não levarão a mal ver-me filosofando com você nem desprezarão a quem quer que seja destes cujas palavras se misturam com as minhas. Pois não somente são livres, o que é bastante para qualquer tipo de ensino liberal e para a filosofia, mas também de posição nobre junto aos seus pelo nascimento. Os escritos de homens muito instruídos narram que até sapateiros e homens de condições sociais de classe mais baixa se dedicam à filosofia, os quais brilharam com tanta luz de sua inteligência e virtude que de maneira alguma teriam querido trocar, ainda que o pudessem, sua posição social por qualquer título de nobreza. Nem faltarão homens, creia-me, mãe, que se alegrarão mais disso mesmo, isto é, que você filosofe comigo, do que se encontrassem aqui neste livro outro tipo de bom humor ou de assunto sério. E houve mulheres entre os antigos que se dedicaram à filosofia, e a filosofia que você apresenta agrada-me muito. 32. E para que você, mãe, nada ignore, saiba que esta palavra grega philosophia quer dizer em nossa língua latina amor sapientiae (amor à sabedoria). Também as divinas Escrituras, que você estima muitíssimo, mandam que se evitem e se zombe não de todos os filósofos, mas dos vãos filósofos deste mundo. O próprio Cristo indica que existe outro mundo remotíssimo dos sentidos, que é contemplado por poucos de mente sã, o qual não disse: meu Reino não é do mundo, mas: meu Reino não é deste mundo. Se alguém julga que toda filosofia deva ser evitada, não quer outra coisa senão que não amemos a sabedoria. Por isso, eu a excluiria destes meus estudos se você não amasse a sabedoria; mas não a excluiria se você a amasse somente um pouco; por maior razão tenho de admiti-la à filosofia sabendo que você ama a sabedoria tanto quanto eu. Mas, na realidade, uma vez que você a ama muito mais que a mim mesmo - e eu sei o quanto você me ama - e uma vez que você progrediu tanto em seu amor ao ponto de não temer qualquer desgraça que possa advir, nem a própria morte, progresso este que é muito difícil conseguir até mesmo aos homens muito instruídos, e que todos admitem ser este o ponto mais elevado da filosofia, então não sou eu que, de boa vontade, devo declarar-me discípulo seu? Conclusão do Livro I 33. A esta altura ela, carinhosa e religiosamente, disse-me que eu nunca havia mentido tanto. E como percebi que nosso discurso se havia prolongado demais e que devia ser escrito e que já constituía um bom volume do livro, pareceu-nos oportuno interromper a discussão, mesmo porque já não havia mais tabuinhas para escrever. Ao mesmo tempo, eu pouparia a minha dor de estômago, pois parece que as palavras que dirigi aos adolescentes provocaram essa dor mais do que eu o desejasse. Mas quando estávamos para ir embora, Licêncio disse: - Lembre-se de quantas coisas tão necessárias para nós recebemos de você e, mesmo sem você saber, nos são transmitidas por meio daquela ocultíssima e divina ordem. - Bem o percebo - disse-lhe eu - e não sou ingrato para com Deus e suponho que vocês, conscientes disso, sejam melhores. Esta foi a atividade daquele dia. LIVRO SEGUNDO TERCEIRA DISCUSSÃO Retomada da discussão a partir da definição da ordem I,1. Após alguns dias, chegou Alípio. Como o sol nascera com intenso brilho, a claridade do céu e a temperatura amena, o quanto o inverno daqueles lugares o permitia, convidaram-nos a descer o prado aonde com frequência íamos e que nos era muito familiar. Conosco estava também nossa mãe, cujo talento e espírito inflamado pelas coisas divinas eu havia percebido após longa observação e atenta consideração. Numa discussão de um assunto de elevadíssima importância que tive com meus convidados no dia do meu aniversário e que resumi depois num pequeno livro, a sua inteligência me pareceu tão grande que nada mais poderia ser mais apto para a verdadeira filosofia. Por isso, eu lhe havia estabelecido que, à medida que estivesse livre dos afazeres domésticos, ela não faltasse às nossas discussões, como você já sabe pelo que foi mencionado no primeiro livro desta obra. Deus, todas as coisas e a ordem 2. Tendo, pois, sentado da maneira mais cômoda possível no lugar acima mencionado, eu disse aos dois jovens: - Embora eu tenha ficado irritado contra vocês que tratavam infantilmente daquelas coisas de tão grande importância, contudo parece-me que o fato de tanto tempo ter sido empregado no discurso com que eu tentava afastá-los daquela leviandade não aconteceu fora de ordem e do beneplácito de Deus, de modo que a continuação do estudo da questão foi adiada até a chegada de Alípio. Pelo que, agora que já o coloquei bem a par de toda a questão, você, Licêncio, está preparado a defender a causa que você assumiu com a sua definição? Lembro-me de que você disse que ordem é aquilo pelo qual Deus faz todas as coisas. - Estou preparado na medida da minha possibilidade - disse ele. - Como Deus faz todas as coisas com ordem? - perguntei-lhe. Ele age com ordem estando dentro da ordem ou, porventura, estando ele fora da ordem, todas as demais coisas são governadas por ele? - Não há ordem - disse ele - onde tudo é bom. Porque há entre as coisas uma grande igualdade que não requer ordem. - Então você nega que em Deus tudo é bom? - Não o nego - respondeu ele. - Conclui-se, então - disse-lhe eu - que nem Deus nem as coisas que estão junto de Deus são administrados pela ordem. Ele acenava concordando. - Por acaso, parece-lhe que todas as coisas boas não sejam nada? - continuei. -Ao contrário - respondeu - são verdadeiras. - Como se entende, então, o que você disse, que tudo o que existe é governado com ordem e que nada existe que esteja fora da ordem? - Mas existem também males - disse ele - que fazem com que a ordem abranja os bens; não somente os bens, mas bens e males são governados com ordem. Pois, quando dizemos "tudo o que existe", certamente não nos referimos somente às coisas boas. Donde se deduz que todas as coisas que Deus administra são governadas com ordem. Deus, o movimento e a ordem 3. Disse-lhe eu: - Parece-lhe que se modificam ou você acha que sejam imóveis as coisas que são administradas e feitas? - As que se fazem neste mundo confesso que se mudam - respondeu ele. - E as demais, você nega que se movem? - Tudo o que está com Deus não se modifica; quanto às demais coisas, sou da opinião que se mudam. - Portanto - continuei - se você acha que as coisas que estão com Deus não se modificam; mas concorda que as demais se movem, então você quer dizer que tudo o que se muda não está com Deus. - Repita isto de maneira um pouco mais clara - solicitou ele. Mas pareceu-me que ele disse isto não pela dificuldade em compreender, mas sim para ganhar tempo e encontrar o que responder. - Você disse - continuei - que o que está com Deus não se modifica, mas as outras coisas se movem. Se, pois, o que se move não se moveria se estivesse com Deus, uma vez que você nega que se modifiquem todas as coisas que estão com Deus, resta admitir que não estão com Deus as coisas que se movem. Tendo ouvido isto, ele se calou. Por fim, disse: - Parece-me que mesmo neste mundo as coisas que permanecem sem mutação estão com Deus. - Isto em nada me interessa - disse-lhe eu. Pois com isso acho que você confessa que nem tudo o que está neste mundo se modifica. Donde se deduz que nem tudo deste mundo está com Deus. - Confesso - disse ele - nem tudo está com Deus. - Logo, existe algo sem Deus. - Não - replicou. - Portanto, todas as coisas estão com Deus. E ele, um tanto vacilante, disse: - Desculpe-me, mas eu não disse que nada há sem Deus, pois todas as coisas que se movem não me parece que estejam com Deus. - Portanto - disse-lhe eu - não está com Deus este corpo celeste de cujo movimento ninguém duvida. - O céu não está sem Deus - replicou ele. - Portanto, existe algo que se move que está com Deus. - Não consigo - disse ele - explicar o que sinto como gostaria de fazê-lo. Mas peço que entendam o que me esforço para expressar, não por minhas palavras, mas com a sagacidade de mente com que vocês possam captar. Porque me parece nada haver sem Deus e o que está com Deus parece-me que deve permanecer inabalável. Mas não posso dizer que o céu não esteja com Deus, não somente porque sou de opinião que nada há sem Deus, mas também porque acho que o céu tenha algo de imutável, que ou é Deus ou está com Deus, ainda que eu não tenha dúvidas de que o corpo celeste dê voltas e se mova. Definição do estar com Deus II,4. - Defina - disse eu - se lhe aprouver, o que seja estar com Deus e o que seja estar sem Deus. Pois se a controvérsia entre nós é de palavras, facilmente se resolverá, desde que percebamos com a mente a própria coisa que você idealizou. - Não gosto de definir - disse ele. - Que faremos, então? - perguntei-lhe. - Por favor, defina você - replicou. Pois é mais fácil para mim perceber na definição de outro o que não consigo provar do que explicar bem alguma coisa definindo-a. - Fá-lo-ei para você. Não lhe parece que estar com Deus é ser regido e governado por ele? - Não foi isto que pensei - respondeu ele - quando dizia que as coisas imutáveis estão com Deus. - Observe, então, se lhe agrada esta outra definição: está com Deus tudo o que entende a Deus. - Estou de acordo - disse ele. - Então - perguntei-lhe - não lhe parece que o sábio entende a Deus? - É evidente que sim. - Se os sábios se movem não somente em suas casas ou cidades, mas também quando viajam e navegam por imensas regiões, como é verdade que o que está com Deus não se move? - Você me faz rir - retrucou ele - como se eu tivesse dito que está com Deus aquilo que o sábio faz. Mas está com Deus aquilo que ele conhece. - E o sábio não conhece os seus livros, e o seu manto, a sua túnica, os seus móveis, se os tiver, e outras coisas do gênero, que também os ignorantes conhecem? - Confesso - disse ele - que o seu conhecimento da túnica, do manto, não está com Deus. Deus, o sábio, a ignorância e a ordem 5. - Redargui: eis o que você diz: nem tudo o que o sábio conhece está com Deus, mas aquela parte do sábio que está com Deus o sábio a conhece. - Ótimo - continuou ele. Não está com Deus o que ele conhece por meio dos sentidos do corpo, mas o que ele percebe com a mente. Talvez seria ousadia da minha parte acrescentar algo mais; mas vou dizer. Poderei ser confirmado ou, então, aprenderei após a avaliação de todos vocês: aquele que só conhece as coisas que os sentidos percebem, parece-me que não só não está com Deus mas nem sequer consigo mesmo. Neste ponto notei pelo semblante de Trigécio que ele parecia querer dizer não sei o que, mas se continha por respeito, para não intervir como se fosse num campo alheio. Depois que Licêncio terminou de falar, concedi-lhe o aparte, para que ele expressasse o que queria. Então, disse ele: - Sou de opinião que ninguém conhece o que pertence ao domínio das sensações corporais, pois uma coisa é sentir, outra coisa conhecer. Portanto, creio que o que conhecemos está contido somente no intelecto e somente com ele se pode compreender. Daí se deduz que, se está com Deus aquilo que o sábio conhece pelo seu intelecto, tudo o que o sábio conhece pode estar com Deus. Licêncio aprovou isso e apresentou outro pensamento que de modo algum eu poderia deixar de fazer constar. Disse ele: - Certamente o sábio está com Deus, pois ele se entende também a si mesmo. Isto se deduz do que ouvi de você, isto é, que está com Deus aquele que entende a Deus, e do que foi dito por nós, isto é, que está com Deus o que é compreendido pelo sábio. Mas no que se refere à sua parte pela qual ele usa dos sentidos (a qual acho que não deve ser levada em consideração quando falamos de sábio), confesso que não a conheço nem sequer imagino que tipo de qualidade possa ter. O problema da sensibilidade e da memória 6. - Portanto - disse-lhe eu - você nega que o sábio consta não só de alma e corpo, mas também de alma na sua complexidade, porque é loucura negar que aquela parte pela qual se usa dos sentidos pertence à alma. Pois não são os mesmos olhos ou os ouvidos, ou não sei que outra coisa, que sentem, mas é ela que sente por meio deles. Se não atribuímos a sensação ao intelecto, não a atribuímos a nenhuma outra parte da alma. Então restaria atribuir ao corpo; e nada se pode dizer mais absurdo que isso. - A alma do sábio - disse ele - purifica da pelas virtudes e já unida a Deus, é digna do nome de sábia e não convém chamar de sábia a nenhuma outra parte dela. Contudo, certa sujeira, por assim dizer, e despojos, de que o sábio se purificou retirando-se para dentro de si mesmo, ainda lhe são de utilidade para a alma; ou se se deve falar desta alma na sua totalidade, tais coisas servem e estão sujeitas àquela parte superior da alma que unicamente convém dizer-se sábia. Penso que na parte subalterna reside também a própria memória. O sábio dispõe desta memória dando-lhe ordens e impondo-lhe os objetivos da lei como a um escravo chamado e subjugado para que, enquanto usa destes sentidos em função das coisas que são necessárias não só ao sábio mas a si mesma, não ouse levantar-se nem ser arrogante contra o seu senhor, e não use excessiva e imoderadamente das mesmas coisas que lhe são próprias. Àquela parte inferior podem pertencer as coisas que passam. Pois para que é necessária a memória senão para as coisas que passam e escapam? O sábio, pois, abraça a Deus e frui dele que permanece para sempre, nem fica na expectativa de que ele venha a ser nem teme que ele falte, e a sua fruição se dá pelo mesmo fato de que ele está sempre presente, porque ele é verdadeiramente. Imutável e permanecendo em si mesmo cuida, por assim dizer, dos bens do seu escravo, para que este faça bom uso deles é os conserve de maneira moderada como um criado sábio e diligente. 7. Considerando com admiração a sua sentença, lembrei-me que, um dia, eu lhe disse a mesma coisa de maneira resumida. Então, sorrindo eu lhe disse: - Licêncio, agradeça a este seu servo, pois se este não tivesse proporcionado a você algo do seu cabedal, talvez você não teria agora o que expressar. Pois se a memória pertence àquela parte que se submete como escrava à mente boa para ser orientada por esta, você agora foi ajudado por ela mesma para expressar o que você disse. Portanto, antes de voltarmos a discorrer sobre a ordem, não lhe parece que o sábio precisa da memória em função de tais coisas, isto é, das disciplinas honestas e necessárias? - Para que - respondeu ele - o sábio precisa da memória, se ele tem e conserva todas as coisas presentes em si? Pois não pedimos a ajuda da memória para o que está no mesmo sentido, para o que está diante de nossos olhos. Para que, pois, necessita o sábio da memória, uma vez que ele tem tudo diante dos olhos interiores do seu entendimento, isto é, contemplando o próprio Deus com um olhar fixo e imutável, sendo que com Deus estão todas as coisas que o entendimento vê e possui? Mas, quanto a mim, a memória me é necessária para recordar tudo o que ouvi de você; ainda não domino essa escrava; mas às vezes sou seu escravo, outras vezes luto para não lhe servir como que ousando declarar-me livre. E se algumas vezes lhe dou ordens e ela me obedece fazendo-me crer que eu tenha vencido, em outras coisas ela se levanta contra mim de tal modo que, como um miserável, acabo sucumbindo a seus pés. Pelo que, quando discorremos sobre o sábio, não quero que você me considere como tal. - Nem a mim - disse-lhe eu. Porém, acaso o sábio pode abandonar os seus ou, enquanto esteja neste corpo no qual com sua lei mantém presa a memória como escrava, descurará de seu dever de prestar favores a quem ele puder e, principalmente, de ensinar a própria sabedoria, que é o que ardentemente se requer dele? Ao fazê-lo, para que ensine consistentemente e seja menos inapto, ele com frequência prepara a matéria a ser apresentada e discutida que, se não for guardada na memória, necessariamente se perderá. Portanto - continuei - ou você nega que o sábio tenha obrigações de benevolência ou admite que algumas coisas do sábio se conservam na memória. Por acaso, talvez, algo de suas coisas, não por causa de si mesmo mas por causa dos seus, recomenda ele que seja conservado o necessário pela memória escrava, para que ela, sobriamente e de acordo com a ordem do seu senhor, não conserve senão o que ele ordenar que se conserve para fins de atrair os ignorantes à sabedoria? - Não acho que algo seja encomendado pelo sábio à memória - disse Licêncio - pois ele sempre está inserido em Deus, quer esteja ele calado, quer esteja falando com os homens. Mas a memória escrava, já bem-educada, conserva diligentemente aquilo que deva sugerir ao seu senhor quando às vezes esteja discorrendo sobre algum tema, e ela cumpre com prazer a sua função para com o seu justíssimo dono, sob cuja dependência vive. E o faz não como que raciocinando, mas por prescrição daquela suma lei de dependência da suma ordem. - Nada tenho - disse-lhe eu - a objetar às suas razões, para que assim possamos continuar o que empreendemos. Noutra ocasião examinaremos esse tema mais detidamente, quando Deus nos oferecer oportunidade no âmbito da ordem (pois não é um assunto insignificante que se possa restringir a poucas palavras). A estultícia não é propriamente objeto de compreensão intelectual III,8. - Definiu-se o que significa estar com Deus. E quando eu disse que está com Deus aquilo que entende a Deus, vocês ainda acrescentaram algo mais, isto é, que estão aí também as coisas que o sábio entende. Neste ponto, admira-me muito o fato de vocês terem colocado a ignorância em Deus. Pois se está com Deus tudo o que o sábio entende, e não pode evitar a ignorância senão depois de entendê-la, então também esta coisa funesta está com Deus, o que é uma afirmação ímpia. Surpresos por esta conclusão, após alguns momentos de silêncio, disse Trigécio: - Que responda aquele que chegou depois a estas discussões depois de nós, e por cuja oportuníssima chegada com razão nos alegramos. Então Alípio disse: - Queira Deus proporcionar-me coisas melhores! Afinal, meu longo silêncio acaso preparava-se para isso? Minha tranquilidade já foi invadida. Mas esforçar-me-ei para satisfazer da melhor maneira a este pedido, desejando antes conseguir de vocês que daqui em diante não exijam mais de mim alguma resposta deste tipo. - De nenhum modo, Alípio - disse-lhe eu - é próprio da sua benevolência e humanidade negar a desejada colaboração da sua palavra nesta nossa discussão. Mas continue e faça o que começou. As demais coisas se desenrolarão de acordo como se apresente a ordem. - Justamente - disse ele - espero melhores coisas da ordem, para cuja defesa vocês quiseram colocar-me por enquanto. Mas, se não me engano, você, com a sua conclusão, achou que a ignorância está com Deus em conexão com o que eles disseram, isto é, que tudo o que o sábio entende está com Deus. Mas por ora deixo de lado até que ponto isto deva ser aceito; observe um pouco o seu raciocínio. Porque você disse: Pois se está com Deus tudo o que o sábio entende, e não pode evitar a ignorância senão depois de entendê-la. Como se não fosse claro que não se deva atribuir o nome de sábio a alguém antes de ele evitar a ignorância. E falou-se que estão com Deus as coisas entendidas pelo sábio. Quando, portanto, a fim de evitar a ignorância, alguém procura entendê-la, ainda não é sábio. E quando ele for sábio, não se deve enumerar a ignorância entre as coisas que ele entende. Pelo que, uma vez que estão unidas a Deus as coisas que o sábio entende, corretamente afasta-se de Deus a ignorância. 9. -Você, Alípio, certamente respondeu de maneira perspicaz, mas como alguém que se meteu nas dificuldades dos outros. Contudo, uma vez que você, segundo me parece, se digna ser ignorante como eu o sou, que faremos se encontrarmos algum sábio que de boa vontade nos liberte de tão grande mal ensinando-nos e discutindo conosco? Antes de mais nada, creio que não lhe pedirei outra coisa senão que me esclareça como se apresenta e em que consiste a ignorância e qual é a sua natureza. Não ousaria afirmar isto de você; quanto a mim, esta questão me retém durante todo o tempo enquanto eu não chegar a entender o que seja. Segundo você, tal sábio nos dirá: Para que eu lhes ensinasse isto, vocês deveriam ter vindo a mim quando eu ainda era ignorante; mas agora vocês poderão ser os seus próprios mestres, porque eu já não entendo a ignorância. Certamente, se eu ouvisse dele esta resposta, eu não hesitaria em admoestar o homem para que se tornasse nosso companheiro e juntos procurássemos outro mestre. Embora eu não saiba plenamente o que seja a ignorância, vejo que não há nada mais ignorante que esta resposta. Porém, talvez ele tenha vergonha de nos deixar ou de seguir-nos. Por isso, ele irá discutir conosco e exagerará demasiado os males da ignorância. Mas nós, que tomamos nossas precauções, ou ouviremos com cortesia ao homem que não sabe o que fala, ou vamos crer que ele sabe o que não entende ou, então, a ignorância está unida a Deus, por razão dos que você defende. Mas não vejo que se possam defender nenhuma das duas coisas acima mencionadas. Resta, portanto, o extremo, que vocês não querem. - Nunca pensei que você tivesse inveja - disse Alípio. Mas, se eu tiver recebido, como é costume para os advogados, alguma coisa como honorário daqueles que defendo, como você diz, então vejo-me forçado a devolver-lhes o que recebi, uma vez que você está tão agarrado a este raciocínio. Pelo que, ou eles estejam satisfeitos com o tempo, não pouco, que lhes dedico para que reflitam enquanto trato com você deste assunto ou, se de boa vontade ouvirem o conselho do seu defensor vencido, certamente não por sua culpa, concordem com você neste seu raciocínio e sejam mais precavidos nos outros assuntos. 10. - Não desprezarei - disse-lhe eu - não sei o que Trigécio desejava dizer gritando em sua defesa, e o farei com sua permissão (pois talvez você não esteja bem informado por ter chegado há pouco tempo a esta discussão), para que eu os ouça pacientemente defender sua própria posição, como eu havia começado. Então Trigécio disse (Licêncio estava ausente): - Tomem como quiserem e podem zombar de minha ignorância. Não me parece que se deva chamar inteligência o ato pelo qual se entende a própria ignorância, que é a única e maior causa do não entender. - Não me recuso a aceitar esta sua colocação - disse-lhe eu. Embora o que Alípio acha me persuada bastante, isto é, que alguém possa muito bem ensinar a característica de uma coisa que ele não entende e quanta desgraça acarreta para a mente aquilo que ele não percebe com a mente (e certamente reparando que é verdade dizer o que você disse, sendo esta sentença conhecida nos livros de autores instruídos), contudo, ao considerar o próprio sentido do corpo (do qual se utiliza a alma e somente ela serve de qualquer comparação com o entendimento), sou levado a dizer que ninguém pode ver as trevas. Pelo que, se é próprio da mente entender o que toca ao sentido ver, e ainda que alguém esteja com seus olhos abertos, sãos e puros, mas não pode ver as trevas, não é absurdo dizer-se que a ignorância não pode ser entendida: ela pode chamar-se as trevas da mente. E já nem importa o fato de como se possa evitar a ignorância não entendida. Assim como com os olhos evitamos as trevas pelo fato de não querermos deixar de ver, assim também aquele que deseja evitar a ignorância não se esforce por entendê-la, mas lamente pelo fato de não entender as coisas que podem ser entendidas e sinta que a ignorância lhe está presente, não porque a entende, mas, sim, porque entende menos as outras coisas. O mal na ordem e a relação do mal com Deus IV,11. Mas voltemos à ordem, para que alguma vez nos responda Licêncio. Agora já lhes faço a seguinte pergunta: parece-lhas que tudo o que o ignorante faz ele o faz segundo a ordem? Observem as armadilhas que a pergunta encerra. Se vocês responderem que ele age com ordem, então onde está aquela definição que foi dada para a ordem: Ordem é aquilo pelo qual Deus faz todas as coisas que existem, se também o ignorante age com ordem naquilo que ele faz? Mas se não há ordem nas coisas feitas pelo ignorante, existe algo não contido pela ordem: vocês não optam por nenhuma dessas coisas. Peço-lhes que não confundam tudo ao defender a própria ordem. Aqui respondeu Trigécio (pois Licêncio ainda estava ausente): - É fácil responder a este seu dilema, mas falta-me no momento uma comparação com que vejo que se deveria esclarecer e ilustrar a minha sentença. Contudo, direi o que sinto e você fará o que fez há pouco, pois não foi pouca a luz que nos proporcionou aquela menção das trevas em relação àquilo que havia sido proferido por mim com rodeios. Pois toda a vida dos ignorantes, ainda que não seja consistente nem ordenada por eles mesmos, contudo, pela divina providência, está necessariamente incluída na ordem das coisas, como que em alguns lugares dispostos por aquela inefável e sempiterna lei, e de modo algum lhe é permitido estar onde não deve. Assim, acontece que, se alguém a considera isoladamente com um ânimo mesquinho, ele a abomina como que repelido por sua grande torpeza. Mas se alguém, levantando e abrindo os olhos de sua mente, iluminar, ao mesmo tempo, o universo das coisas, nada descobrirá que não esteja ordenado, distinto e convenientemente distribuído em seus lugares. Semelhanças extraídas da vida social, animal e cultural 12. - Que coisas tão sublimes - acrescentei - e tão admiráveis Deus me responde por intermédio de vocês, de modo que não sei que ordem oculta das coisas me leva a crer cada vez mais! Pois vocês dizem coisas que não sei como podem ser ditas se não forem intuídas nem compreendo como vocês as intuem; por isso imagino que sejam verdadeiras e elevadas. E pensar que você procurava alguma comparação para ilustrar esta sua sentença! Entretanto, a mim me ocorrem muitas que me levam a concordar com o que você diz. Pois o que há de mais tétrico do que o verdugo? O que mais cruel e horrível do que sua alma? Entretanto, ele mantém um cargo necessário de acordo com as próprias leis e se insere na ordem de uma sociedade bem governada; é uma profissão degradante para o seu ânimo, mas que contribui para a ordem externa castigando os culpados. O que se pode mencionar de mais sórdido, de mais frívolo em honra e torpeza que as prostitutas, os sedutores e outros elementos de perdição deste gênero? Mas tire as prostituas das coisas humanas e tudo se perturbará pela devassidão: coloque-as no lugar das matronas e causará desonra pela mancha moral e pela perdição. Assim, este gênero de homens, desordenados por seus próprios costumes, reduz-se a uma condição muito vil pelas leis da ordem. Por acaso nos corpos dos animais não existem alguns membros aos quais não se pode dar atenção, se considerados separadamente do todo do organismo? Contudo, a ordem da natureza não quis que faltassem por serem necessários nem permitiu que sobressaíssem por serem indecorosos. Os quais membros indecorosos, mantendo os seus lugares, deixam lugar melhor para os membros mais nobres. Que coisa mais agradável, que espetáculo mais harmonioso nos ocorreu na casa de campo do que aquela briga de galos que mencionamos no livro anterior? Mas como foi vil a imagem que vimos do galo vencido que ficou desfigurado! No entanto, pela mesma desfiguração resultou uma beleza mais perfeita da briga. 13. Assim são, acredito, todas as coisas, mas essas mesmas coisas requerem olhos que as entendam. Os poetas gostam de solecismos e barbarismos, como eles os denominam, aos quais eles preferiram designar mudando seus nomes para figuras e metaplasmos. Mas tirem dos poemas estas figuras e sentiremos falta dos seus agradabilíssimos condimentos. Coloque muitas dessas metáforas num só lugar e tudo parecerá sem gosto, rebuscado ou nojento. Transfira essas figuras para a linguagem livre e forense: quem não dirá que devam ser evitadas e não mandará que se restrinjam aos teatros? Portanto, a ordem, que governa e modera essas coisas, nem suportará o uso excessivo dessas figuras sintáticas, mesmo onde possam ser empregadas, nem o seu uso em qualquer lugar. Intercalando certa sobriedade com um estilo não polido, o discurso realça as próprias passagens e os tópicos elegantes da oração. Se a linguagem metafórica for exclusiva no discurso, este se despreza como sendo de pouco valor; mas se falta, as passagens bonitas não sobressaem nem dominam nos campos e propriedades da oratória e com seu próprio brilho prejudicam e confundem o todo. V. Também aqui devem-se muitos favores à ordem. Quem não teme as conclusões enganosas ou que se insinuam aos poucos, diminuindo ou acrescentando para aprovação da falsidade? Quem não detesta isto? E, com frequência, tais conclusões colocadas nas discussões e em seus devidos lugares têm tanto poder que não sei como o próprio erro se torna agradável. Por acaso não se deverá louvar a própria ordem? Necessidade da instrução liberal para compreender filosoficamente a divina ordem providencial de todas as coisas 14. Já na música, na geometria, nos movimentos dos astros, nas rígidas regras dos números a ordem domina de tal modo que, se alguém deseja ver a sua fonte e o interior do seu santuário, ou os encontra neles mesmos ou é guiado por eles até lá sem erro algum. Se alguém usar de tais conhecimentos com moderação (pois nada aí se deve temer mais que o excesso), ele irá educar alunos e até mestres em filosofia e se elevará e chegará até onde quiser e conduzirá muitos até aquela Medida suprema além do que não se pode, nem se deve, nem se deseja exigir algo mais. Assim, enquanto segue seu caminho nas coisas humanas, despreze-as e discirna todas as coisas a tal ponto que já não o perturbe o fato de alguém desejar ter filhos quando não os têm; outro se atormenta por causa da demasiada fecundidade da sua esposa; outro necessita de dinheiro estando disposto a repartir muito com liberalidade enquanto o agiota avarento e ávido está deitado em dinheiro enterrado; a luxúria esbanja e dissipa grandes patrimônios enquanto o mendigo, chorando o dia todo, consegue apenas uma moeda; a honra exalta um indigno enquanto na multidão está oculta gente de evidentes costumes honestos. 15. Estas e outras questões na vida humana com frequência impelem os homens a crerem impiamente que nós não somos governados por nenhuma ordem da Providência divina. Mas outros, piedosos e bons e dotados de esplêndido caráter, que não podem conceber que sejamos abandonados pelo supremo Deus, contudo, horrorizados por tanta escuridão e confusão das coisas, não enxergam ordem alguma e, querendo que as causas ocultíssimas lhes sejam manifestas, frequentemente lamentam os seus erros até mesmo com poemas. Ainda que apenas perguntem por que os italianos sempre pedem invernos suaves e nossa pobre Getulia sempre está tão árida, quem lhes poderá responder com facilidade? Ou onde, entre nós, se poderá pesquisar qualquer conjectura daquela ordem? Quanto a mim, se posso exortar os meus, dizer-lhes o que me parece e o que sinto, creio que eles devam ser instruídos em todas as ciências. Porque, do contrário, de nenhum modo tais coisas podem ser entendidas a tal ponto que sejam mais claras que a luz. Mas se são indolentes ou estão preocupados por outros negócios ou se têm dificuldade para aprender, então que procurem as proteções da fé para que, por este vínculo, os atraia a si e os livre destes males horrendos e ocultos aquele que não permite que pereça ninguém que bem crê nele por meio dos mistérios. 16. É duplo o caminho que seguimos quando a obscuridade das coisas nos atinge: ou a razão ou a autoridade. A filosofia promete a razão e liberta apenas a pouquíssimos, os quais ela leva não só a não desprezar aqueles mistérios, mas também a entendê-los segundo possam ser entendidos. A filosofia, que seja verdadeira e, por assim dizer, autêntica, não tem outra função senão a de ensinar o que seja o Princípio sem princípio de todas as coisas e a imensidade do Intelecto que nele reside e o que daí se originou para nossa salvação sem nenhum detrimento para ele, a quem os veneráveis mistérios nos ensinam ser um único Deus onipotente e que ele é uma Trindade poderosa, Pai e Filho e Espírito Santo, sendo que estes mistérios libertam os povos pela fé sincera e inabalável, sem confusão das três pessoas, como alguns pregam, nem com insultos, como o fazem muitos. Pois quão admirável é o fato de que tão grande Deus se dignou também assumir este corpo do nosso gênero e agir por causa de nós; quanto mais se abaixou tanto mais é pleno de clemência e tanto mais está afastado de qualquer soberba dos talentosos. 17. De onde a alma recebe a sua origem e o que ela faz neste mundo, quanto ela se diferencia de Deus, o que ela tenha de próprio seu que alterna em ambas as naturezas, isto é, até que ponto ela morre e como se pode provar a sua imortalidade, não lhes parece que seja de uma ordem tão importante aprender estas coisas? Realmente é uma ordem elevada e certa: se houver tempo, falaremos disso resumidamente depois. Por ora quero que me ouçam o seguinte: se alguém temerariamente e sem ordenar os seus conhecimentos ousar entrar para conhecer tais coisas, ele é curioso e não estudioso, é ingênuo e não informado, incrédulo e não precavido. Por isso, admiro e me vejo obrigado a reconhecer como vocês responderam tão bem e de maneira tão adequada às questões que eu lhes propus. Mas vejamos até onde pode ir a intenção de vocês. Já chegam aos nossos ouvidos as palavras de Licêncio que, não sei por que razão, esteve ausente desta nossa discussão. Assim, creio que ele irá ler o que discutimos do mesmo modo como o farão nossos amigos ausentes. Mas junte-se a nós, Licêncio, e preste toda a sua atenção, pois dirijo-me a você. Você aprovou a minha definição pela qual se disse o que seja estar com Deus, e você quis me ensinar, segundo posso deduzir, que com ele a mente do sábio permanece imóvel. Imobilidade da mente do sábio VI,18. Mas faz-me pensar o fato de que não se pode negar que, enquanto o sábio vive entre os homens, ele está no corpo. Como, pois, se seu corpo anda para cá e para lá, a sua mente permanece imóvel? Assim, pode-se dizer que, quando um navio está em movimento, as pessoas que estão nele não se movem, embora saibamos que o navio é dominado e governado pelos homens. Se eles só com o pensamento o governassem e o fizessem ir para onde quisessem, contudo, estando o navio em movimento, movem-se também os que nele estão. - A alma - disse Licêncio - não está no corpo para que o corpo tenha poder sobre ela. - Nem eu afirmo tal coisa - repliquei -lhe, - Mas também o cavaleiro não está montado no cavalo de tal modo que o cavalo tenha poder sobre ele. Contudo, embora o cavaleiro dirija o cavalo para onde quer, com o movimento do cavalo necessariamente move-se também o cavaleiro. - Ele pode estar sentado imóvel - disse Licêncio. - Você nos força - acrescentei eu - a definir o que seja mover-se. Quero que você o defina se pode. - Faça-me este obséquio - respondeu ele - pois continua valendo o meu pedido, e não me pergunte novamente se gosto de definir. Quando eu puder fazê-lo, lhe direi. Dito isto, um menino da casa, a quem havíamos encarregado disso, veio correndo até nós para dizer-nos que já era hora do almoço. Então, eu falei. - Este menino nos leva a não definir o que seja mover-se, mas a vê-lo com os próprios olhos. Vamos, então, e passemos deste lugar a outro: pois mover-se, se não me engano, não significa outra coisa senão isto. Eles riram, e nos afastamos. 19. Terminado o almoço, uma vez que o céu estava carregado de nuvens, fomos acomodar-nos no lugar costumeiro dos banhos. E eu comecei a falar: - Licêncio, você concorda que o movimento não é outra coisa senão a passagem de um lugar a outro? - Concordo - respondeu. - Você concorda também que ninguém pode estar num lugar em que não havia estado, sem ter havido movimento? - Não entendo - respondeu ele. - Se alguma coisa - acrescentei - há pouco esteve num lugar e agora está noutro, concorda que houve movimento? Ele fazia acenos de acordo. - Portanto - disse-lhe eu - o corpo vivo de um sábio pode estar presente aqui conosco e sua mente ausente daqui? - Poderia - respondeu. - Mesmo que falasse conosco e nos ensinasse alguma coisa? - Mesmo que ele nos transmitisse sua sabedoria, não diria que estava conosco mas consigo mesmo. - Portanto, não em seu corpo? - Não - respondeu ele. Ao que acrescentei: - Então, você declara morto aquele corpo sem mente que acima mencionei como vivo? - Não sei como explicar. Pois entendo que o corpo de um homem não pode estar vivo se nele não estiver a alma. Por outro lado, não posso dizer que a alma do sábio não esteja com Deus, esteja onde estiver o seu corpo. - Farei com que você explique isto - disse-lhe eu. Talvez, pelo fato de Deus estar em todos os lugares, para onde quer que o sábio vá ali encontra a Deus com quem possa estar. Assim, podemos não negar que ele se desloque de um lugar a outro, e isto é mover-se, e sempre estar com Deus. - Confesso - replicou ele - que aquele corpo se deslocou de um lugar a outro, mas nego que a mente, à qual se deu o nome de sábia, tenha feito o mesmo. Definição do estar-sem-Deus VII,20. - Concordo por enquanto - disse-lhe eu - para que um tema tão obscuro, que deve ser tratado com mais tempo e cuidado, não nos impeça no momento de prosseguir em nosso assunto. Uma vez que já definimos o que seja estar com Deus, vejamos agora se podemos saber o que seja estar sem Deus, embora ache que seja uma coisa evidente. Pois creio que você é de opinião que os que não estão com Deus estão sem Deus. - Se eu tivesse eloquência de palavras - replicou ele - talvez eu diria o que não lhe desagradasse. Mas lhe peço que tolere a falta de eloquência da minha juventude e penetre as mesmas coisas, como convém, com mente veloz. Parece-me que estes não estão com Deus, mas são possuídos por Deus. E não posso dizer que estão sem Deus aqueles a quem Deus possui. Nem digo que estejam com Deus porque eles não têm a Deus. Pois ter Deus não é outra coisa senão fruir de Deus, como ficou definido entre nós naquela agradabilíssima conversação que tivemos no dia do seu aniversário. Mas confesso que temo estas proposições contrárias, isto é, como alguém nem está sem Deus nem está com Deus. Reenvio à resposta precedente de Trigécio 21. - Não se apoquente por isso - disse-lhe eu. - Onde a coisa se harmoniza, quem não deixa as palavras de lado? Por isso, retornemos finalmente à definição de ordem. Você disse que ordem é aquilo com que Deus faz todas as coisas. Não há nada, segundo me parece, que Deus não o faça. Assim, você foi de opinião que nada pode encontrar-se fora de ordem. - Continua firme minha opinião - disse ele. - Mas já percebo o que você vai falar: se Deus faz as coisas que declaramos que não são feitas conforme as normas do bem. - Muito bem! - disse-lhe eu. - Você penetrou o seu olhar na minha mente. Como você leu em meu pensamento o que eu ia dizer, adivinhe também qual será a resposta. Ele, acenando com a cabeça e os ombros, disse: - Estamos confusos. No momento desta pergunta, chegou a mãe. E ele, após um breve silêncio, pediu que eu lhe repetisse a pergunta. Ele não havia notado que Trigécio já havia respondido a esta questão antes. Então, eu lhe disse: - Por que repetir para você? Diz a máxima: "Não faça o que já está feito". Procure ler o que foi dito acima uma vez que você não pôde ouvir. Mal pude tolerar a sua ausência das nossas discussões e deixei que você estivesse ausente por tanto tempo para não impedi-lo de fazer o que você pretendia longe de nós, e para prosseguir com as questões que deviam ser conservadas por escrito e que a composição não permitiria que você, por sua ausência, deixasse escapar. A justiça de Deus e a origem do mal 22. Agora pergunto-lhe o que ainda não tentamos discutir com um interesse detalhado. Pois quando no início não sei que ordem tenha causado esta questão da ordem, lembro-me de que você disse ser a justiça de Deus que distingue entre os bons e os maus e atribui a cada o que lhe compete. Em minha opinião, não há nenhuma definição mais clara de justiça. Pelo que, gostaria que você respondesse se lhe parece que Deus alguma vez não tenha sido justo. - Nunca - respondeu ele. - Portanto, se Deus é sempre justo, sempre houve o bem e o mal. - Estou completamente de acordo que não pode haver outra conclusão - disse a mãe. -Não havendo o mal, não havia nenhum juízo de Deus, nem pode parecer que tenha sido justo se alguma vez não tenha atribuído a cada um dos bons e dos maus o que lhe competia. Ao que Licêncio completou: - Portanto, você é de opinião que o mal sempre existiu. - Não ouso afirmar isto - replicou ela. - Que dizer, então?- interferi. - Se Deus é justo porque julga entre os bons e os maus, então ele não podia ser justo quando não havia o mal. Neste ponto, enquanto eles faziam silêncio, notei que Trigécio queria expor algo, e lhe dei a palavra. Ele expôs o seguinte: - Certamente Deus era justo. Ele podia separar o bem do mal, se este existisse, e pelo mesmo fato de poder, era justo. Pois, quando dizemos que Cícero prudentemente descobriu a conspiração de Catilina e que por sua moderação não se deixou subornar por qualquer propina, que lhe era oferecida para que poupasse os maus, e justamente os condenou ao suplício extremo com base na sua autoridade de Senador, e suportou com fortaleza todas as invectivas e dificuldades provindas dos adversários, como ele mesmo disse, do ódio, não significa que ele não tivesse essas virtudes se Catilina não tivesse feito uma conspiração tão funesta para a república. Pois a virtude deve ser considerada em si mesma e não em obras deste tipo no homem, muito mais em Deus, se é que de algum modo se pode permitir que, na estreiteza das coisas e das palavras, se comparem as coisas divinas com as humanas. Pois, para compreendermos que Deus sempre foi justo quando apareceu o mal que ele separou do bem, sem nenhuma demora atribuiu a cada o que lhe competia: pois ele não tinha o que aprender sobre justiça, mas usá-la, uma vez que sempre a teve. 23. Como Licêncio e minha mãe concordassem com isso, eu intervim: - O que você diz, Licêncio? Onde está o que você tanto afirmava, que nada há fora da ordem? O que causou o surgimento do mal não foi feito por ordem de Deus, mas, ao surgir, foi submetido à ordem de Deus. E ele, admirando e mal suportando que de repente escapasse de suas mãos uma causa tão nobre, disse: - Inteiramente afirmo que a ordem começou no momento em que começou a existir o mal. - Portanto - disse-lhe eu - o mal não é devido à ordem, se esta começou a existir depois que o mal surgiu. Mas a ordem sempre estava junto de Deus e, ou sempre existiu o nada, que é o mal, ou se alguma vez se chegue à conclusão de que tenha começado, nunca houve nem jamais haverá algo sem ordem, porque a própria ordem ou é um bem ou procede do bem. Não sei um pensamento mais próprio que me havia ocorrido, mas que me escapou pelo esquecimento: creio que isto aconteceu ordenadamente por merecimento, ou por disposição, ou por ordem da vida. - Não sei - disse ele - como me escapou a sentença que agora rejeito, pois eu não deveria ter dito que a ordem começou a existir depois que o mal surgiu, mas assim como a justiça, da qual tratou Trigécio, também a ordem estava com Deus, a qual não foi posta em prática senão depois que começaram a existir os males. - Você recai no mesmo - repliquei. O que você não quer continua sendo afirmado, pois quer a ordem tenha estado sempre junto de Deus, quer tenha começado a existir a partir do tempo em que também o mal começou, de qualquer maneira aquele mal surgiu fora da ordem. Se você concorda com isto, você confessa que algo pode ser feito fora da ordem, o que enfraquece e destrói a sua questão. Se, porém, você não concordar, tem-se a impressão de que o mal tenha surgido por ordem de Deus e, assim, você estará afirmando que Deus é autor dos males. E não me ocorre nada mais detestável que este sacrilégio. Como eu expunha isso várias vezes e refletia sobre a mesma coisa para ele, que não entendia ou simulava que não tinha entendido, não teve mais nada a dizer e calou-se. Então, disse a mãe: - Acho que algo pôde ser feito fora da ordem de Deus, porque o mesmo mal que surgiu não o foi por ordem de Deus; mas a justiça não permitiu que ficasse desordenado e o compeliu e confinou na merecida ordem. Para compreender que nada acontece fora da ordem divina, faz-se necessário seguir uma disciplina racional 24. A esta altura, percebendo que todos buscavam a Deus com ardentíssimo empenho e segundo as suas forças, mas sem termos um conceito claro da mesma ordem de que tratávamos, pela qual se chega ao entendimento daquela inefável majestade, eu lhes disse: - Se vocês amam muito a ordem, como vejo, não permitam que sejamos precipitados e desordenados. Pois, ainda que uma razão muito oculta nos prometa demonstrar que nada se faz fora da ordem divina, contudo se víssemos algum professor primário tentando ensinar a formação das sílabas a uma criança sem que antes alguém lhe tivesse ensinado as letras, não digo que devêssemos zombar dele como a um ignorante, mas que deveria ser acorrentado como um louco, precisamente porque não mantinha a ordem do método didático. E ninguém duvida de que os ignorantes praticam muitas coisas deste tipo, pelas quais são repreendidos e feitos objetos de chacota pelos instruídos, e as fazem também os homens loucos, não escapando nem mesmo do juízo dos ignorantes. Contudo, embora todas essas coisas que confessamos serem perversas não estejam fora da ordem divina, certa disciplina elevada e remotíssima, da qual a multidão nem sequer pode suspeitar, promete que de tal modo se manifestará às almas que desejam e amam a Deus e a si mesmas, que nem sequer os princípios da matemática podem oferecer maior certeza. O aspecto prático de tal disciplina: a conduta de vida VIII,25. Esta disciplina é a própria lei de Deus que, permanecendo sempre fixa e inabalável nele, quase se inscreve nas almas sábias para que tanto melhor saibam viver e tanto mais sublime e mais perfeitamente a contemplem com sua inteligência e com maior empenho a guardem em sua vida. Esta disciplina impõe aos que desejam conhecê-la uma dupla ordem, da qual uma parte se refere à vida, outra à erudição. Portanto, os jovens que se dedicam ao estudo dessa disciplina devem viver de tal modo que se abstenham de assuntos eróticos; dos prazeres da glutonaria; do desregrado cuidado e adorno do corpo; das fúteis ocupações com espetáculos; da indolência de tanto dormir e da preguiça; da rivalidade; da difamação e da inveja; das ambições de honras e poderes; do imoderado desejo do próprio louvor. Saibam que o apego ao dinheiro é um veneno certíssimo para toda a sua esperança. Não façam nada com fraqueza, nada temerariamente. Nas faltas de seus familiares reprimam a ira ou a refreiem de tal modo que ela pareça vencida. Não odeiem a ninguém. Não queiram curar todos os males. Observem muito ao punir para que não seja demasiado, e não seja pouco quando o castigo é reconhecido. Não deem castigo se não servir para melhorar e não perdoem se isto for ocasião para piorar. Julguem amigos seus todos aqueles sobre os quais vocês tenham recebido poder. Procurem servir-lhes de tal modo que vocês tenham vergonha de ter poder sobre eles; tenham poder sobre eles de tal modo que tenham prazer em servir-lhes. Nos pecados dos outros não se incomodem se eles não recebem a correção de boa vontade. Evitem com toda precaução as inimizades, suportem-nas com toda equanimidade, acabem com as inimizades o quanto antes possível. Em toda conversação e convivência com os homens basta observar este provérbio popular: Não façam a ninguém o que não queiram que lhes façam. Não aspirem a administrar a coisa pública se não forem perfeitos. E cuidem para se aperfeiçoar antes de chegar à idade para ocupar um cargo de senador ou, melhor, já na juventude. Mas, se alguém se converte em idade avançada a estas coisas, não pense que não lhe diz nenhum respeito este preceito: pois certamente guardará estas coisas com mais facilidade pela sua idade. Em todo tipo de vida, em qualquer lugar e ocasião procurem ter ou fazer amigos. Mostrem condescendência com as pessoas dignas, mesmo que elas não esperem isso. Não se perturbem por causa dos soberbos e de modo algum sejam como eles. Vivam de maneira apropriada e conveniente. Venerem a Deus, pensem nele, busquem-no apoiados na fé, esperança e caridade. Desejem a tranquilidade e um currículo seguro para seus estudos e para todos os seus colegas. Almejem uma mente boa e uma vida pacata para si mesmos e para todos aqueles para os quais vocês possam desejar. O polo do conhecimento e suas vias de acesso IX,26. A seguir, exporei como devem instruir-se os estudiosos que já orientaram sua vida segundo o que foi dito acima. Necessariamente somos levados a aprender de dupla maneira: pela autoridade e pela razão. Em função do tempo, a autoridade tem prioridade, mas em função da própria coisa a prioridade está com a razão. Uma coisa é aquilo para o qual se dá prioridade ao agir e outra o que se tem em maior apreço na intenção. Por isso, embora à multidão ignorante pareça mais saudável a autoridade dos homens bons, a razão se adapta mais aos instruídos. Contudo, uma vez que nenhum homem chega a ser instruído se não estiver na condição de ignorante e nenhum inexperiente sabe com que disposição e com que docilidade de vida deve apresentar-se aos professores, resulta que somente a autoridade abre a porta para todos os que desejam aprender as elevadas questões boas que estão ocultas para eles. Quem entra por esta porta sem nenhuma dúvida segue os preceitos de vida ideal por meio dos quais, quando já se tenha tornado dócil, finalmente aprenderá que as mesmas coisas, que seguiu sem compreendê-las com a razão, estão dotadas de muita razão; aprenderá o que é a própria razão que agora ele segue e compreende já firme e capacitado pelo amparo e aconchego da autoridade; aprenderá o que é o entendimento no qual estão todas as coisas ou, antes, ele é todas as coisas; aprenderá qual é o princípio de todas as coisas, o qual é superior a tudo. Nesta vida poucos chegam a este conhecimento, além do qual ninguém pode avançar após esta vida. Mas aqueles que, satisfeitos apenas com a autoridade, se aplicam com constância a uma vida de bons costumes e desejos justos, porque ou desprezam a aprendizagem ou não têm força de vontade suficiente para instruir-se nas boas disciplinas liberais, não sei como poderia chamá-los de felizes nesta vida, mas creio firmemente que, logo que saírem deste corpo, terão maior facilidade ou maior dificuldade em liberar-se conforme tenham vivido mais ou menos retamente. Autoridade divina e autoridade humana 27. Mas existe a autoridade divina e a autoridade humana: mas a verdadeira, sólida e suprema é a que se denomina divina. Aqui, deve-se temer a extraordinária capacidade trapaceira dos espíritos malignos que pairam nos ares, aos quais, através de algumas adivinhações de coisas pertencentes à percepção dos sentidos e por alguns poderes, conseguiram enganar facilmente as almas curiosas pela atração das fortunas transitórias prognosticadas por sortilégios, ou ambiciosas de poderes frágeis, ou temerosas de milagres vãos. Deve-se, portanto, dizer divina aquela autoridade que não somente transcende em seus milagres sensíveis toda faculdade humana, mas também, dirigindo o próprio homem, mostra-lhe até que ponto se rebaixou por ele e lhe ordena que não fique preso aos sentidos, aos quais parecem admiráveis aqueles milagres, mas se eleve ao entendimento, ao mesmo tempo demonstrando-lhe quanta coisa ele poderia fazer nesta vida e por que ele faz tais coisas e quão pouco as pondera. Convém, pois, que essa autoridade ensine com os fatos o seu poder, pela humildade a sua clemência e pela doutrina a sua natureza, coisas estas que mais misteriosa e firmemente nos são transmitidas nos princípios sagrados em que somos iniciados, nos quais a vida dos bons mais facilmente se purifica não por ambiguidades de disputas, mas pela autoridade dos mistérios. Mas a autoridade humana muitas vezes se engana. Contudo, parece que justamente brilham pela sua excelência aqueles que, na compreensão dos ignorantes, dão muitos sinais de suas doutrinas e conformam sua vida com o método de vida que eles ensinam. E se eles têm acesso a alguns favores da fortuna, cujo correto uso serve para engrandecê-los e torná-los ainda maiores pelo desprezo desses mesmos bens, é muito difícil que seja criticado alguém que acredita neles que dão preceitos de vida. Quantos vivem segundo as normas prescritas pela disciplina? X,28. Neste ponto, interveio Alípio: - Grandiosa imagem da vida, tão completa como breve, esta que você colocou diante de nossos olhos! Ainda que a desejemos ardentemente orientados pelos seus preceitos diários, hoje você nos tornou mais desejosos e mais apaixonados por ela. Eu desejaria que não somente nós chegássemos a este tipo de vida, mas, se fosse possível, também todos os homens tivessem acesso a ela e se apegassem a ela, se tais preceitos fossem tão fáceis de ser postos em prática como são admiráveis de ser ouvidos. Pois não sei como - o que oxalá esteja bem longe de nós - o espírito humano, ao ouvir essas coisas, proclama-as celestiais, divinas e absolutamente verdadeiras, mas, quando se trata de buscá-las, procedem de diferente maneira. Assim, parece-me uma grande verdade que somente homens divinos, ou não sem o auxílio divino, vivem esse tipo de vida. Ao que acrescentei: - Estes preceitos de vida, Alípio, que como sempre lhe agradam muito, embora eu os tenha expressado aqui oportunamente com minhas palavras, contudo você sabe muito bem que não foram inventados por mim. Desses são repletos os livros de grandes homens e quase divinos: não pensei em dizer isso por sua causa, mas por causa dos jovens, para que eles não menosprezem esses preceitos como se procedessem de minha autoridade. Pois de modo algum quero que eles creiam em mim por crer, mas sim quando ensino e dou as razões daquilo que ensino; e julgo que estas suas palavras que você colocou com a sua intervenção também servem para estimulá-los neste assunto de tal magnitude. Pois para você não é difícil observar esses preceitos que você captou logo com tanta sofreguidão e se entregou a eles com tanto entusiasmo de admirável natureza, de maneira que, se eu sou para você mestre das palavras, você se tornou para mim um mestre das ações. Nem há aqui motivo algum nem sequer ocasião para adular, pois não acho que você se tornaria mais estudioso com um falso louvor. Os que aqui estão presentes conhecem ambas as coisas, e este escrito será enviado àquele para quem nenhum de nós é desconhecido. 29. A julgar por suas palavras, se você não pensa diferentemente do que falou, parece-me que você acredita que o número de homens bons e dedicados aos bons costumes é menor do que me parece provável; porém, deve levar em consideração que muitos homens bons vivem retirados e se ocultam. As mesmas coisas, que são admiráveis nos muitos que não vivem retirados, não as vemos porque elas residem na alma que não pode ser atingida pelos sentidos e, muitas vezes, quando lhes parece conveniente concordar com as conversações de homens imorais, parece até que aprovam as coisas que dizem. O homem bom, em tal situação, faz também muitas coisas a contragosto, e o faz para evitar o ódio dos homens ou para fugir da sua estupidez. E quando ouvimos e vemos isto, dificilmente julgamos de diferente maneira do que o sentido nos mostra. Daí resulta que não cremos que muitos sejam o que eles mesmos pensam de si e como os conhecem os seus familiares. Gostaria que você se persuadisse disto com base no conhecimento que só nós temos das grandes qualidades de alguns dos nossos amigos. A causa deste erro é o fato de que não poucos de repente se convertem para uma vida correta e admirável e, enquanto não se tornem conhecidos por alguns fatos mais evidentes, julga-se que eles são como eram antes. Para não me alongar demais, quem, tendo conhecido antes a estes adolescentes, facilmente poderá crer que tão ardentemente buscam coisas tão elevadas e de repente, nesta idade, tenham declarado tanta aversão aos prazeres sensuais? Expulsemos, portanto, esta opinião de nossa alma, pois aquele auxílio divino, ao qual você religiosamente se referiu antes, como convinha, no final das suas palavras, desempenha a função da sua clemência entre todos os povos mais amplamente do que alguns pensam. Mas voltemos, se vocês o permitem, à ordem da nossa discussão, e uma vez que já falamos o bastante da autoridade, falemos agora da razão. A razão em sua essência e em seu exercício XI,30. A razão é o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexão entre as coisas que se conhecem. Utilizar-se dela como guia para entender a Deus ou a própria alma que está em nós ou em toda aparte, é próprio de pouquíssimos no gênero humano, não por outro motivo senão porque para aquele que está disperso nos assuntos dos sentidos é difícil voltar-se a si mesmo. Por isso, quando os homens se esforçam a agir com completa razão nas mesmas coisas falazes, os homens ignoram o que seja a própria razão e qual a sua natureza, com exceção de pouquíssimos. Parece estranho, mas é isto mesmo. No momento basta o que eu disse, pois se eu quiser demonstrar a vocês agora uma questão tão elevada, como ela deve ser entendida, eu seria tão incapaz como arrogante, se eu declarar que já a tenha compreendido. Contudo, como ela se dignou avançar nas coisas que nos são conhecidas, pesquisemo-la se nos for possível, conforme o requer a discussão que empreendemos. Diferença entre "razoável" e "racional" 31. Primeiramente, vejamos onde costuma repetir-se mais vezes esta palavra que se chama razão. Deve chamar-nos a atenção principalmente o fato de que o mesmo homem foi definido pelos sábios antigos da seguinte maneira: O homem é um animal racional mortal. Tendo sido definido com o gênero de animal, notamos que foram acrescentadas duas diferenças pelas quais, segundo me parece, o homem foi admoestado sobre aonde deve voltar-se e de onde deve fugir. Pois assim como a saída da alma caiu nas coisas mortais, assim o seu regresso deve ser para a razão. Em poucas palavras, distingue-se dos animais por ser racional; por outro lado, distingue-se do divino por ser mortal. Se lhe faltasse o primeiro, seria simplesmente animal; se não se desencaminhasse do divino, não poderia deificar-se. Mas como homens muito instruídos costumam distinguir de maneira muito perspicaz e sutil a diferença que há entre racional (rationale) e razoável (rationobile), de maneira alguma devemos descurar do que nos propusemos; pois eles disseram que é racional aquele que usa ou pode usar da razão; porém razoável aquilo que se faz ou se diz conforme a razão. Pelo que podemos dizer que estes banhos e a nossa discussão são razoáveis, mas racionais são aqueles que os construíram e somos nós que aqui estamos conversando. Portanto, a razão procede da alma racional, isto é, dirige-se às coisas que se fazem ou que se dizem razoáveis. A racionalidade nos objetos dos sentidos produzidos pelo homem 32. Percebo duas coisas em que a potência e a força da razão pode se oferecer aos mesmos sentidos: as obras humanas que são vistas e as palavras que se ouvem. Em ambas a mente se utiliza de um duplo mensageiro em prol das necessidades do corpo: o dos olhos e o outro dos ouvidos. Assim, quando vemos algo composto de partes coerentes entre si, dizemos com propriedade que tal coisa parece ser razoável. Igualmente, quando ouvimos uma canção bem cantada, não duvidamos em dizer que ela soa razoavelmente. Mas cai no ridículo se alguém disser: isto cheira razoavelmente; ou: tal coisa é razoavelmente macia; a não ser naquelas coisas que os homens tenham feito em função de alguma outra coisa para que tivessem tal cheiro, tal sabor, tal grau de calor, ou outra coisa do gênero. Como, por exemplo, se alguém disser que um lugar tem um cheiro razoável, levando em consideração o motivo por que foi feito assim, isto é, para afugentar as serpentes com os repugnantes odores; ou que uma poção, que o médico preparou, é razoavelmente amarga ou doce, ou se a água da banheira, para o banho que ele prescreveu que se preparasse para o enfermo, está razoavelmente quente ou morna. Mas ninguém, entrando num jardim e levando uma rosa ao nariz, vai exclamar: Como esta rosa cheira razoavelmente! Mesmo que o médico lhe tivesse ordenado que a cheirasse; neste caso, razoável seria a prescrição ou a receita do médico, mas não se diz que a rosa cheira razoavelmente, pois o perfume lhe é natural. Quando um cozinheiro tempera a comida, podemos dizer que está razoavelmente temperada, mas, de acordo com o modo comum de falar, de nenhum modo se diz que o alimento tem um sabor razoável, porque não há nenhuma causa extrínseca, senão a satisfação de um prazer presente. Pois se se pergunta àquele a quem o médico prescreveu a poção por que esta tinha de ser tão doce, a resposta é não por causa do gosto, mas sim bem outra, isto é, porque a doença assim o requer, o que se apresenta bem diferente em função do estado do corpo. Mas se se perguntar a um saboreador de alguma iguaria, que é levado pelo estímulo da gula, por que a poção é tão doce, e ele responder: porque me agrada, ou porque sinto prazer, ninguém diz que é razoavelmente doce, a não ser que o prazer do doce seja necessário para alguma coisa, e aquilo que ele tomou tenha sido preparado para esta finalidade. 33. Pelo que pudemos investigar, temos certos vestígios da razão nos sentidos e, no que se refere à visão e à audição, também no próprio prazer. Mas costuma-se atribuir este nome aos demais sentidos não por causa do prazer, mas por causa de outra finalidade: o que foi feito pelo animal racional com outro fim. No que se refere aos olhos, a coerência das partes, que se diz razoável, costuma chamar-se de beleza. E no que diz respeito aos ouvidos, quando dizemos ser razoável uma harmonia e um canto tenha sido composto razoavelmente cadenciado, chama-se a isto com o nome próprio de suavidade. Mas nem quando a cor nos encanta nas coisas belas, nem na suavidade dos ouvidos, quando a corda de um instrumento musical soa sonora e maviosamente, costumamos dizer que aquilo seja razoável. Resta, portanto, afirmar que no prazer destes sentidos isto pertence à razão, em que há certa dimensão e modulação. 34. Quando observamos bem cada parte deste edifício, não pode deixar de causar-nos estranheza o fato de vermos uma porta colocada no lado e outra perto do centro, mas não no centro. Nas coisas fabricadas, não havendo nenhuma necessidade, parece que a desigualdade na proporção das dimensões das partes de algum modo fere a própria visão. No entanto, quando as três janelas no interior são devidamente colocadas, uma no centro e duas nos lados, com iguais distâncias entre si, para deixar entrar a claridade no banheiro, como isto nos dá prazer e alegra o ânimo; é coisa tão evidente que dispensa esclarecimento. Pelo que os próprios arquitetos dão a isto o nome de razão e dizem que carece de razão as partes colocadas sem simetria. Isto se aplica a muitas coisas e estende-se a quase todas as artes e obras humanas. Já nos versos poéticos, nos quais dizemos haver uma razão pertencente ao prazer dos ouvidos, quem não sabe que a métrica é o artífice de toda esta harmonia? Mas quando o histrião dança, todas aquelas suas mímicas são para os espectadores sinais expressivos de coisas e embora certo movimento cadenciado dos membros agrade na mesma medida, contudo aquela dança se diz razoável, porque significa e mostra algo ao espectador, excetuando-se o prazer dos sentidos. Se se fizer uma estátua de Vênus com asas e de Cupido coberto com um manto, embora isto lhes confira graça pela admirável proporção e disposição dos membros, parece que isto repugna aos olhos e, através dos olhos, à mente à qual são mostrados aqueles sinais daquelas coisas; pois os olhos se ofenderiam se não houvesse movimento harmonioso. Isto pertencia ao sentido, no qual a alma, pelo fato de estar unida ao corpo, percebe o prazer. Portanto, uma coisa é o sentido, outra coisa o que se percebe pelo sentido: pois o movimento rítmico deleita os sentidos, enquanto a alma se deleita somente na bela significação captada no movimento por meio dos sentidos. Isto se nota também mais facilmente nos ouvidos, pois o que soa agradavelmente agrada e atrai a audição, mas o bom significado que se apresenta por meio do som, como mensageiro dos ouvidos, refere-se somente à mente. Por isso, quando ouvimos aqueles versos: Quid tantum oceano properent se tingere soles Hiberni, vel quae tardis mora noctibus obstet? (Por que tanto se apressam os raios do sol do inverno a banhar-se no oceano; ou que demora dificulta a chegada das noites vagarosas?) de uma maneira elogiamos a métrica dos versos e de outra maneira a sentença expressa, nem dizemos com o mesmo sentido soa razoavelmente e foi expresso razoavelmente. O nascimento da linguagem e das artes: gramática, dialética e retórica XII,35. Portanto, já são três os gêneros de coisas em que aparece o razoável: um está no que se faz em relação a um fim, o segundo está no que se diz e o terceiro no prazer. O primeiro nos admoesta a não fazer nada temerariamente; o segundo adverte-nos a ensinar corretamente; o terceiro chama-nos à feliz contemplação. O primeiro refere-se aos costumes, e os outros dois referem-se às disciplinas das quais tratamos aqui. Pois o que há em nós de racional, isto é, que usa da razão e faz ou segue coisas razoáveis, uma vez que o homem estava ligado por um vínculo natural à sociedade daqueles com os quais tinha a mesma razão em comum, e porque ele não podia se associar ao homem de uma maneira bem consistente, a não ser que eles conversassem entre si e, assim, como que fundissem entre si suas mentes e pensamentos, a razão percebeu que se deviam impor vocábulos às coisas, expressando alguns sons para que, uma vez que os homens não podiam penetrar mutuamente em suas almas, usassem do sentido com intermediário para associar-se entre si. Mas as palavras dos ausentes não podiam ser ouvidas. Por isso, a razão gerou as letras, notando e distinguindo todos os sons pelo movimento da boca e da língua. Mas nada disso podia fazer, uma vez que a grande quantidade de assuntos, sem lhes ser demarcado algum limite, parecia estender-se ao infinito. Percebeu-se, portanto, como uma grande necessidade a utilidade de lidar com os números. Descoberta estas duas coisas, surgiu a profissão de copista de livros e de mestre-escola. O mestre-escola encarregava-se de ensinar às crianças as primeiras noções de ler, escrever e dar ritmo aos sons articulados. Esta profissão foi como que a infância da gramática, e Varrão dava-lhe o nome de litteratio ("aprendizado da escritura", compreendendo elementos de leitura, escritura e números - cadência dos sons articulados). No momento não me lembro como se diz em grego. 36. Depois, seguindo no seu processo, a razão notou que entre os mesmos sons emitidos pela boca, por meio dos quais falamos e que ela já havia indicado com letras, há alguns que requerem uma abertura apenas moderada da boca para fluírem claros e naturalmente sem confusão, outros requerem diferente compressão da boca para articular algum som, e um terceiro tipo de sons os quais não seriam emitidos senão unidos aos primeiros. Pelo que, a razão denominou as letras, vogais, semivogais e mudas, na ordem em que foram expostas. Em seguida, formou as sílabas e, depois, as palavras foram classificadas em oito categorias e formas, distinguindo-se com perícia e sutileza a sua morfologia e articulação. Depois, não se esquecendo da cadência dos números e da duração na entoação, aplicou sua atenção às diversas durações na pronúncia das palavras e sílabas e, assim, chegou a saber que alguns tempos de pronúncia eram duplos e outros simples, pelos quais as sílabas se tornavam longas e breves. Notou tudo isso e organizou com regras fixas. 37. Poderia dar-se por completa a gramática, mas como pelo seu próprio nome indica a profissão do ensino das letras - pelo que em latim se diz também literatura - ocorreu que necessariamente competia a ela perpetuar por escrito tudo o que fosse digno de memória. Por isso, a esta disciplina agregou-se a história, um nome simples, mas que abrange uma infinidade de assuntos, uma multiplicidade de coisas; nome mais cheio de azáfamas que de prazer e verdade; trabalhosa não tanto para os historiadores como para os gramáticos. Pois quem há que não tache de ignorante ao homem que não tenha ouvido falar que Dédalo voou, de mentiroso aquele que inventou tal fábula, de bobo aquele que crê, de petulante aquele que propõe questões sobre isso? Como tenho dó dos nossos familiares que são tachados de ignorantes por não saberem responder como se chamava a mãe de Euríalo, e por não se atreverem a chamar de fúteis, idiotas e curiosos aos que perguntam tais coisas! A dialética, disciplina das disciplinas XIII,38. Uma vez completa e sistematizada a gramática, a razão foi estimulada a pesquisar e voltar sua atenção àquela mesma força pela qual ela gerou a arte, pois, através de definições, divisões e sínteses, não só a havia classificado e ordenado, mas também a defendera de qualquer insinuação furtiva de falsidade. Pois como podia passar a outras construções se antes não distinguisse, notasse e classificasse seus próprios instrumentos e meios e passasse adiante para produzir a disciplina das disciplinas, que se chama dialética? Esta proporciona a metodologia para ensinar e aprender; por ela a própria razão se mostra e se revela o que é, o que deseja, o que pode. Dá certeza do saber; somente ela não apenas quer, mas também pode fazer com que tenhamos conhecimentos. Porém, uma vez que muitos homens estúpidos não seguem as coisas que lhes são aconselhadas com retidão, utilidade e honestidade, nem percebem a própria verdade sinceríssima que poucos espíritos veem, mas seguem os próprios sentidos e hábitos, era oportuno não somente ensinar-lhes o quanto eles podiam aprender, mas sim e principalmente estimula-los à prática. A razão denominou retórica esta parte encarregada desta função; é mais necessária que simples, a função de proporcionar aos povos quantidades de delícias para que aceitem ser atraídos para o seu próprio benefício. Até este ponto avançou, com os estudos e as disciplinas liberais, aquela parte que se diz razoável quando se trata da significação. A gradação racional das disciplinas no âmbito do prazer contemplativo: música, geometria e astronomia XIV,39. Daí, a razão quis elevar-se à beatíssima contemplação das mesmas coisas divinas. Mas para não cair do alto, buscou escalas gradativas e se movimentou segundo a ordem com base no que já havia conseguido. Desejava aquela beleza que só ela podia intuir com simplicidade sem a mediação dos olhos corporais. Mas os sentidos a impediam. Por isso, aplicou pouco a pouco a sua agudeza nos mesmos sentidos, os quais, declarando que possuíam a verdade, com um tumulto importuno impediam-na quando se apressava a caminhar para aquelas outras coisas mais elevadas. Primeiramente, começou pelos ouvidos, que afirmavam serem suas as palavras, pelas quais a razão já construíra a gramática, a dialética e a retórica. Mas, com seu poderosíssimo poder de discernimento, percebeu a diferença que existe entre o som e o seu significado. Entendeu que nada mais pertencia à jurisdição dos ouvidos além do mesmo som e que este é de três tipos: o que se produz pela voz do animal, o que o sopro produz nos órgãos e o que se produz por percussão. Ao primeiro tipo pertencem os atores trágicos, os comediantes, os corais de músicos e de todos os que cantam em solo; ao segundo tipo pertencem as flautas e outros instrumentos de sopro; o terceiro compreende as cítaras, as liras, os címbalos e todo instrumento que produz som por percussão. 40. Mas a razão notou que isto seria uma matéria de pouco valor se os sons não fossem ornados com certa medida de tempos e com uma variedade combinada de acentos agudos e graves. Ela reconheceu que as bases para tudo isso estavam na gramática, onde havia dado os nomes de pés e acentos, quando tratou das sílabas com cuidadosa consideração. E como havia sido fácil notar que nas mesmas palavras as sílabas breves e longas se repetiam em igual quantidade no discurso, ela procurou dispor e ordenar aqueles pés e acentos em certas ordens e, baseando-se primeiramente no próprio sentido, compactou articulações e, combinados com as quais, deu os nomes de cesuras (caesa) e hemistíquios (membra). E para que os pés não se tornassem mais longos do que o gosto estético pudesse suportar, ela estabeleceu uma medida de onde se podia reverter, voltar, dando-lhe, por isso, o nome de verso (versum). Mas o que não estava disposto em certo limite, contudo fluía com pés razoavelmente ordenados, ela denominou rhythmos (ritmo), palavra grega que se traduziu ao latim por numerus (número, cadência). Daí surgiram os poetas, nos quais ela percebeu a grande importância não somente dos sons, mas também das palavras e dos assuntos e os honrou muitíssimo atribuindo-lhes capacidade mental para produzirem todo tipo de composições poéticas razoáveis que quisessem. E uma vez que eles tinham sua origem na gramática, a razão permitiu que os gramáticos fossem os seus críticos. 41. Neste quarto grau, seja nos ritmos, seja na mesma modulação musical, a razão entendia que dominavam os números (as cadências) e que estes completavam tudo. Investigou, pois, com suma diligência a sua natureza e descobriu que havia números divinos e eternos, principalmente que, com a ajuda deles, ela havia elaborado tudo o que foi dito acima. E já se lhe tornava difícil tolerar que o esplendor e a suavidade dessas coisas se turvassem pela matéria corporal das vozes. E como aquilo que a mente percebe está sempre presente e se aprova como imortal, ao passo que o som, por ser algo sensível, perde-se no passado e deixa sua impressão na memória, e já que a razão havia concedido aos poetas a capacidade de produzirem ficções razoáveis (rationabili mendacio), eles inventaram que as Musas são filhas de Júpiter e da Memória (haverá necessidade de perguntar se existe algo semelhante a este tipo de homens?). Assim esta disciplina, que participa do sentido e da inteligência, recebeu o nome de música. XV,42. Depois, avançando no poder de visão dos olhos e percorrendo a terra e o céu, compreendeu que nada mais que a beleza lhe agradava, e na beleza as figuras, nas figuras as medidas e nas medidas os números e pesquisou se aí a linha, a esfera e qualquer outra forma e figura eram tais como existem na inteligência. Achou-as muito inferiores e nada do que os olhos viam era comparável ao que a mente percebia com clareza. Tendo distinguido e ordenado todas essas coisas, sistematizou-as para constituírem uma disciplina à qual deu o nome de geometria. Chamava-lhe muito a atenção o movimento do céu que a convidava a refletir com diligência. E entendeu que também ali dominavam aquela medida e ritmos (números) através das regularíssimas alternâncias dos tempos, pelos cursos invariáveis e definidos dos astros, pelos espaços de tempo ordenados dos intervalos. Igualmente definindo e dividindo, colocou tudo em perfeita conexão e deu origem à astronomia, grandioso espetáculo para as pessoas religiosas e grande tormento para os desejosos de saber. O número fundamental e a compreensão dos números inteligíveis 43. Portanto, em todas essas disciplinas, ocorriam-lhe todas aquelas harmoniosas correlações das partes, que sobressaíam mais claramente naquelas medidas. Considerando e refletindo em si mesma tudo isso, contemplava-o como muitíssimo verdadeiro; mas considerava as coisas que se percebem pelos sentidos apenas como sombras e vestígios daquelas intuídas pela mente. Aqui a razão ergueu-se e se fortificou muito; ousou comprovar que a alma é imortal. Examinou tudo diligentemente, percebeu que tinha um grande poder e que todo o seu poder estava na força dos números. Então, algo maravilhoso a tocou e ela começou a conjecturar que ela mesma talvez fosse aquele número pelo qual todas as coisas eram numeradas com cadência, ou se não o era, contudo ali estava aonde se empenhava em chegar. Ali chegando, a razão abraçou-o com todas as suas forças, aquele que seria o indicador de toda verdade, a quem Alípio mencionou quando tratávamos dos acadêmicos, quase como Proteu em suas mãos. Pois as imagens falsas das coisas que contamos, provindas daquele número ocultíssimo pelo qual tudo é contado cadenciadamente, atraem a si o nosso pensamento e, com frequência, fazem cair aquele número que já se tinha como firme. XVI,44. Aquele que não se deixar seduzir pelas imagens falsas das coisas e conseguir resumir num compêndio simples, verdadeiro e sólido todas as coisas amplas e variadamente contidas em tantas disciplinas, é digníssimo de ser chamado de erudito e não temerariamente pode buscar as coisas divinas, não somente para crer nelas, mas também para contemplá-las, entendê-las e guardá-las. Mas aquele que ainda é escravo das suas paixões, desejoso das coisas perecíveis, ou mesmo que evite tais coisas e viva castamente, mas não saiba o que seja o nada, a matéria informe, a matéria formada, mas sem vida; o que seja o corpo, a beleza no corpo; o que seja o espaço, o tempo; o que esteja no espaço e o que no tempo; o que se move segundo o lugar, o que se move não em função do lugar; quem não saiba o que seja o movimento estável, o que seja o evo (aevum); quem não sabe o que seja transcender todo lugar, estar além do tempo e ser sempre; o que seja não estar em nenhuma parte e estar em todas as partes: se, pois, alguém, ignorando tais coisas, quiser investigar e discorrer não digo a respeito do sumo Deus, a quem se conhece melhor ignorando, mas a respeito da própria alma, cairá em toda classe de erros: mais facilmente conhecerá estas coisas aquele que tiver conhecimento de números simples e inteligíveis. Mas os compreenderá aquele que tiver força de intelecto ou o privilégio da idade, lazer, bem-estar e estiver veementemente entusiasmado para seguir suficientemente a ordem indicada das disciplinas. Mas como todas essas artes liberais aprendem-se em parte para a utilidade da vida, em parte para o conhecimento das coisas e para a contemplação, é muito difícil obter o seu exercício com exceção daquele que, desde a sua infância, se aplicar a isso com todo vigor e constantemente. Propedêutica das disciplinas liberais para a correta discussão do problema sobre o mal XVII,45. Quanto aos conhecimentos que sejam necessários em relação ao que estamos investigando, peço-lhe, mãe, que não tenha medo dessa imensa selva de coisas. Pois dentre todas essas questões serão selecionadas para o nosso estudo pouquíssimas em número, mas de poderosíssima eficácia e certamente de difícil assimilação para muitos. Porém, não para você, cujo talento é novo para mim a cada dia, e sei que o seu espírito, pela maturidade e pela admirável temperança, está bem longe de todas as ninharias e puro de toda corrupção corporal, se elevou muito; para você, pois, essas questões serão fáceis, como difíceis são para os preguiçosos e que vivem deploravelmente. Mas certamente estarei mentindo se eu lhe disser que você chegará com facilidade conseguir aquele discurso livre de todo erro de locução e linguagem. A mim mesmo, que tive grande necessidade de aprender a fundo tudo isto em função da minha profissão de retórica, os italianos ainda me criticam pela minha pronúncia de muitas palavras; mas eu também, por minha vez, os repreendo no que diz respeito à mesma pronúncia. Pois uma coisa é a certeza que se tem pelo conhecimento da arte de bem falar e outra coisa é a maneira de falar de uso popular. Talvez, se alguém instruído analisar com cuidado o meu discurso, irá encontrar aí erros que denominamos solecismos; pois não faltou quem, com muito conhecimento da matéria, me convencesse de que o próprio Cícero cometeu alguns erros desse tipo. No que se refere ao tipo de vícios de linguagem chamados de barbarismos, descobriu-se em nossos dias que parece bárbaro até mesmo o seu discurso, por meio do qual Roma foi salva. Mas você, menosprezando tais coisas pueris ou que não lhe dizem respeito, conhece de tal modo a força quase divina e a natureza da gramática, que parece que você captou a alma dela e deixou o seu corpo para os instruídos. 46. O mesmo eu diria em relação às artes: se você talvez as menospreza, eu, como seu filho, e quanto você me permita, aconselho a conservar com firmeza e prudência esta sua fé que recebeu dos veneráveis mistérios e a permanecer neste seu modo de vida e costumes com constância e vigilância. Há coisas muito obscuras, não obstante serem divinas. Por exemplo: como Deus, não fazendo nada de mal e sendo onipotente, contudo se cometem tantos males; para que fim bom ele criou o mundo, se não tinha necessidade dele; se o mal sempre existiu ou começou no tempo; e se sempre existiu e se estava sob o poder de Deus; se era assim, também sempre existiu o mundo no qual o mal estaria dominado por uma ordem divina; se este mundo começou a existir alguma vez, como antes de existir o mal era refreado pelo poder de Deus; que necessidade havia de criar o mundo no qual, para castigo das almas, fosse incluído o mal que o poder de Deus já freava; se houve um tempo em que o mal não estava sob tão de repente que não havia acontecido nos tempos eternos anteriores. Pois é muito absurdo, para não dizer ímpio afirmar que em Deus tenha ocorrido um novo projeto. Se, porém, se dizemos que o mal foi importuno e até nocivo para Deus, conforme alguns pensam, não haverá nenhum instruído que não zombe disso e nenhum ignorante que não se irrite com isso. Pois o que pôde causar dano a Deus, não sei que natureza do mal? Se dizem que não pôde, não haveria motivo para criar o mundo; se dizem que pôde, é uma impiedade imperdoável crer que Deus seja inviolável sem ter pelo menos o poder de não ser violado em sua substância. Declaram ainda que a alma sofre castigos aqui porque não querem admitir nenhuma diferença entre a sua substância e a de Deus. Se dizemos que este mundo não foi criado, é uma impiedade e uma ingratidão crer nisso, porque a consequência seria admitir que Deus não o tenha criado. Estas e outras questões semelhantes ou devem ser examinadas naquela ordem de erudição que expusemos, ou não devem ser indagadas de modo algum. A filosofia e os seus dois problemas XVIII,47. Para que ninguém julgue que tenhamos abrangido um tema muito amplo, explico-o de maneira mais resumida e breve. Isto é, que ninguém deve aspirar ao conhecimento dessas questões se não estiver imbuído daquela dupla ciência da boa discussão e da eficácia dos números. Se alguém achar que isto é demais, aprenda muito bem ou só a ciência dos números ou só a dialética. Se ainda apenas isto lhe pareça uma tarefa árdua demais, aprenda em profundidade o que seja a unidade nos números e qual o seu valor, mesmo sem ainda a levar em consideração naquela suprema lei e suma ordem de todas as coisas, mas tendo-a em conta apenas nas coisas que diariamente sentimos e fazemos a cada instante. Empenha-se também por esta erudição a própria filosofia, e nela nada mais acha senão o que seja a unidade, mas de um modo muito mais elevado e divino. Duas questões lhe dizem respeito: uma concernente à alma, outra a Deus. A primeira faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a segunda leva-nos ao conhecimento de nossa origem. A primeira nos é mais agradável, a segunda mais cara; a primeira nos torna dignos da vida feliz, a segunda nos torna felizes; a primeira é para os que aprendem aquelas coisas, a segunda é para os já instruídos. Este é o método dos estudos da sabedoria, pelo qual alguém se capacita a entender a ordem das coisas, isto é, a conhecer os dois mundos e o próprio Pai do universo, do qual não há nenhum conhecimento na alma a não ser saber até que ponto o desconhece. A descoberta do valor fundamental do uno e da imortalidade 48. Portanto, observando esta ordem a alma, já dedicada à filosofia, examina-se primeiramente a si mesma. E já persuadida por aquela erudição de que a razão lhe pertence ou que ela mesma é a razão, mas que na razão nada há melhor e mais poderoso que os números, ou que a razão não é outra coisa senão um número, falará consigo mesma da seguinte maneira: Eu, com um movimento meu interior e oculto, posso separar as coisas que devem ser aprendidas e estabelecer conexão entre elas e esta minha força se chama razão. Mas o que há de separar senão o que se pensa que seja uno, mas não o é ou certamente não é tão uno quanto se pensa? Igualmente, por que se há de unir uma coisa senão para que se torne o quanto possível uma unidade? Portanto, seja ao separar como ao estabelecer conexão entre coisas, busco a unidade, amo a unidade. Mas quando separo algo, quero-o puro; quando estabeleço conexão entre coisas, busco o íntegro. No primeiro caso, evitam-se todos os elementos estranhos; no segundo caso, unem-se todos os elementos próprios para que se constitua uma unidade perfeita. A pedra, para ser pedra, tem todas as suas partes e toda a sua natureza consolidadas numa só coisa. Que dizer da árvore? Acaso seria uma árvore se não fosse una? Que dizer dos membros de qualquer animal, de suas vísceras e de todas as partes de que se compõe? Se as partes se separam da unidade, certamente não haverá um animal. O que buscam os amigos senão empenhar-se para ser uma unidade? E quanto mais se unem, mais amigos são. Um conjunto de habitantes constitui uma cidade para a qual a dissensão é perigosa: pois o que significa dissentir senão não sentir em unidade? O exército se compõe de muitos soldados: por acaso qualquer multidão não se torna mais invencível quanto mais se unir entre si? Daí que o mesmo fato de se reunir em um se chamou cunha, como se fosse um exército formado em cunha para a ordem de batalha. Que busca todo amor? Não busca tornar-se uma só coisa com aquilo que ama e, se lhe for possível, aderir-se com ele? O próprio prazer sensual não agrada com mais sofreguidão se os corpos dos que se amam não se unirem numa só coisa. E a dor, por que é perniciosa? Porque ela se esforça por separar aquilo que era uno. Portanto, é desagradável e perigoso estabelecer uma unidade com aquilo que se pode separar. XIX,49. Havendo muitos materiais esparramados aqui e acolá, reúno-os dando-lhes uma forma e construo uma casa. Certamente sou melhor eu que construo, ela é construída; sou melhor porque fabrico; não há dúvida que por isso sou melhor que a casa. Mas não é por isso que sou melhor que a andorinha ou a abelha, pois a andorinha constrói engenhosamente o seu ninho, e a abelha os favos; mas sou melhor que elas porque sou um animal racional. Mas se a razão se manifesta nas medidas calculadas (ratis), acaso o que as aves constroem é medido com menos habilidade e proporção? Ao contrário; é absolutamente harmônico (numerosissimum). Portanto, sou melhor não por construir coisas proporcionais, mas por conhecer as proporções. Que dizer, então? A andorinha e a abelha, sem conhecer, podiam construir coisas proporcionais? Certamente que sim. Como explicar isto? Pelo fato da adaptação, isto é, como também nós adaptamos com certas medidas a língua aos dentes e ao palato para emitir letras e palavras; porém, ao falar, não pensamos com que movimento da boca devemos fazê-lo. Não existe também bom cantor que, mesmo sem saber música, percebe com o sentido natural no canto tanto o ritmo como a melodia que ele conserva em sua memória? Pode-se fazer algo mais harmonioso do que isto? O ignorante não o sabe, mas o faz por artifício da natureza. Mas quando é melhor que os animais? Quando sabe o que faz. Nenhuma outra característica me distingue como superior ao animal senão que sou um animal racional. 50. Como, pois, a razão é imortal e eu sou definido como algo ao mesmo tempo racional e mortal? Acaso a razão não é imortal? Um está para dois ou dois para quatro é uma razão verdadeira: esta razão não foi mais verdadeira ontem que hoje, nem será mais verdadeira amanhã ou após um ano; nem mesmo se este mundo acabar, ela deixará de ser uma verdadeira razão. Ela é sempre o que é, porém este mundo não teve ontem nem terá amanhã o que tem hoje; nem no dia de hoje ou sequer no período de uma hora o sol está no mesmo lugar; assim, como nada permanece neste mundo, nada conserva o mesmo modo de ser mesmo por breve espaço de tempo. Portanto, se a razão é imortal e eu que separo todas as coisas e estabeleço conexões entre elas sou razão, aquilo pelo qual sou denominado mortal não é meu. Ora se a alma não é a mesma coisa que a razão e, contudo, uso da razão e por ela sou melhor, então deve-se passar do inferior ao superior, do mortal ao imortal. Purificação moral e visão de Deus Estas e muitas outras coisas a alma bem instruída fala consigo mesma e desenvolve dentro de si. Mas não quero prosseguir nessas reflexões para que, uma vez que desejo ensinar-lhes sobre a ordem, não venha eu a ultrapassar o modus (comedimento), que é o pai da ordem. Pois a alma se eleva gradativamente à perfeição de costumes e de vida não apenas só pela fé, mas também com certa razão. Aquele que diligentemente considera a força e a eficácia dos números (das cadências rítmicas) lhe parecerá por demais indigno e muito lamentável que alguém, por um lado, com sua ciência componha lindos versos e toque melodiosamente a cítara, mas, por outro lado, por deixar que sua vida e sua própria alma sigam um caminho tortuoso, causa uma terrível dissonância sob o domínio da libido e com o torpíssimo estrépito dos vícios. 51. Mas quando a alma se adorna e se ordena e se torna harmoniosa e bela, ousará ver a Deus e a mesma fonte de onde mana toda a verdade e ao próprio Pai da Verdade. Grande Deus, como serão aqueles olhos! Como serão puros e formosos, vigorosos e firmes, serenos e felizes! E que é aquilo que eles veem? O que, digam-me. O que podemos julgar que seja, o que avaliar, o que falar? Diariamente Ocorrem-nos palavras, mas que são todas elas manchadas de coisas muito vis. Nada mais direi senão que nos é prometida a visão da beleza, por cujo reflexo são belas as demais coisas e se tornam feias se comparadas com ela. Quem contemplar esta beleza (e a contemplará aquele que viva bem, ore bem, deseje bem) já não se estranhará se alguém deseja ter filhos e não os tem, outro os tem demais e os abandona; um os odeia antes de nascerem, outros os ama já nascidos. Tampouco se estranhará que não há oposição entre o fato de que não haverá nada que não esteja em Deus, pelo que é necessário que tudo se faça com ordem e, por outro lado, não é em vão que se reza a Deus. Finalmente, como poderão molestar o homem justo quaisquer dificuldades, quaisquer perigos, quaisquer aborrecimentos, quaisquer atrações da fortuna? Neste mundo sensível deve-se meditar muito sobre o que seja o tempo e o lugar, para que se entenda que há aquilo que em parte agrada, seja do lugar, seja do tempo; mas é muito melhor o todo do qual o tempo e o lugar são partes. Igualmente, torna-se evidente para o homem instruído que o que em parte desagrada o é pelo fato de que não se contempla o todo, com o qual aquela parte está em harmonia: realmente torna-se evidente que naquele mundo inteligível qualquer parte, como o todo, é bela e perfeita. Exortação à oração XX,52. Para conseguirmos alcançar isto, devemos aplicar todo o nosso esforço na prática dos bons costumes; pois, de outra maneira, o nosso Deus não nos poderá ouvir, mas ouvirá com condescendência aos que vivem bem. Portanto, peçamos não que nos sejam dadas riquezas, ou honras, ou coisas inconstantes e efêmeras deste tipo que, por mais que durem, são passageiras, mas que nos sejam concedidas aquelas coisas que nos façam bons e felizes. Para que se cumpram com toda fidelidade os nossos desejos, encomendamos esta incumbência principalmente a você, mãe, por cujas orações indubitavelmente creio e reafirmo que Deus me concedeu este propósito de não preferir absolutamente nada à investigação da verdade, nada mais desejar, em nada mais pensar, nada mais amar. E não deixo de crer que alcançaremos este bem tão grande, que ardentemente chegamos a desejar por méritos seus, e o haveremos de conseguir por suas orações. Quanto a você, Alípio, que exortação e conselho posso dar? Você não comete exagero no seu amor, porque, por mais que se amem essas coisas, talvez sempre seja pouco e nunca se pode dizer que seja demasiado. Conclusão: a doutrina de Pitágoras 53. Ao que ele respondeu: - Verdadeiramente você fez com que se avivasse a memória dos doutíssimos e grandes homens, que às vezes parecia incrível pela magnitude das questões e que agora, por meio da reflexão diária e por esta admiração que temos por você e que está presente em nós, não só não temos aquela memória como duvidosa, mas até, se for necessário, podemos jurar por ela. Que dizer então? Por acaso hoje não nos foi colocada por você quase diante de nossos olhos aquela disciplina de Pitágoras, que justamente é estimada e aprovada como venerável e quase divina? Você nos mostrou a norma de vida, os caminhos e os campos e mares da ciência e a grande veneração que se devia àquele homem; onde estavam e o que eram os santuários da verdade; as qualidades que devem ter os que a investigam; e o fez com um resumo tão perfeito e completo que, embora suspeitemos e creiamos que você ainda nos guarda maiores segredos, seria atrevimento de nossa parte pensar em exigir mais de você. 54. - De boa vontade aceito o que você diz - repliquei. - Pois não me encantam tanto as suas palavras, que de exageradas não são verdadeiras, como o entusiasmo que o seu espírito verdadeiro infunde nas palavras. E foi boa a nossa decisão de enviarmos este livro àquele que costuma exagerar em suas palavras de elogio quando fala de nós. E se alguns outros talvez o lerem, creio que tampouco eles se irritarão com você. Quem não perdoa com suma benevolência ao erro de quem ama ao expressar um julgamento? Quanto à menção que você fez de Pitágoras, creio que lhe veio à memória por aquela divina ordem oculta. Pois eu tinha me esquecido completamente de uma coisa muito indispensável que se fala daquele homem (se acreditamos nos livros escritos sobre ele; e quem não acredita em Varrão?): um método de ensino que costumo admirar nele é louvar quase diariamente, como você o sabe, isto é, ele deixava para transmitir por último a arte de governar a república, para ensiná-la aos que já eram perfeitos, sábios e felizes. Pois ele via nesta função tantas ondas de agitação que não queria expor a essas ondas senão um homem que, no governo, evitasse as rochas de maneira quase divina e, se tudo falhasse, ele próprio se tornasse como que um rochedo para resistir àquelas ondas agitadas. Pois somente do sábio se pode dizer com toda verdade: Ele resiste como um rochedo inabalável no mar, e tudo o mais que foi expresso nesta sentença com elegantes versos. Com isso, encerramos a discussão e terminamos a sessão, com todos alegres e cheios de esperança, quando já haviam sido acesas as tochas noturnas.