Nicolau Maquiavel – A Arte da Guerra Apresentação que faz a A Arte da Guerra Nicolau Maquiavel, cidadão e secretário de Estado de Florença, a Lourenço, filho de Felipe Strozzi, nobre florentino. Lourenço: Muitos já defenderam e ainda hoje defendem a opinião de que não há duas coisas mais diferentes, nem menos compatíveis entre si, do que a vida militar e a civil. Por esse motivo, muitas vezes, se alguém deseja seguir a primeira, altera não só a vestimenta, mas também hábitos, costumes, tom de voz e todas as características do estilo próprio ao civil. De fato, aquele que está pronto e disposto a ser conduzido a qualquer violência não se inclina a se trajar à moda da cidade, a cultivar costumes que considera efeminados ou práticas que desfavorecem suas atividades. De igual maneira, não parece conveniente aos que pretendem amedrontar os outros com a barba, e as blasfêmias que proferem, ter um aspecto normal e uma linguagem comum. Portanto, essa opinião é muito apropriada para nossos tempos atuais. Se considerássemos a Antiguidade, não encontraríamos coisas mais bem relacionadas, de acordo e adequadas uma à outra. Portanto, todas as artes praticadas na sociedade em função do bem de todos, todas as instituições nela estabelecidas mediante o respeito às leis e o temor de Deus seriam vãs se não se preparasse também a sua defesa, a qual, se eficaz, permite que sejam mantidas mesmo quando forem estruturadas com imperfeição. Sem o apoio militar, contudo, as boas instituições não podem sobreviver em boa ordem, como o interior de um soberbo palácio que, embora adornado com ouro e pedras preciosas, não tivesse cobertura para protegê-lo da chuva. Se em qualquer outro aspecto da vida das cidades e dos reinos se empregava toda providência para que os homens se mantivessem fiéis, pacíficos e tementes a Deus, nas organizações militares esse esforço se duplicava. Na verdade, em quem encontrará, a pátria, fé mais firme do que naquele que prometeu morrer a seu favor? Quem pode ter maior amor à paz do que o soldado que a guerra irá ameaçar? Quem pode temer mais a Deus do aquele que tem mais necessidade de sua ajuda, já que está sujeito todo dia a perigos infinitos? Considerada como um bem pelos legisladores dos Estados e pelos que se destinavam aos exercícios militares, essa necessidade fazia com que todos louvassem a vida do soldado, que era seguida e imitada com atenção. Porém, como as instituições militares se corromperam muito, afastando-se em demasia dos padrões antigos, essas opiniões de mau agouro surgiram dos que odeiam os exércitos e evitam o contato com seus integrantes. Julgando pelo que tenho visto, não é impossível retomar ao modelo da Antiguidade, voltando-se a atribuir àquelas instituições uma parte das suas qualidades tradicionais; decidi assim escrever sobre a arte da guerra, como a compreendo, para satisfação dos que se interessam pelos combates de tempos atrás, aproveitando o período de ócio em que me encontro. E embora seja atrevido tratar assunto que não pertence a nossa profissão, penso que não é incorreto abordar um terreno que outros, com maior presunção, ocuparam com ações. Os erros que poderia cometer, com minhas palavras, poderão ser corrigidos sem prejuízo de ninguém, ao passo que as ações equivocadas só são remediadas pela ruína dos impérios. Considera, portanto, Lourenço, o valor deste meu esforço, fazendo-lhe o elogio ou a crítica que pareça justo a vós. Envio-te esta obra para testemunhar gratidão pelos benefícios recebidos, embora minha possibilidade de testemunhá-la não seja suficiente; e também porque é tradição oferecer obras, como esta, aos que se distinguem pela nobreza, riqueza, engenho e bondade. Não haverá muitos que te igualem em riqueza e nobreza, sendo muito poucos os que podem ser comparados a vós em engenho, e nenhum sequer em bondade. Livros Primeiro e Segundo. As circunstâncias do diálogo e seus interlocutores. A instituição militar e a vida civil. Comparação com a República Romana. Como acredito que, após a morte, todos os homens possam ser elogiados sem queixas e acusações de parcialidade, por não haver motivos e suspeitas de adulação, não tenho dúvidas em louvar nosso Cosme Rucellai, cujo nome nunca consegui recordar sem lágrimas, reconhecendo nele todas as qualidades que se pode esperar de um bom amigo e cidadão. Com efeito, não sei o que não empregou de bom grado em benefício dos amigos, até mesmo a própria alma. Nenhuma missão o fazia desanimar se visasse o bem da pátria. Confesso que entre tantos homens que conheci, e com quem convivi, jamais encontrei quem tivesse disposição maior para a grandeza. No momento da morte, não se lamentou com os amigos senão do destino que o fazia morrer jovem, em casa, desprovido de glórias, sem utilidade a outrem, como era sua inclinação; dele sabia que só se poderia dizer que morrera um bom amigo. Não é pelo fato de não podermos ler suas obras, contudo, que não devemos admitir as louváveis qualidades que tinha – nós, e quem mais o conheceu. Na verdade, a sorte não lhe foi a tal ponto má que não tenha preservado uma breve lembrança da destreza de seu engenho, como está representado em alguns dos seus escritos e poemas de amor que compunha quando jovem, apesar de não estar apaixonado, para não deixar que o tempo passasse em vão, até que a sorte o conduzisse a outros pensamentos mais elevados. Por essas obras é possível perceber a felicidade dos seus conceitos, e como teria sido admirado pela arte poética se a tivesse praticado como missão de sua vida. Como a sorte nos privou assim da presença desse amigo, parece-me não haver outro remédio senão nos contentarmos com sua memória, em toda a medida do possível, e repetir o que disse com perspicácia que a discutiu com sabedoria. Ora, como não há dele memória mais viva que a da longa conversa que teve há pouco tempo com Fabrício Colonna, no jardim dos Rucellai, a propósito da arte militar (durante a qual coube a Cosme boa parte das indagações levantadas com sabedoria), pareceu-me oportuno registrá-la para que não se perca, já que pude presenciá-la com alguns dos nossos amigos. Dessa forma, os amigos de Cosme que dela participaram poderão relembrar suas qualidades, e os demais se lamentarão de não terem estado presentes naquele encontro, aprendendo também, com as explicações de um grande sábio, muitas coisas úteis não só para a vida militar mas também para a civil. Aconteceu que, voltando Fabrício Colonna da Lombardia, onde tinha lutado gloriosamente pela causa de Fernando de Espanha, o Rei Católico, quis descansar alguns dias em Florença, por onde transitava, para visitar Lourenço, o Duque de Urbino, e rever alguns conhecidos. Foi então que Cosme decidiu convidá-lo ao seu jardim – não tanto por liberalidade como pela oportunidade de estar com ele longamente, e assim ouvir e aprender muitas coisas, como se pode esperar de tal homem, parecendo-lhe aquela uma boa ocasião para passar todo um dia conversando sobre assunto que lhe interessava. Fabrício aceitou e foi recebido por Cosme, juntamente com alguns amigos próximos. Entre estes, Zenóbio Buondelmonti, Batista della Palla e Luís Alamanni, todos jovens a quem queria bem, com quem compartilhava ardoroso interesse pelos mesmos assuntos, e de cujos méritos deixarei de falar aqui, por muito conhecidos. Fabrício foi homenageado de todas as maneiras que o tempo e o local permitiam; terminados os festejos, tiradas as mesas, depois dos prazeres do convívio festivo – que para homens de qualidade, inclinados a pensamentos mais nobres, se esgotam rapidamente –, julgou Cosme que convinha melhor a seu objetivo levar o grupo para a parte mais protegida e sombreada do jardim, escapando assim ao calor do dia. Estando todos ali sentados sobre a relva fresquíssima ou em cadeiras à sombra de árvores muito altas. Fabrício elogiou o lugar, que era extremamente agradável, examinando as árvores, ficou surpreso por não reconhecer algumas delas. Ao perceber isso, Cosme disse: "É possível que não conheças parte destas árvores, o que não te deve surpreender, porque são mais antigas do que as que hoje cultivamos". Deu o nome de cada uma. Como Bernardo, seu avô, tinha participado do plantio daquele jardim, Fabrício retrucou: "Pensava que fossem as que disseste; este lugar e estas palavras me fazem lembrar alguns príncipes do Reino, que se deleitaram com estas antigas sombras e velhas espécies". Deteve-se e, como em suspenso, acrescentou: "Se não temesse causar ofensa, diria o que penso". E depois: "Mas não creio que cometerei ofensa falando a amigos, com o propósito de examinar as coisas, e não de condená-las animosamente. De fato, seria melhor imitar os antigos nas coisas fortes e duras – diga-se isto sem acusar ninguém – em vez de fazê-lo no que é delicado e suave. Imitá-los no que faziam ao sol e não à sombra. Seguir os costumes antigos de modo genuíno, não de maneira falsa e corrompida, pois quando assim agiram os romanos levaram a pátria à perdição". A isso respondeu Cosme como adiante se lê. Cosme. Abriste caminho para o debate que almejava. Rogo-te falar sem receio, porque sem receio farei perguntas; e se acusar ou desculpar alguém, ao indagar ou responder, não o farei por acusar ou desculpar, mas apenas para ouvir de ti a verdade. Fabrício. E eu ficarei muito contente de dar minha opinião sobre tudo o que me for perguntado; se será justa ou não, vai depender do vosso julgamento. Terei prazer em receber vossas perguntas, porque poderei assim aprender com vossas indagações, como vós de mim ao respondê-las. De fato, é comum que uma pergunta sabiamente formulada nos leve à consideração de muitas coisas, e ao conhecimento de outras que, sem aquela pergunta, não seriam percebidas. Cosme. Quero voltar ao que disseste primeiramente, que meus avós e os teus teriam agido com mais sabedoria imitando os antigos nas coisas duras, e não nas delicadas. Quero apresentar as desculpas que me cabem, as outras deixarei a ti. Mas não creio que nos tempos do meu avô alguém detestasse a vida suave mais do que ele, que tanto amava essa dureza que louvaste. Sabia, contudo, não poder empregá-la nem em si mesmo nem nos filhos, dada a corrupção geral dos costumes; quem quisesse adotar hábitos simples passaria por infame e vil. Se alguém se expusesse sobre a areia ao sol, no verão, ou se deitasse sobre a neve nos meses mais gélidos – como Diógenes – seria considerado um louco. Quem alimentasse seus filhos ao ar livre, como os espartanos, fazendo-os dormir ao sereno e caminhar com os pés descalços e a cabeça desprotegida, banhando-se em água fria – para induzi-los a suportar os incômodos, amar menos a vida e temer menos a morte –, seria objeto de zombaria, considerado mais uma fera do que homem. Poucos louvariam, e ninguém imitaria alguém que se alimentasse de legumes e desprezasse o ouro, como Fabrício, o embaixador enviado pelos romanos a Pirro. Desse modo, conturbado com esses costumes do presente, meu avô deixou de imitar os antigos, fazendo-o apenas, naquilo que despertava menor espanto aos contemporâneos. Fabrício. A explicação é magnífica, e certamente verdadeira. Mas não me referia tanto a esses hábitos espartanos, e sim a outros que, mais humanos, se ajustam melhor à vida de hoje. Não creio que fosse difícil para um príncipe introduzi-los. Não me afastarei nunca do exemplo dos meus romanos. Se se considerasse sua vida, e a organização da república que instituíram, encontrar-se-iam muitas coisas a ser introduzidas em uma comunidade onde houvesse ainda algo de bom. Cosme. Que coisas, na tua opinião, seriam essas, semelhantes às antigas? Fabrício. Honrar e premiar a coragem; não desprezar a pobreza; amar os hábitos e instituições da disciplina militar; induzir os cidadãos a se amarem mutuamente, a viver sem avidez, a buscar menos o interesse privado e mais o interesse público; e outras coisas semelhantes que facilmente se poderiam ajustar aos tempos atuais. O que não é difícil de aceitar, quando se reflete bem, e quando se usam meios apropriados, os quais põem em evidência a verdade de modo que qualquer inteligência mediana possa percebê-la. Quem age assim planta árvores sob cuja sombra se vive mais feliz e satisfeito. Cosme. Não quero retrucar as tuas palavras; que as julguem os amigos, que podem fazê-lo sem dificuldade. A ti, acusador dos que não imitam os antigos nas ações graves e grandes, dirigirei uma pergunta por acreditar que assim satisfarei melhor meu propósito. Gostaria de saber por que razão, de um lado, criticas os que não se assemelham aos antigos no agir e, de outro, não se vê que tenhas utilizado na guerra a tua profissão, na qual tens excelente prestígio, qualquer coisa antiga, ou que lembre a Antiguidade. Fabrício. Chegaste justamente ao ponto que esperava, porque minhas palavras não mereciam outra pergunta – nem eu a desejava. E embora pudesse salvar-me com uma desculpa fácil, prefiro desenvolver raciocínio mais extenso, que o assunto comporta, para maior satisfação minha e vossa. Quem pretende fazer alguma coisa deve primeiramente preparar-se de modo que, surgindo a ocasião, tenha condições de satisfazer suas intenções. Ora, como os preparativos feitos sob-reserva não são conhecidos, não se pode acusar ninguém de negligência se antes não ocorre uma oportunidade que a revele. É aí que se percebe, pela carência da ação, que o preparo foi insuficiente, ou que não se pensou bastante no assunto. Como não tive ainda oportunidade de demonstrar os preparativos em que me empenhei para seguir o modelo militar, não posso ser criticado por ti nem por ninguém. Penso que esta desculpa bastaria como resposta à acusação. Cosme. Bastaria, se estivesse convencido de que de fato nunca surgiu a oportunidade de que falaste. Fabrício. Justamente porque sei que podeis duvidar disso, quero expor amplamente (se podeis ouvir-me com atenção) os preparativos que se fazem necessários, as oportunidades que precisam surgir, as dificuldades que impedem a frutificação dos preparativos, ou inibem o despontar da oportunidade – coisa que é ao mesmo tempo muito difícil e muito fácil, embora isso pareça contraditório. Cosme. Não poderias fazer nada que fosse mais gratificante a mim e a esses amigos. E se não te importunar o falar-nos, a nós nunca aborrecerá o ouvir-te. Porém, como o argumento deve ser longo, peço ajuda a meus amigos, com tua licença, que não te irrites com a interrupção de alguma pergunta importuna. Fabrício. Ficarei contentíssimo de ser interrogado por ti e por esses outros jovens, porque acredito que a juventude vos fará mais amigos das coisas militares, aceitando facilmente o que terei a dizer. Outros, por terem já os cabelos brancos e o sangue gelado, são inimigos da guerra ou não podem ser corrigidos – como os que acreditam que são os tempos e não as más instituições que obrigam os homens a viver como vivem hoje. Que me sejam feitas perguntas, pois, com segurança e sem temor; é o que desejo, porque as pausas me servirão como repouso e também porque não quero deixar qualquer dúvida na vossa mente. Meu ponto de partida será o que disseste, que na guerra, minha profissão, não tinha usado nenhuma coisa antiga. A respeito disso devo dizer que a profissão militar não assegura a nenhum homem uma remuneração que seja honesta e permanente, pelo que só pode ser praticada a serviço das repúblicas e dos reinos; estes, quando bem organizados, jamais consentem a seus cidadãos ou súditos praticá-la por conta própria; e nunca ela foi exercitada por um homem reto de modo particular. De fato, não se qualificará de reto quem se dedique a profissão que, para ter utilidade permanente, conduz à rapacidade, à fraude e à violência, valorizando muitas qualidades que obrigam a ser mau. Nem podem ser diferentes os homens, poderosos ou humildes, que praticam tal arte, que não os sustenta em tempos de paz. Nenhuma dessas duas ideias é compatível com a bondade humana, o poder manter-se com a arte da guerra todo o tempo conduz aos roubos, violências, aos assassínios que os soldados cometem contra amigos e inimigos; o não desejar a paz provoca os enganos que os chefes militares praticam contra aqueles a quem deviam servir, para prolongar a guerra. Se vem a paz, acontece muitas vezes que, privados de seus estipêndios e da vida licenciosa que levavam, os guerreiros se fazem aventureiros e saqueiam sem piedade. Não vos lembrais de que, havendo na Itália um grande número de soldados desocupados, terminada a guerra, se reuniram em bandos para saquear o país, sem que isso pudesse ser evitado? Não sabeis que, depois da primeira Guerra Púnica, os soldados cartagineses, chefiados por Mato e Spêndio, moveram contra Cartago uma guerra mais perigosa do que as hostilidades contra os romanos? Nos tempos dos nossos pais, para poder viver decentemente durante a paz, Francisco Sforza não só ludibriou os de Milão, a quem servia, mas tirou-lhes a liberdade, tornando-se príncipe de Milão. Da mesma forma agiram todos os outros soldados italianos que usaram a arte militar como profissão individual. E se não se tornaram duques de Milão, com suas malvadezas, maior razão para que sejam criticados, porque sem obter tal resultado causaram todos os mesmos males. O pai de Francisco Sforza obrigou a rainha Joana a lançar-se nos braços do rei de Ragona, abandonando-a de súbito entre os inimigos, desarmada, para satisfazer sua própria ambição e extorquir-lhe o reino. Com o mesmo comportamento, Braccio tentou ocupar Nápoles; se não tivesse sido derrotado e morto em Áquila, tê-lo-ia conseguido. Desordens como essas se devem exclusivamente a homens que usaram a arte militar em seu próprio benefício. Tendes um provérbio que dá força às minhas razões: "A guerra faz os ladrões; a paz os enforca". Com efeito, os que não sabem viver de outra forma não encontram quem os sustente e são desprovidos do valor necessário para suportar honradamente uma situação difícil, são forçados pela necessidade a agir mal, e a justiça por sua vez é forçada a exterminá-los. Cosme. Ouvindo tuas palavras, passei a achar que a arte militar vale bem pouco, eu que a supunha a melhor e mais honrosa de todas. Não ficarei satisfeito, portanto, enquanto não se desenvolver teu argumento, já que, a aceitar o que disseste, ficamos sem saber a que atribuir a glória de César, de Pompeu, de Cipião, de Marco Cláudio Marcelo e tantos outros generais romanos que a fama celebra como deuses. Fabrício. Não terminei ainda de expor tudo aquilo a que me propus, ou seja, duas coisas. Primeiro, que um homem reto não poderia empregar a arte militar em seu próprio benefício; segundo, que uma república ou um reino bem organizado não permitiria jamais que seus cidadãos ou súditos agissem dessa forma. Sobre a primeira já disse o que me veio à mente. Falta falar sobre a segunda, e neste ponto responderei à pergunta feita. Pompeu, César e quase todos os generais que teve Roma depois da última Guerra Púnica ganharam fama de homens bravos, não de homens retos. Mas os que os antecederam alcançaram a glória como cidadãos valentes e bons. Isso porque não faziam a guerra em seu próprio benefício, como aconteceu com os que citei em primeiro lugar. Enquanto a república se preservou sem mácula, nenhum cidadão importante pretendeu jamais prevalecer-se dela em tempo de paz, desrespeitando as leis, espoliando as províncias, usurpando a pátria como tirano, violentando-a de qualquer forma. E ninguém de condição mais baixa pensou jamais em repudiar seu juramento, bandeando-se com criminosos, desprezando o Senado ou envolvendo-se em qualquer aventura tirânica, para poder sustentar-se de modo permanente com sua habilitação militar. Os generais voltavam contentes com seus triunfos à vida civil; e os comandados depunham as armas com maior satisfação do que as empunhavam. Todos retomavam suas atividades normais, e nunca houve ninguém que esperasse se sustentar como militar graças a suas presas. No que respeita aos cidadãos de importância, pode-se dar um bom exemplo citando Régulo Atílio, comandante dos exércitos romanos na África que, depois de quase vencidos os cartagineses, solicitou licença ao Senado para voltar para casa, a fim de cuidar de suas terras, maltratadas pelos trabalhadores. É evidente que se Régulo tivesse pensado em utilizar a arte militar em beneficio próprio, tendo à disposição tantas províncias, não pediria licença para retornar às terras da família. Cada dia lhe traria renda maior do que o valor de tudo o que possuía. Mas a verdade é que os homens retos, que não utilizam a guerra em sua vantagem, só esperam dela fadigas, perigos e glória. Quando acumulam glória suficiente, preferem voltar para casa, e continuar a viver da sua profissão. Quanto aos soldados, embora tivessem a mesma disposição, parece que todos preferiam não prestar serviço militar; quando o prestavam, ficavam aspirando a ser licenciados. É o que se depreende de muitas observações, sabendo-se sobretudo que um dos primeiros privilégios concedidos ao cidadão romano era o de não ser obrigado a servir no exército contra a sua vontade. Vê-se, portanto, que, enquanto Roma se manteve bem organizada – isto é, até o tempo dos Gracos –, ninguém a serviu como militar mercenariamente. Os poucos que não agiram bem, neste particular, foram punidos com severidade. Todo Estado bem ordenado deseja que a arte da guerra seja, em tempos de paz, empregada apenas como exercício; e que, havendo hostilidades, seja usada para atender à necessidade, pela sua glória, ficando os poderes públicos dela incumbidos como exclusividade, como em Roma. O cidadão que a usa para qualquer outro fim não age retamente; e qualquer Estado que adote outro sistema não estará bem organizado. Cosme. Estou muito contente e satisfeito com tudo o que disseste até aqui. Agrada-me a conclusão que apontaste. Creio que no concernente às repúblicas ela é verdadeira; quanto aos reinos, porém, não sei, pois creio que os monarcas preferem cercar-se de militares profissionais. Fabrício. Ainda mais do que as repúblicas, devem os reinos evitar essas pessoas, que são os únicos corruptores do seu rei e de todos os ministros. Não aceito como exemplo nenhum reino atual, pois não são Estados bem organizados. Estes últimos só reconhecem a autoridade absoluta dos monarcas, no que se refere aos exércitos, porque só neles é necessário que haja decisões imediatas, e por isso mesmo uma única autoridade. Em tudo o mais, o soberano nada pode fazer sem conselho; e os conselheiros temem sempre que haja alguém a seu lado que em tempo de paz deseje a guerra, por não poder prescindir dela para viver. Nesse particular, porém, quero adotar uma perspectiva mais ampla, sem procurar um reino que fosse perfeito, mas buscando, ao contrário, algum semelhante aos que existem hoje. Neles, também o monarca deve temer os militares profissionais porque o cerne do exército é, sem dúvida, a infantaria. Assim, se o soberano não se organiza de modo que seus infantes estejam contentes em voltar para casa nos tempos de paz, retornando às suas atividades normais, necessariamente se arruinará. De fato, não há infantaria mais perigosa do que a composta de mercenários – o príncipe será obrigado a fazer continuamente a guerra, mantendo-os a soldo, ou correrá o risco de que o apeiem do trono. Ora, fazer continuamente a guerra não é possível; pagar sempre também não; de modo que não há como fugir ao risco de perder o reino. Como já disse, os meus romanos – enquanto agiram com sabedoria e retidão – nunca permitiram que os cidadãos adotassem a profissão militar, embora tivessem a possibilidade de sustentá-los em caráter permanente, devido ao estado de guerra contínua em que viviam. Para evitar o prejuízo que a dedicação perene à guerra poderia causar-lhes, variavam os homens, a serviço do exército, de modo que a cada quinze anos suas legiões eram renovadas. Empregavam homens na flor da idade, entre os 18 e os 35 anos, época em que as pernas, as mãos e os olhos estão bem coordenados. Não esperavam que lhes diminuísse a força, crescendo a malícia, como se passou a fazer nos tempos da corrupção. Livros Terceiro a Sexto. Como um exército é organizado para a luta. A ordem de batalha, o próprio combate. A artilharia. Cosme. Já que mudamos de tema, preferiria que mudássemos também de indagador, pois não quero passar por presunçoso, o que sempre critiquei nos outros. Abandono portanto a ditadura, cedendo essa posição a quem a quiser, dos amigos aqui presentes. Zenóbio. Ser-nos-ia grato que continuasses. Se não o desejas, diz pelo menos quem te deve suceder. Cosme. Prefiro dar esta incumbência a Fabrício. Fabrício. Aceito-a com prazer. E sugiro seguirmos o costume dos venezianos, que fale primeiro o mais jovem, pois como se trata de assunto de jovens, estou convencido de que estes podem refletir melhor sobre ele, como melhor o praticam. Cosme. Neste caso toca a ti, Luís Alamanni. Estou certo de que te agradará o novo interrogador, tanto quanto a mim satisfaz meu sucessor. Mas voltemos ao nosso assunto, sem perder mais tempo. Fabrício. Estou certo de que para demonstrar perfeitamente como se deve dispor um exército para a batalha será necessário narrar como o faziam gregos e romanos. Contudo, como isso vós próprios podereis ler e examinar nos escritores da Antiguidade, deixarei de mencionar muitos particulares, citando apenas o que me parece necessário imitar, se quisermos hoje aperfeiçoar um pouco nossos exércitos. Direi, portanto, como se deve dispor as tropas para uma batalha, como se devem empenhar os soldados no combate, como podem enganar o inimigo. O comandante de um exército que se prepara para a luta não pode fazer pior do que dispô-lo em uma única linha, de modo que a sorte da batalha seja decidida no primeiro assalto. Só fará isso quem tiver perdido o antigo conhecimento da disposição das forças em linha sucessivas, uma à frente da outra, que permite o recuo ordenado de cada uma. Sem tal dispositivo, não é possível socorrer os que estão na frente de combate, defendê-los ou substituí-los – o que os romanos sabiam fazer muito bem. Para que fique bem claro, lembrarei que as legiões romanas eram divididas em três grupos – os lanceiros, os principais e os triários. Os lanceiros ficavam à frente, em formação compacta. Atrás vinham os principais, em ordem menos compacta, Em seguida, os triários, de tal modo separados entre si que podiam acolher o recuo das duas primeiras formações. Além destes, havia também soldados armados com fundas e balestras, e outros, com armamento mais ligeiro, que não obedeciam à ordem descrita, mas ocupavam a vanguarda, entre os cavaleiros e os infantes. Os legionários de armamento ligeiro tomavam a iniciativa do combate; se venciam o inimigo, o que poucas vezes acontecia, estava decidida a batalha; em caso contrário, se retiravam pelos flancos do exército, ou pelos intervalos existentes entre as formações especialmente para esse fim, abandonando a luta. Depois da sua partida, os lanceiros se empenhavam contra o inimigo; caso levassem a pior, recuavam gradualmente, aproveitando os espaços vazios nas formações dos principais, aos quais se incorporavam, para a continuação da refrega. Caso os principais também fossem batidos, recuavam todos até atingir os triários. Reagrupados, com estes voltavam ao combate. Para uma nova derrota não havia remédio, pois não era mais possível refazer a formação. Os cavaleiros ficavam sempre nos lados do exército, como duas asas presas a um corpo; lutavam contra a cavalaria inimiga ou socorriam os infantes, conforme a necessidade. Esse dispositivo, que permite três vezes o reagrupamento frente ao inimigo, é quase impossível de superar, pois para tal é necessário que três vezes a sorte nos abandone e três vezes o adversário tenha a capacidade de nos derrotar. As falanges gregas não podiam refazer-se do mesmo modo; embora dispondo de muitas formações, e muitos chefes, constituíam um corpo – ou melhor, uma cabeça. A maneira como as formações se socorriam uma à outra não era o recuo de uma linha, absorvida pela linha posterior, como entre os romanos, mas a substituição de um homem por outro. Para esse fim, a falange era ordenada em filas de, digamos, cinquenta homens, apresentando uma frente ao inimigo. As seis primeiras filas podiam combater porque as lanças que usavam as sarissas, eram tão longas que as pontas das da sexta fila ultrapassavam a primeira. Se no combate caía algum soldado, substituía-o o que ocupava aquela posição na fila de trás; o posto vazio na segunda fila era preenchido pela terceira, e assim por diante. As filas posteriores supriam as perdas das dianteiras, de modo que estas permanecessem inteiras, restando lugares vazios só na última fila, já que não havia de onde supri-Ia. As baixas provocadas pelo inimigo nos soldados da frente consumiam as últimas filas, mas as primeiras se mantinham. Era mais fácil, portanto, dizimar do que romper uma falange, cujo corpo amplo a fazia menos móvel. A princípio os romanos empregaram as falanges, instruindo suas legiões de acordo com os princípios que as ordenavam. Mas tarde, o sistema não lhes agradou, e passaram a dividir as legiões em vários corpos – Cortes e Manípulos. Pensaram, com efeito, que teria mais vida o corpo de exército que tivesse mais unidades, que fosse composto de mais partes, cada uma das quais se mantivesse por si própria. Os batalhões de suíços usam hoje o método da falange, com suas formações inteiras e o mesmo processo de substituição das baixas. Quando se dispõem para o combate, os batalhões ficam um ao lado do outro. Se por acaso está um atrás e o outro à frente, quando este recua não pode ser recebido pelo primeiro. O modo como se socorrem mutuamente é o seguinte: se o batalhão que está à frente precisa de ajuda, o situado atrás, à direita, avança para socorrê-lo. Um terceiro batalhão é colocado mais atrás, à distância de um tiro de escopeta. Se os dois primeiros forem rechaçados, o terceiro pode avançar, havendo espaço suficiente para evitar o choque entre os que recuam e os que avançam. Um grande número de soldados não pode ser recebido, como aconteceria com uma unidade pequena; na legião romana, contudo, os corpos pequenos e distintos podiam dispor-se de tal modo que um recebia o outro, sendo fácil a mútua prestação de socorro. Os muitos exemplos de combate entre legiões romanas e falanges gregas demonstram que a ordem de batalha dos suíços não é tão adequada quanto a romana antiga. Naqueles combates as legiões sempre saíam vitoriosas, pois o tipo de armamento empregado e a disposição das tropas nas legiões eram mais eficazes do que a solidez das falanges. Servindo-me desses exemplos, pareceu-me que para montar um dispositivo de tropas é melhor seguir o método e usar as armas, em parte das falanges gregas e em parte das legiões romanas. Já disse que quero meu batalhão com dois mil lanceiros – a arma da falange macedônia – e três mil soldados com escudo e espada – a exemplo dos romanos. Divido-o em dez companhias, como os romanos dividiam suas legiões em dez coortes, dispondo soldados com armas ligeiras para a iniciativa do combate, como faziam eles. E como emprego uma mistura de armas das duas nações, disponho que cada companhia tenha cinco filas de lanceiros, colocadas à frente, e as restantes com escudos, para resistir ao embate da cavalaria inimiga, penetrando na sua formação a pé, a fim de enfrentar suas lanças no primeiro choque; quero que os lanceiros me bastem para sustentar a frente, e que os soldados venham com escudos para vencer a formação adversária. Observando as vantagens desse dispositivo, vereis que as armas empregadas cumprem bem sua missão. As lanças são úteis contra os cavaleiros e, quando usadas contra a infantaria, são úteis até que o combate aperte; depois, no corpo a corpo, tornam-se inúteis. Para evitar esse inconveniente, os suíços colocam uma fileira de alabardas depois de cada grupo de três fileiras de lanças, de modo a dar espaço aos lanceiros, o que, contudo, não é suficiente. Mas pondo os lanceiros à frente e os soldados com escudos atrás, pode-se resistir ao ataque de cavaleiros e, instigando a luta, molestar os infantes, abrindo claros entre eles. Quando o combate se faz cerrado, e as lanças se tornam inúteis, entram em cena os escudos e as espadas, que podem ser empregados em qualquer situação. Luís. Esperamos agora, com todo interesse, tua explicação sobre a ordem de batalha com tais armas e formações. Fabrício. É o que vou mostrar. Em um exército romano comum – o chamado exército consular – só havia duas legiões de cidadãos romanos com seiscentos cavaleiros e cerca de onze mil infantes. Além desses, havia outros tantos auxiliares, soldados de infantaria e a cavalo enviados por Estados amigos e confederados, divididos em duas partes, denominadas ala direita e ala esquerda. Os romanos jamais permitiam que o número desses infantes auxiliares ultrapassasse o das suas legiões; ficavam contentes, contudo, se os cavaleiros fossem mais numerosos. Com tal exército, de 22 mil infantes e cerca de 2 mil cavaleiros, um cônsul se engajava em qualquer empresa. Quando era necessário opor-se a forças mais importantes, atuavam dois exércitos, chefiados por dois Cônsules. Notai ainda que, ordinariamente, em todos os três tipos de ação dos exércitos – a marcha, o acampamento e o combate – as legiões iam no meio; os romanos mantinham a unidade do elemento mais confiável, como veremos ao examinar sua prática no que respeita àquelas três ações. Dada a proximidade dos legionários, os infantes auxiliares eram tão úteis quanto eles e igualmente disciplinados; entravam na ordem de batalha do mesmo modo que os legionários. Quem sabe como os romanos dispunham uma legião para o combate, dentro do exército, sabe como dispunham todo o exército, em três fileiras, cada uma das quais podia receber as outras duas. Assim, para montar um dispositivo semelhante ao dos romanos, precisamos usar dois batalhões (como eles usavam duas legiões), dispondo-os do mesmo modo que todo o exército – aumentando-se o número de soldados só se fará ampliar a força global, sem alterar suas partes. Será desnecessário relembrar aqui o número de infantes em um batalhão, que cada batalhão dispõe de dez companhias, as armas empregadas e seus comandantes – lanceiros, soldados com armamento ligeiro e auxiliares. Há pouco falei sobre isso claramente, sugerindo guardá-lo na memória por ser necessário para compreender o resto da ordem de batalha. Prosseguirei, portanto, sem mais repetições. As dez companhias de um batalhão são colocadas no flanco esquerdo; as dez do outro, no direito. As da esquerda são dispostas da seguinte maneira: cinco companhias à frente, de uma ala à outra, de modo que haja entre elas um espaço de quatro braços – ocupando área de cento e quarenta e um braços por quarenta. Atrás ficam três outras companhias, separadas das primeiras por quarenta braços, em linha reta. Duas delas dispostas nas extremidades das cinco, por trás, e a terceira no espaço intermediário. Dessa forma, as três companhias posteriores ocupam o mesmo espaço das cinco dianteiras – enquanto as cinco mantém entre si uma distância de quatro braços, as três estão separadas por 33. Quarenta braços atrás ficam as duas últimas companhias, cada uma em uma extremidade, de modo que o hiato entre elas seja de 91 braços. O conjunto dessas companhias ocupará 141 braços por 200. Os lanceiros auxiliares ficarão dispostos ao longo dos flancos das companhias do lado esquerdo, a 20 braços formado 143 fileiras, a sete por fileira, abrangendo com seu comprimento todo o lado esquerdo das dez companhias, ordenadas na forma indicada. Delas destacaria 40 fileiras para proteger as viaturas e os grupos desarmados, na parte traseira do exército, distribuindo apropriadamente os chefes de grupos e os centuriões. Colocaria um dos três condestáveis na frente do exército, o outro no meio, o terceiro na última fila, fazendo este o papel de responsável pela retaguarda. Para continuar a falar sobre a frente do dispositivo, colocaria perto dos lanceiros auxiliares os outros auxiliares com armamento ligeiro – cujo número já sabeis ser 500 –, dando-lhes um espaço de quarenta braços. A seu lado, também do lado esquerdo, os cavaleiros pesados, com um espaço de 150 braços. Em seguida, os cavaleiros ligeiros, ocupando igual espaço. Os infantes com armamento ligeiro eu os distribuiria à volta das respectivas companhias, nos espaços vazios entre elas, atuando como elementos de ligação, se não os subordinasse aos lanceiros auxiliares – o que dependeria das circunstâncias. O comandante-em-chefe de todo o batalhão ficaria no espaço entre a primeira e a segunda parte do dispositivo, ou então à frente e naquele espaço existente entre a última companhia das cinco primeiras e os lanceiros auxiliares (conforme o que fosse mais conveniente), guardado por 30 ou 40 homens escolhidos, que pudessem, pela sua inteligência, executar bem as tarefas e, pelo seu vigor, resistir a um ataque. Ficariam ali também os corneteiros e os guarda-bandeiras. Essa seria a disposição das forças no lado esquerdo do batalhão, ou seja, da metade do exército, tendo 511 braços de largura e o comprimento que indiquei, sem levar em conta o espaço relativo àquela parte dos lanceiros auxiliares que estivessem protegendo o pessoal desarmado, ou seja, cerca de cem braços. O outro batalhão ficaria disposto do mesmo modo, no lado direito, havendo entre os dois batalhões um espaço de 30 braços. À frente desse espaço, colocaria algumas carretas de artilharia e, atrás, o general comandante de todo o exército, em redor do qual, com corneteiros e a bandeira principal, pelo menos 200 homens escolhidos, infantes em sua maioria, entre os quais uma dezena ou mais, dos melhores habilitados a executar qualquer missão a pé ou a cavalo, conforme a necessidade. Quanto à artilharia bastam dez canhões, para os assaltos, de menos de 50 libras – que em campanha empregaria mais para a defesa dos acampamentos do que para o ataque. Todos os outros canhões deveriam ser de dez, em vez de 15 libras, e dispostos à frente de todo o exército, se não me fosse possível coloca-los em lugar seguro, nos flancos, para não serem atacados pelo inimigo. Com o dispositivo que descrevi, um exército pode combater à maneira das falanges e das legiões, ou seja, à frente os lanceiros, com todos os infantes distribuídos em fileiras, de forma que, empenhando-se contra o adversário e sustentando seu empate, possam restaurar as baixas das primeiras filas com os homens das filas de trás. Por outro lado, se precisarem recuar, poderão fazê-lo penetrando nos intervalos das companhias da segunda ordem, atrás, incorporando-se a elas para, reagrupados, retomar ao combate e sustentar o ataque. Se não foi suficiente, poderão retirar-se do mesmo modo uma segunda vez, retomando ainda ao combate. Esse dispositivo imita a ordem de batalha dos gregos e dos romanos. Não poderia haver exército mais forte do que o descrito. De fato, as duas alas estão bem munidas de soldados e oficiais. Há só um ponto fraco, que é a retaguarda, a qual contudo tem seus flancos protegidos pelos lanceiros auxiliares. Não há posição que o inimigo possa assaltar sem encontrar resistência. A parte traseira não será atacada, já que não há inimigo com tanta força que lhe permita um assalto igualmente por todos os lados. Se houvesse, não seria o caso de enfrentá-la. Se um adversário for tão bem ordenado como nosso exército, e mais forte, mas dilui sua força para poder assaltar ao mesmo tempo vários pontos, se tiver sua frente rompida em algum lugar, tudo vai mal. Com respeito à cavalaria inimiga, podemos ficar seguros, mesmo quando for muito mais numerosa, porque os lanceiros dispostos à volta do exército poderão suportar qualquer ataque, mesmo que nossos cavaleiros sejam derrotados. Além disso, os oficiais permanecem de lado, de modo que possam facilmente comandar e receber ordens. Os espaços entre uma companhia e outra, e entre uma fileira e outra, servem não só para se acolherem mutuamente, mas também para o deslocamento dos soldados em missões recebidas do comandante. Como já disse, os romanos tinham exércitos de cerca de 24 mil homens, e assim deve ser o nosso exército. E como os outros soldados imitam o modo de combater e a ordem de batalha das legiões, assim também os soldados acrescentados aos dois batalhões as tomariam por modelo. Nesse ponto, será fácil imitar nosso modelo; para acrescentar dois batalhões ao exército, ou o número correspondente de soldados, o que se deve fazer é bem simples: onde sugeri dez companhias, no flanco esquerdo, poríamos 20, estendendo ou engrossando as fileiras conforme as conveniências do lugar ou do combate. Luís. Na verdade, posso tão bem imaginar esse exército que consigo vê-lo, e ardo de desejo de presenciar seu combate. Não desejaria por nada deste mundo que fosses um Fábio Máximo, preferindo fazer o inimigo esperar e postergando a batalha. Diria de ti coisas piores do que as que os romanos diziam daquele general. Fabrício. De fato. Não ouvis a artilharia? A nossa já disparou contra o inimigo, mas pouco o perturbou. Os soldados da vanguarda, com armamento leve, deixam suas posições juntos com a cavalaria ligeira, dispersos, assaltando o inimigo com a maior fúria e gritaria. A artilharia adversária já disparou uma vez, descarga que passou sobre a cabeça dos nossos infantes sem lhes causar o menor mal. E antes que possa dar uma segunda descarga, nossos infantes e cavaleiros já a dominam, forçando os inimigos a avançar para defendê-la. Os canhões dos dois exércitos já não podem ser usados. Vede o valor dos nossos combatentes, a disciplina que demonstram, pelo exercício contínuo que lhes inculcou tal hábito e a confiança que têm no seu exército. Este avança em ordem, a pé e a cavalo, para engajar-se com o inimigo. Nossa artilharia retirou-se pelo espaço por onde saíram os soldados de armamento ligeiro, evacuando o terreno depois da salva. O comandante encoraja os soldados, apontando-lhes o caminho da vitória certa. A infantaria e a cavalaria ligeiras se afastam, voltando pelos flancos do exército, atentas aos danos que podem causar ao adversário, lateralmente. Os dois exércitos se enfrentam. Corajosamente, os nossos resistem, em silêncio, ao embate do inimigo. O comandante arderia aos cavaleiros que se limitem a sustentar o assalto do adversário, mantendo sua posição ao lado da infantaria. Nossa cavalaria ligeira ataca um grupo de infantes inimigos, armados com escopetas, que pretendiam assaltar o flanco do nosso exército. Os cavaleiros inimigos correm a ajudá-los mas, envoltos por cavalos dos dois lados, os escopeteiros não conseguem recuar até suas companhias. Nossos lanceiros avançam com grande ímpeto. Os infantes estão já tão próximos uns dos outros que as lanças não podem mais ser manejadas. Assim, de acordo com a disciplina que aprendemos, nossos lanceiros se retiram gradualmente por entre os escudeiros. Enquanto isso, um grupo numeroso da cavalaria pesada inimiga teve um engajamento com nossos cavaleiros do lado esquerdo; seguindo a mesma disciplina, os nossos se retiram sob a proteção dos lanceiros auxiliares, com cujo auxílio se reagrupam, voltando para atacar o inimigo, que extermina em boa parte. Enquanto isso, todos os lanceiros ordinários das primeiras companhias se ocultam entre as fileiras dos escudeiros, que matam os soldados inimigos com segurança e coragem, tranquilamente. A densidade do combate é tal que mal se pode empregar a espada. Morrem os inimigos porque, armados com lança e espada, a primeira é inútil por muito longa, e a segunda não é suficiente para fazer face ao melhor armamento do adversário. Por isso caem, mortos ou feridos, ou fogem, à direita e à esquerda. Eis que a vitória é nossa. Não vencemos a batalha facilmente? Na realidade a venceríamos ainda mais facilmente. E observai que foi desnecessário utilizar a segunda formação e a terceira; bastou a primeira para superar o adversário. Eis tudo o que tenho a vos dizer sobre esse ponto, se não houver alguma dúvida da vossa parte. Luís. Venceste a batalha com tal ímpeto que me deixaste admirado, estupefato. Não sei portanto se tenho alguma dúvida no espírito. Contudo, embora confiante na tua sapiência, criarei ânimo para dizer o que desejo. Em primeiro lugar, por que a artilharia só disparou uma única vez? Por que logo a fizeste recuar para dentro da formação, sem voltar a mencioná-la? Parece-me também que tua suposição é de que os canhões inimigos atiram alto demais, defendendo-se teu exército em consequência. Pode muito bem ser assim. Contudo, se o canhoneiro atingisse as fileiras (o que, penso, acontece muitas vezes), que remédio lhe darias? E já que comecei falando da artilharia, será melhor que exponha todas as minhas indagações sobre o tema, para não tornar a ele. Ouvi muitas pessoas desprezarem as armas e os dispositivos dos antigos por se tornarem inúteis diante da artilharia; os canhões rompem a ordem, e permitem a passagem dos infantes. Acham essas pessoas que é uma loucura adotar uma ordem que não é possível sustentar, e gastar esforços com armas que não nos podem defender. Fabrício. Por tocar muitos pontos, a pergunta exige uma longa resposta. É verdade que fiz com que a artilharia só disparasse uma salva, e mesmo com respeito a essa descarga tenho dúvida. A razão é que o mais importante para um exército é evitar ser atingido do que atingir o inimigo. Ora, para não ser atingido pelos canhões, deve-se estar fora do seu alcance ou então detrás de um muro ou dentro de uma trincheira. Não há nada mais que proteja dela – e é necessário que o muro ou a trincheira sejam fortes. Mas os comandantes que se engajam em uma batalha não podem ficar fora do alcance dos canhões, nem se abrigar detrás de um muro, ou em uma trincheira, lhes convindo, portanto, já que não podem encontrar defesa segura, achar uma maneira de serem menos atingidos – essa maneira consiste em enfrentá-la depressa, oferecendo alvo disperso, em vez de fazê-lo devagar, de forma compacta. Com a rapidez não se permite uma segunda salva, e a dispersão dos homens diminui o número de baixas. É o que não pode fazer um grupo de homens ordenado, pois se marcha célere se desordena, e se se dispersa não dá ao inimigo o trabalho de desfazê-lo, porque se desfaz por si mesmo. Organizei o exército de modo tal que pudesse fazer as duas coisas. Postando nas suas alas mil soldados com armamento ligeiro, ordenei-lhes que, logo depois da salva dos nossos canhões, saíssem juntamente com a cavalaria ligeira a ocupar as posições de artilharia adversária. Determinei uma só descarga para nossa artilharia, a fim de não dar tempo aos canhões inimigos – não seria possível ganhar espaço e ao mesmo tempo roubá-lo ao adversário. Por isso não permiti uma segunda descarga, e estive quase a ponto de não permitir sequer a primeira, de modo que o inimigo também não pudesse disparar uma vez. Para inutilizar a artilharia inimiga é necessário assaltá-la. Se os inimigos a abandonam, podemos ocupá-la; se querem defendê-la, precisam deixá-la atrás; assim, ocupada pelos inimigos ou por amigos, não pode disparar. Creio que as razões expostas são suficientes, sendo desnecessário aduzir exemplos. Contudo, podendo exemplificar com os antigos, prefiro fazê-lo. Ao entrar em combate com os partas, cujo ponto forte eram os arqueiros, Ventídio permitiu que chegassem quase até seu acampamento antes de deslocar o exército, o que só fez para poder ocupar rapidamente o terreno, impedindo-lhes descarregar suas armas. César conta que em certa batalha, na Gália, foi assaltado tão ferozmente que os soldados não tiveram tempo de lançar seus dardos, como era o costume romano. Vê-se, portanto, que para proteger-nos de uma arma de lançamento ou arremesso não há outro remédio senão ocupar rapidamente o terreno. Há outra razão pela qual prefiro não empregar a artilharia, que talvez vos faça rir, mas que não creio desprezível. Nada causa maior confusão em um exército do que impedir-lhe a vista do que está acontecendo. Muitos exércitos de primeira qualidade foram batidos por não poderem ver o que se passava, devido à poeira ou ao sol. E não há nada que impeça mais a visão do que a fumaça produzida pelos canhões ao disparar. Acharia mais prudente deixar que o inimigo se cegasse a si próprio do que tentar abordá-lo estando nós próprios cegos pela fumaça. Por isso não usaria os canhões, ou – se a primeira alternativa não for aprovada, devido à reputação dos artilheiros – os poria nos flancos do exército, de modo que sua fumaça não perturbasse a visão da frente, que é sua parte mais importante. Que impedir a visão ao inimigo é útil, nos demonstra, por exemplo, Epaminondas; para isso, fez com que sua cavalaria ligeira galopasse à frente do exército inimigo, levantando nuvens de pó, o que lhe valeu a vitória. Quanto à impressão de que, na hipotética batalha narrada, guiei os tiros dos canhões inimigos fazendo-os passar por cima da cabeça dos infantes, responderei que é o que ocorre com maior frequência. A infantaria é baixa e os canhões são tão difíceis de manejar que uma pequena elevação da mira faz com que os tiros passem por cima dos infantes. Se são abaixados, os tiros não vão longe. A irregularidade do terreno contribui também para salvar os infantes. Qualquer vegetação ou relevo que se interpõe entre canhões e soldados impede o tiro. Quanto aos cavaleiros, principalmente a cavalaria pesada, que se desloca com menor dispersão do que a cavalaria ligeira, e por ser mais alta oferece melhor alvo, pode-se admitir que a artilharia a mantenha na retaguarda. Mas a verdade é que as escopetas e os canhões ligeiros são mais nocivos do que a artilharia pesada, sendo conveniente, no caso desta, o assalto imediato. Nesse assalto podem morrer alguns homens, mas um bom comandante e um bom exército não devem temer um dano limitado, mas somente um dano geral, imitando assim os suíços, que nunca se esquivam da luta espantados pela artilharia; ao contrário, punem com a pena capital aqueles que com medo dos canhões abandonam a formação ou demonstram algum sinal de pânico. Meus canhões se retiraram para dentro da formação, depois de disparar, a fim de deixar o campo livre às companhias. Iniciada a refrega, não mais os utilizei. Disseste que muitos reputam inúteis as armas e as formações usadas pelos antigos, diante da fúria dos canhões. Essa observação parece implicar que os modernos encontraram dispositivos e armas úteis contra a artilharia. Se é assim, pediria que me fossem indicados, porque até o momento jamais tive notícia e nenhum, nem creio que possam existir. Gostaria que aquelas pessoas me explicassem por que, em nossos dias, os infantes trazem um peitoral ou colete de ferro, e os cavaleiros vão todos revestidos de armadura. Se acreditam que as armaduras antigas são inúteis, com relação aos canhões, deveriam evitá-las. Gostaria de ver explicado também porque os suíços, seguindo o exemplo dos antigos, usam batalhões cerrados, de seis ou oito mil homens, e por que os outros os imitam, embora tal formação implique, com relação à artilharia, o mesmo perigo que padeceriam os que quisessem nisso imitar a Antiguidade. Penso que não saberiam o que responder. Mas, se se fizesse a pergunta aos soldados com algum juízo, responderiam, antes de mais nada, que usam armadura porque embora não os proteja dos canhões, protege-os das lanças, espadas, pedras e outras armas do inimigo. Responderiam também que marcham juntos, como os suíços, para poder com mais facilidade atacar os infantes, sustentar o embate dos cavaleiros e tornar mais difícil aos inimigos romper suas linhas. Vê-se, portanto, que os soldados têm muitas outras coisas a temer além da artilharia, das quais se defendem com as armaduras e sua formação. Segue-se que quanto mais bem protegidos com armaduras os soldados e quanto mais cerrada e forte sua formação, maior a segurança de que gozam. Assim, quem defende a opinião citada ou não sabe muito ou pensou muito pouco sobre o assumo. Com efeito, se uma parte mínima do antigo armamento, que é a lança, e uma porção mínima da sua formação, representada pelos batalhões dos suíços, são de tal modo benéficas, e dão a nossos exércitos tal força, por que não podemos aceitar que o mais que abandonamos não seria útil? Por outro lado, se aceitamos as formações compactas, como a dos suíços, sem atentar para a artilharia, que outros tipos de formação podem temer mais os canhões do inimigo? Nenhum dispositivo pode ser mais vulnerável a ela do que os que implicam a formação compacta dos combatentes. Além disso, se não me preocupa a artilharia, se ocupa um terreno onde ela tem maior segurança (não podendo assaltá-la porque está protegida por muros, ficando limitado a batê-la com meus próprios canhões, de forma que ela pode disparar repetidamente), por que deveria temê-la em campo aberto, quando posso ocupar de imediato a sua posição? Concluo, portanto, assim: em minha opinião a artilharia não impossibilita o emprego dos métodos antigos, nem a prática do antigo valor. Se já não vos tivesse falado sobre o assunto, estender-me-ia mais longamente; mas quero voltar àquilo mesmo que disse. Luís. Empregarias invariavelmente esse mesmo dispositivo como ordem de batalha? Fabrício. Não, em absoluto. É preciso variar a forma do exército de acordo com a qualidade do terreno e com o número do inimigo. É o que mostrarei com alguns exemplos, antes de explicá-lo melhor. O dispositivo que apresentei não é apenas melhor do que os outros, o que é verdade, mas serve como um padrão, uma ordem para reconhecer as outras formações possíveis. Toda ciência tem sua generalidade, na qual se baseia em boa parte. Porém, uma coisa quero lembrar: que nunca se deve dispor um exército de modo que quem esteja lutando à frente não possa ser socorrido pelos que estão atrás. Quem comete esse erro inutiliza a maior parte da sua formação, e se encontra inimigo com algum valor não tem condições de alcançar a vitória. Livros Sétimos e seguintes. As regras gerais e as conclusões. Fabrício. Sei que vos disse muitas coisas que vós mesmos, sem ajuda, teríeis podido perceber e examinar. Fi-lo contudo, como ainda hoje vos disse, para mostrar melhor o valor desse exercício; e também para satisfazer aqueles que não tivessem a oportunidade de ouvi-Ias, como vós. Creio que nada me resta senão dar-vos algumas regras gerais, que achareis muito comuns, e que são as seguintes. O que favorece o inimigo me prejudica; o que me favorece prejudica o inimigo. Quem na guerra observar com maior vigilância as intenções do inimigo e mais exercitar seu exército correrá menos perigos, e terá maior probabilidade de vitória. Não devemos jamais conduzir os soldados à batalha se antes não nos certificamos de que seu ânimo é disciplinado, e isento de medo. Não se deve combater senão quando se vê que esperam a vitória. É melhor vencer o inimigo com a fome do que com o ferro, pois na vitória obtida com este vale muito mais a sorte do que o valor. Nenhum método é melhor do que aquele que o inimigo não percebe até o adotarmos. Na guerra, reconhecer a oportunidade e aproveitá-la vale mais do que qualquer outra coisa. A natureza não faz muitos homens bravos; a aplicação e o exercício, Sim. Na guerra, a disciplina pode mais que o ímpeto. Quanto acolhemos alguns inimigos, que se incorporam ao nosso exército, isso representará sempre uma grande aquisição, desde que sejam leais. Com efeito, as forças do adversário diminuem mais com a perda dos que fogem do que com as baixas em combate, embora a qualificação de “desertores” seja suspeita a seus novos companheiros, e odiosa aos antigos. Em uma ordem de batalha é melhor prover reforços suficientes atrás da primeira linha do que uma frente mais ampla, com soldados dispersos. Dificilmente será vencido quem souber avaliar suas forças e as do inimigo. Mais vale a coragem dos soldados do que a multidão; e algumas vezes mais vale a situação do que o valor. As coisas novas e súbitas espantam os exércitos; o que é costumeiro e lento é pouco estimado pelos soldados; deve-se obrigar o exército a experimentar e avaliar, com combates limitados, um inimigo novo, antes que se engaje em batalha contra ele. Quem persegue em desordem o inimigo, depois de vencê-lo, quer passar de vitorioso a derrotado. Quem não prepara os alimentos necessários para subsistir é vencido sem o emprego de armas. Quem confia mais nos cavaleiros do que nos infantes, ou mais nos infantes do que nos cavaleiros, que se acomode com a situação. Quando se quer ver de dia se há algum espião no campo, que todos se recolham a seus alojamentos. Muda de decisão quando perceberes que o inimigo a descobriu. Convém nos aconselharmos com muitos a respeito das coisas que devemos fazer; depois, devemos confiar a poucos aquilo que queremos fazer. Mantemos os soldados nos quartéis, com o medo e com penalidades; na guerra, nós os conduzimos com a esperança e prêmios. Os bons comandantes nunca se empenham em uma batalha se a necessidade não os impele, ou a oportunidade não os chama. Cuidemos que nossos inimigos não saibam como queremos dispor nosso exército para a batalha; e qualquer que seja sua disposição, que as primeiras unidades possam ser acolhidas pelas segundas e pelas terceiras. Em combate, nunca se deve utilizar uma companhia para outro fim que não foi o estabelecido, a fim de evitar a desordem. Os acidentes repentinos são resolvidos com dificuldade; os que foram previstos, facilmente. Os homens, o ferro, o dinheiro e o pão constituem os pontos nevrálgicos da guerra, destes, os mais necessários são os dois primeiros, porque os homens e o ferro produzem pão e dinheiro, mas pão e dinheiro não fazem os homens e o ferro. O rico desarmado é o prêmio do soldado pobre. Habitua os soldados a desprezar a vida delicada e as vestimentas luxuosas. É o que me ocorre recordar-vos, de um modo geral. Sei que seria possível dizer muitas outras coisas nesta minha exposição, como, por exemplo, como e em quantas formas os antigos dispunham as colunas de soldados, como estes se vestiam e como se conduziam sob muitos outros aspectos. Poderia acrescentar vários pormenores que não julguei necessário narrar, ou porque vós mesmos podeis descobri-los ou porque minha intenção não foi propriamente mostrar como estavam constituídos os antigos exércitos, mas sim de que modo se poderia hoje organizar um exército melhor do que é costume. Por isso não me pareceu que devesse falar sobre as coisas antigas mais do que julguei necessário para esta introdução. Sei que deveria estender-me mais sobre a arte da cavalaria e falar em seguida da guerra naval, porque quem conhece o assunto diz que a guerra é um exercício de mar e de terra, a pé e a cavalo. Não teria a pretensão de falar-vos sobre a guerra naval, por falta de conhecimento; deixarei que sobre isso falem genoveses e venezianos, que no passado realizaram grandes ações nesse campo. A propósito da cavalaria não quero dizer nada mais além do que já disse, sendo esta, como notei, uma parte menos corrompida. Uma vez bem ordenada a infantaria, que é o cerne do exército, toma-se necessário ter bons cavaleiros. Só lembraria, a quem fosse responsável pela organização militar da sua cidade, duas medidas para desenvolver-lhe a cavalaria. A primeira, distribuir cavalos de boa raça pelo seu território, incentivando o cruzamento de poldros, como aqui se faz com vitelos e mulos. E para que houvesse compradores, proibiria de ter uma mula a quem não tivesse cavalo, de modo que quem só quisesse ter uma montaria fosse obrigado a manter um cavalo; mais ainda, proibiria de vestir seda quem não tivesse cavalo. Entendo que assim procedeu já um príncipe, em nosso tempo, assegurando à sua cidade, em poucos anos, uma excelente cavalaria. Quanto a tudo mais relativo a cavalos, remete-vos ao que hoje vos disse, e ao que recomenda o costume. Talvez desejásseis ouvir algo sobre as qualidades necessárias para um comandante. Responderei de modo muito sumário, dizendo que não escolheria general que não soubesse executar todas as coisas que aqui consideramos, as quais porém não seriam suficientes, se não soubesse descobri-Ias por si mesmo. Com efeito, nunca ninguém foi grande na sua profissão sem criatividade. E se invenção traz honra em outros campos, neste vem antes de tudo o mais. Vê-se sempre qualquer inovação, ainda que modesta, celebrada pelos escritores; assim os que elogiam Alexandre Magno porque, para que os movimentos da sua tropa fossem mais discretos, não dava ordens por meio de trombetas, porém com um chapéu erguido na ponta de uma lança. Alexandre é louvado também por ter ordenado aos soldados que, no embate contra o inimigo, usando as lanças, se ajoelhassem com a perna esquerda, de modo a resistir melhor ao seu ímpeto. Como esse recurso lhe garantiu a vitória, valeu-lhe tal louvor que todas as estátuas erigidas em sua honra imitavam aquela postura. Como é hora de terminar esta exposição, quero voltar ao assunto principal, escapando assim à pena que nesta cidade se costuma aplicar aos que divagam. Lembra-te, Cosme, de que me disseste não entender por que, sendo eu admirador da Antiguidade, crítico dos que não a imitam nas coisas sérias, não a imitava na arte militar à qual me dediquei. Respondi dizendo que, quando os homens desejam fazer alguma coisa, convém que primeiramente se preparem, para depois praticá-la, na ocasião oportuna. Vós, que me ouvistes por tanto tempo falar sobre o assunto, deveis julgar se saberia ou não ordenar um exército segundo o modelo antigo. Tivestes a oportunidade de ver por quanto tempo me dediquei ao tema e creio que podeis imaginar o desejo que sinto de realizar tal desejo. Podeis também facilmente conjecturar se nunca pude fazê-lo, ou se nunca me foi dada essa oportunidade. Para dar-vos maior certeza e também para melhor justificar-me, acrescentarei as razões disso, observando o que prometi demonstrar-vos: as dificuldades e facilidade atuais de tais imitações. Afirmo que para um príncipe que possa recrutar pelo menos quinze ou vinte mil jovens, nada do que se faz atualmente é mais fácil de adaptar ao modelo antigo do que a arte militar. Por outro lado, nada será mais difícil para quem não possua tal capacidade. A fim de que possais compreendê-lo melhor, será preciso lembrar que os grandes generais pertencem a dois tipos: um que com soldados já bem organizados e de boa disciplina, realizaram grandes feitos – como a maioria dos romanos e de outros que já comandaram exércitos, cujo único esforço consistiu em mantê-los em boa ordem, conduzindo-os com segurança, e outro que tiveram não só de vencer o inimigo mas, antes disso, precisaram adestrar e bem ordenar seus homens. Estes últimos merecem, sem dúvida, maiores louvores que os primeiros, que conduziram com maestria exércitos antigos e eficazes. Entre eles citaria Pelópidas e Epaminondas, Tulo Hostílio, Felipe da Macedônia (pai de Alexandre), Ciro, rei dos persas, e o romano Graco. Todos tiveram primeiro de criar um exército, para depois comandá-lo. E puderam todos fazê-lo, pela sua sabedoria ou por terem súditos capazes de ser bem treinados. Mas nenhum o teria conseguido, por maior que fosse seu valor, em um país estrangeiro, contando só com homens corrompidos, sem o hábito da obediência honesta. Não basta, portanto, na Itália, saber comandar um exército; é necessário, em primeiro lugar, saber criá-lo e depois saber conduzi-lo. Para isso, são precisos príncipes que disponham de Estados de extensão suficiente e súditos numerosos. O que desde logo me exclui, pois só comandei e só posso comandar exércitos estrangeiros, compostos de soldados leais a outrem. Sabereis discernir se é ou não possível introduzir em exércitos desse tipo as ideias que expus aqui. Como poderia conseguir que os soldados com que tenho lidado levassem mais armas do que as habituais, e além delas uma enxada, e provisões para dois ou três dias? Como os obrigaria a trabalhar com a enxada ou a exercitar-se diariamente muitas horas, de modo a melhorar seu desempenho quando necessário? Como fazê-los abster-se das brincadeiras, do comportamento lascivo, insolente ou bestial que é seu dia-a-dia? Como impor-lhes tão grande disciplina, obediência e respeito que deixassem intacta uma macieira carregada de fruto, no meio do acampamento, como se lê que acontecia muitas vezes com os exércitos antigos? Que poderia prometer-lhes para que me amassem ou temessem, tratando-me com reverência, se, uma vez terminada a guerra, nada mais têm a ver comigo? De que coisa se envergonhariam, se nasceram e foram criados sem saber o que é vergonha? Por que me deveriam respeitar, se não me conhecem? Por que deus, ou santos, eu os faria jurar? Pelo deus que adoram ou por aquele contra o qual blasfemam? Não sei a qual adoram, mas sei bem que blasfemam contra todos. Como esperar que cumpram promessas feitas a quem desprezam todo o tempo? Como podem ter reverência para com os homens aqueles que desprezam o próprio Deus? Qual seria, portanto, a melhor forma de resolver este problema? Se me dissésseis que os espanhóis e os suíços são bons soldados, admitiria que são muito melhores do que os italianos. Contudo, à luz do que vos expus e do seu desempenho, vereis que lhes faltam muitas qualidades para que possam atingir a perfeição dos antigos. Os suíços se tornaram bons soldados pelas condições naturais em que vivem, conforme vos disse; os espanhóis, por necessidade – lutando em uma província estrangeira, diante da alternativa de vencer ou morrer, já que a fuga não lhes parece uma solução, tornaram-se eficazes na arte militar. Mas é uma eficácia que tem seus defeitos, e que se limita ao costume de esperar o inimigo até a ponta das suas lanças, ou da espada. E não se poderia ensinar-lhes o que lhes falta, especialmente se não fosse na sua língua. Voltemos, porém, aos italianos que, por não terem príncipes sábios, não adotaram nenhuma ordem efetiva e, por não terem sido obrigados pela mesma necessidade que se impôs aos espanhóis, não se desenvolveram como soldados por si mesmos, sendo hoje criticados em todo o mundo. Contudo, não são culpados os povos, mas seus dirigentes, castigados e que pagam um justo preço pela sua ignorância, perdendo ignominiosamente o poder, sem dar exemplo de valor. Quereis saber se o que digo é verdade? Considerai quantas guerras houve na Itália, da época do Rei Carlos até hoje. Como as guerras costumam tornar os homens belicosos e reputados, quanto maiores e mais ferozes foram mais fizeram diminuir a reputação dos seus soldados e generais. É bom que se convenha que os sistemas que se usavam não eram bons, e ainda não o são; e dos novos ninguém soube aproveitá-los. Não se deve crer jamais que se possa aumentar o prestígio das armas italianas senão pelo meio que apontei, empregado pelos soberanos de Estados poderosos da Itália. É algo que se pode fazer com homens simples, íntegros, não com os que são malvados, mal orientados, ou com estrangeiros. Não se encontrará um bom escultor que pense fazer uma bela estátua com um pedaço de mármore inadequado, mas sim com uma peça íntegra. Antes de sentirem os golpes das guerras ultramontanas, nossos príncipes acreditavam que lhes bastasse saber dar aos problemas respostas sagazes, dentro dos seus gabinetes; escrever uma bela carta, demonstrar presteza e argúcia nas palavras, saber urdir uma fraude, enfeitar-se com ouro e pedrarias, comer e dormir com um esplendor maior do que o dos outros, cercar-se de bastante lascívia, governar seus súditos com soberba e avareza, deixar-se corromper pelo ócio, distribuir graciosamente patentes militares, desprezar quem lhes recomendasse um caminho louvável, dar a suas próprias palavras o valor de resposta oracular. Mesquinhos, não percebiam que assim se transformavam em presa fácil de quem quer que os assaltasse. Isso originou os grandes sustos do ano de 1494, as fugas inesperadas e as perdas espantosas. E assim os três Estados mais poderosos da Itália foram várias vezes saqueados e destruídos. O pior, porém, é que os Estados remanescentes continuam a viver na mesma desordem, e a cometer o mesmo erro, sem levar em conta que antigamente os que queriam manter seu poder faziam e mandavam fazer tudo o que já indiquei, procurando preparar o corpo para resistir aos incômodos e o espírito para não temer os perigos. Por isso César, Alexandre e todos os grandes homens e príncipes ilustres eram os primeiros entre os combatentes; andavam a pé, armados, e se perdiam o poder preferiam perder também a vida. Viviam desse modo valorosamente, e assim morriam. Se se pode acusá-los, ou a alguns deles, de excessiva ambição não se encontrará como acusá-los de alguma fraqueza, de algo que debilite ou imbecilize. Se esses príncipes lessem estas coisas, e nelas acreditassem, é impossível que não mudassem seu estilo de vida, e que não mudasse a sorte dos seus Estados. No princípio desta conversa, criticastes a maneira como dispõem das coisas; afirmo que se elas tivessem sido organizadas do modo como indiquei, com maus resultados, poderíeis com razão queixar-vos. Como não é o que ocorre, porém, não tendes razão para queixa. Ao contrário, se a instituição militar florentina não tem a ordenação nem pratica os exercícios que descrevi, sois os culpados por haverdes instituído um sistema abortivo, e não perfeito. Os venezianos, também, e o Duque de Ferrara, começaram a organizar seus exércitos, mas não foram longe – por sua culpa, não por causa dos homens que os serviam. Posso afirmar que o primeiro dos soberanos dos Estados da Itália que seguir esse caminho se tornará senhor de todo o país. Acontecerá com seu Estado o que aconteceu com o reino da Macedônia. Na época de Felipe, que tinha aprendido o sistema militar usado pelos exércitos de Epaminondas, o tebano, a Macedônia tornou-se tão poderosa (enquanto o resto da Grécia permanecia ociosa, divertindo-se em recitar comédias) que, em poucos anos, ocupou o país inteiro. Foi a base que permitiu ao filho tornar-se monarca de todo o inundo. Já se vê que quem despreza essas ideias despreza também seu principado, se é príncipe, ou sua cidade, se é cidadão. Lamento apenas que a natureza me tenha dado este conhecimento sem a possibilidade de poder praticá-lo. Como estou velho, não creio que venha a ter uma oportunidade de transformá-lo em prática. Por isso fui franco convosco; jovens e capacitados, no tempo oportuno podereis ajudar vossos soberanos, se tiverdes encontrado mérito no que vos disse. Não desejo que a vossa reação seja de espanto ou de falta de confiança, porque este país parece ter nascido para ressuscitar coisas mortas, como já se leu na poesia, na pintura e na escultura. No que me concerne, contudo, não há muito a aguardar pelos anos que ainda tenho. Se a sorte me tivesse concedido, no passado, um Estado com poder suficiente para tal empreendimento, penso que em pouquíssimo tempo teria demonstrado ao mundo o valor de tais ideias antigas. Sem dúvida ou o teria ampliado, com glórias, ou o teria perdido, mas sem opróbrio.